70% das prisões de SP têm racionamento de água, revelam inspeções da Defensoria

Um preso chega a ter 45 minutos de água por dia para dividir com os demais, um sabonete é compartilhado por sete pessoas e apenas uma penitenciária tem chuveiro quente; irregularidades foram detectadas em 27 unidades prisionais

Máscara rasgada mostrada por detenta do CDP Feminino de Franco da Rocha, em inspeção realizada em 22/1/2021 | Foto: Defensoria Pública

Lavar sempre as mãos, usar máscara e manter o distanciamento social foram o mote de 2020 e 2021 enfatizado pelos estados e prefeituras por causa da Covid-19. Responsável pela administração das unidades prisionais de São Paulo, o governo João Doria (PSDB) não colocou em prática essas ações para a população carcerária: como manter mãos limpas quando um sabonete é compartilhado por sete pessoas? E quando um preso tem 45 minutos de uso de água para dividir com outros 20 e vivendo em cela superlotada? É o que acontece na Penitenciária Masculina de Sorocaba II, por exemplo, segundo a Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Em 70,4% das prisões inspecionadas pelo órgão na pandemia existe racionamento de água. Essa e outras irregularidades detectadas em 27 unidades prisionais foram divulgadas nesta sexta-feira (1/4) durante seminário online apresentado pelo Núcleo Especializado de Situação Carcerária (Nesc).

O Núcleo fez, ao total, 62 inspeções entre 22 de junho de 2020 e 4 de fevereiro de 2022, sendo que as 27 unidades mencionadas são as que tiveram os relatórios prontos. Os problemas são diversos: 74,1% das unidades não têm laudo de Defesa Civil, 54,4% não têm alvará do Corpo de Bombeiros, 70,4% não têm laudo da Vigilância Sanitária, 68% das unidades não têm lâmpadas, não há fornecimento de itens básicos de higiene (16,7%) ou é insuficiente (62,5%), falta de reposição de roupas (64,1%), colchões (74%), refeições precárias e com impurezas (68%), cerca de 14h a 15h de jejum forçado, ou seja, tempo que os presos ficavam sem comer (51,9%). Equipes de saúde incompletas ou até mesmo sem nenhum médico (48,1%) e falta de reposição de máscaras (57,1%), além de 1.395 pessoas que tinham algum problema grave de saúde e estavam totalmente desassistidas quando da inspeção. Sem contar, ainda, denúncias de agressões perpetradas pelo Grupo de Intervenção Rápida (GIR), conhecida como tropa de elite dos presídios formada por agentes penitenciários, que equivaleram a 70,3% dos relatos dos locais visitados, incluindo sanções coletivas (48%).

O levantamento divulgado se refere às visitas aos Centros de Detenção Provisória (CDP) de Pinheiros II, Osasco II, Mauá, Limeira, Santo André, Diadema, Bauru, Franco da Rocha (Feminino), Piracicaba, Guarulhos II, Americana, São Vicente, Caraguatatuba, Belém II, Belém I, Sorocaba, Mogi das Cruzes, Suzano, Vila Independência e Itapecerica da Serra; às penitenciárias Feminina da Capital e Masculinas de Guareí I e II, Piracicaba e Sorocaba II; e aos Centros de Ressocialização (CR) de Birigui e Marília – estes dois últimos apresentaram as melhores condições em comparação com os demais estabelecimentos, incluindo serem os únicos não superlotados.

De acordo com os detentos ouvidos durante as inspeções, a disponibilidade de água diferenciava de uma unidade prisional para a outra. 21,4% relataram que têm acesso à água por menos de 1h por dia; 21,4% entre 3h e 4h; 21,4% entre 4h e 5h; 14,6% mais de 6h e 7,1% entre 1h e 2h por dia. Os próprios defensores também verificaram torneiras e chuveiros secos nos CDP’s de Limeira, de Piracicaba e de São Vicente. “As pessoas ficam muitas horas sem nenhuma água na torneira, então elas ficam sem tomar banho, escovar os dentes, fazer higiene básica, limpeza das celas, dos pátios”, descreve a defensora pública e integrante do Nesc Mariana Borgherese Duarte.

Ela também aponta como a falta de um item gera violações em cadeia. “Além disso, elas precisam de água para lavar as roupas porque as unidades fornecem quantidade insuficiente de todos os materiais de higiene pessoal e para limpeza das celas e também de vestuário. Então, num quadro de pandemia, isso potencializa cada vez mais toda uma precariedade de saúde, insalubridade e propagação de doenças, de alergias, pragas, como percevejos que ficam incrustrados nos colchões, isso acaba sendo uma pena de tortura muito além da pena privativa de liberdade”, critica. Ela afirma que tanto o Poder Judiciário, por meio de decisões, quanto a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) “têm chancelado essa escassez” ao alegar “consumo consciente” e “prevenção ao desperdício” que não acontecem.

CDP Masculino de São Vicente, em 03/03/21, com caixas d’água destampadas | Foto: Defensoria Pública

Para se ter uma ideia, em 2013, a Defensoria Pública entrou com uma ação civil pública solicitando fornecimento de água quente nos chuveiros dos estabelecimentos prisionais. O governo pediu a suspensão da decisão que acatou o pedido afirmando que faria obras para a regularização dos ambientes. Nove anos depois, das 27 unidades inspecionadas, apenas a Penitenciária Feminina de Santana dispunha de banho em temperatura adequada.

“As unidades têm instalado alguns chuveiros nos pavilhões [quatro], não dentro das celas como deveria ser, e tivemos situações em que o vaso sanitário está logo abaixo do chuveiro, então a pessoa não consegue usar”, aponta Mariana Duarte. “O Estado pratica violações tanto ativamente contra a integridade física das pessoas presas quanto por omissão, como a falta do fornecimento adequado da água e da água quente”.

Banheiro coletivo do CDP Masculino de Mogi das Cruzes, em 16/6/2021, que dispõe de apenas quatro chuveiros. O local tem capacidade para 844 pessoas, mas abrigava naquela data 1.362. | Foto: Defensoria Pública

Além disso, apesar de o governo estadual ter finalizado o ano de 2020 com R$12 bilhões a mais em caixa do que em 2019, o governador João Doria fez cortes de R$ 14 milhões para questões de saúde nas prisões e de R$ 31 milhões na aquisição de produtos de higiene, segundo dados compilados pela Plataforma Justa.

Com a pandemia e a suspensão das visitas, os itens que deveriam ser disponibilizados pelo Estado mas acabam sendo fornecidos pelas famílias, o chamado “jumbo”, também ficaram comprometidos. Em 85,1% dos presídios inspecionados, os detentos relataram demora da entrega dos itens via Sedex, que era modalidade permitida e que foi alvo de críticas por familiares à Ponte: primeiramente por ser caro, já que as unidades ficam distantes, e em segundo pela limitação de alimentos que poderiam estragar a depender do tempo que demorasse a chegar nas mãos do preso e por desvios das entregas. Em novembro de 2020, as visitas voltaram a ser permitidas, mas sem contato físico. Depois, em novembro do ano passado, os parentes foram autorizados a ter contato físico.

Uma das celas superlotadas do CDP de Limeira, em 18/12/2020 | Foto: Defensoria Pública

Para a defensora, existe uma cultura de extensão da pena às famílias e aos próprios presos cujas violações não são pontuais. “A Recomendação 62 de 2020 do Conselho Nacional de Justiça, por exemplo, deu uma orientação de medidas de desencarceramento, principalmente para as pessoas que fazem parte de grupos de risco de Covid-19, mas a gente teve um descumprimento, uma resistência à aplicação, assim como tem uma resistência ao reconhecimento e à aplicação dos direitos das pessoas presas”, aponta.

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“Falta uma sensibilização do Poder Judiciário assim como tem uma omissão do Poder Executivo e também do Legislativo, que fiscaliza o Executivo, então a gente encontra esse problema muito sério de invisibilidade para questões graves verificadas nas inspeções”, explica.

O que diz a Secretaria de Administração Penitenciária

A reportagem encaminhou o relatório da Defensoria e questionou sobre as irregularidades à assessoria da pasta, que negou os problemas documentados em nota.

Sobre o racionamento de água, disse que “todos os presídios seguem o que determina a Organização Mundial da Saúde, que estipula o consumo mínimo per capita de 100 litros diários de água por pessoa por dia”. Já dos chuveiros, informou que na gestão atual foram instalados em 100% dos presídios e que as unidades prisionais fornecem três refeições diárias e “passam constantemente por dedetização e diariamente por limpeza, sendo fornecidos aos presos todos os produtos de limpeza e equipamentos necessários para uso e higienização de celas habitacionais, bem como dos raios habitacionais”.

Também garantiu que os presídios sem Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros “estão tomando as providências para obtenção e/ou renovação”, já que o documento tem validade de cinco anos.

Com relação às equipes de saúde, não respondeu sobre o número mínimo de profissionais por equipe. “Os presos têm atendimento de saúde garantido em todas as unidades prisionais do estado, que pode ser oferecido por meio da equipe médica existente na própria unidade ou na rede pública de saúde local. Muitos ingressam nas unidades prisionais com problemas de saúde preexistentes e recebem o devido tratamento quando detectado já na entrada, por meio de entrevista no setor de saúde das unidades”.

A pasta também negou corte de recursos. “Em 2021 houve aumento de R$ 204 milhões em relação ao executado do orçamento em 2020, o equivalente a 4,8% de acréscimo. Se comparado ao período pré-pandemia em 2019, o aumento foi de R$ 313 milhões. Esse acréscimo ocorreu mesmo com a diminuição da população prisional – caiu de 213.416 em 2020 para 203.101 pessoas presas em 2021. Atualmente há 199.652 pessoas custodiadas”.  

O que diz a Sabesp

A Ponte perguntou à empresa, que é responsável pelo fornecimento de água, se houve alguma determinação de racionamento nas unidades prisionais.

A assessoria informou que “não há racionamento nos municípios em que opera” e que a Sabesp não presta atendimento nas cidades de Sorocaba, Birigui, Piracicaba, Limeira, Bauru, Marília, Americana e Mogi das Cruzes.

*Reportagem atualizada às 11h53, de 1/4/2022, após recebimento de resposta da SAP.

**Atualização às 13h01, de 1/4/2022, para incluir nota da Sabesp.

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