Jovem de Teresina (PI) diz ter sofrido aborto espontâneo por agressões constantes do marido. “A morte da mulher começa na porta da delegacia”, lamenta Maria Lúcia de Oliveira, liderança comunitária que acompanhou vítima na delegacia
Depois de sofrer inúmeras violências, psicológicas e físicas, Margarida*, mulher afro-indígena de 23 anos moradora da periferia de Teresina, capital do Piauí, decidiu denunciar o marido. Mas, ao chegar na delegacia, se deparou com o despreparo e descaso do Estado.
Sua saga começou na noite desta segunda-feira (15/3). Após ser agredida fisicamente pelo marido, na frente das duas filhas pequenas, Margarida saiu de casa e tentou denunciar a agressão. Tentou, porque mesmo indo em todas as delegacias especializadas para o atendimento à mulher da capital piauiense ela não conseguiu registrar um boletim de ocorrência.
Desesperada, ela ligou para Maria Lúcia de Oliveira, 50 anos, uma das vozes da comunidade ribeirinha Boa Esperança e presidente do Centro de Defesa Ferreira de Sousa, por volta das 19h30. Maria Lúcia estava em uma reunião, mas imediatamente saiu para auxiliar a jovem. A liderança acompanha casos de violência doméstica na região desde 2000. No dia seguinte, nesta terça (16/3), Maria Lúcia acompanhou Margarida na busca pela delegacia que a atendesse.
Leia também: Um vírus e duas guerras: na pandemia, três mulheres foram vítimas de feminicídio por dia
“Ela estava sofrendo agressão e foi socorrida por uma vizinha. Ela foi nas quatro delegacias da mulher, que estavam fechadas. Ela passou a noite escondida na casa de parentes. Pela manhã nesta terça fomos até a delegacia central às 9h e nos disseram que teríamos que voltar para casa e fazer o boletim de ocorrência online”, denuncia Maria Lúcia.
Indignada, Maria Lúcia se recusou a sair da delegacia e pediu que os funcionários ajudassem. Um boletim de ocorrência online foi feito ainda de dentro do local. “Nos encaminharam para a regional do bairro onde mora Margarida. Chegamos lá por volta de meio-dia e informaram que a delegada não estava, tinha saído mais cedo”.
Além das instalações precárias, Maria Lúcia relata que elas foram tratadas de forma grosseira. “Só tinham homens lá, pediam para que a gente falasse baixo. Não tinha nem água para a vítima. O Estado provoca mais violência às mulheres que sofrem violência. Não existe acolhimento para mulheres vítimas de violência”.
Leia também: ‘Na pandemia, a mulher está em casa à disposição do agressor’, diz feminista do Amazonas
Depois de muita insistência, um novo boletim de ocorrência foi feito, mas, para surpresa de Maria Lúcia e de Margarida, a versão da vítima foi descreditada. O escrivão Dalmir Jose de Sousa minimizou a situação narrada por Margarida.
No registro policial, escrito em cinco linhas, o policial descreveu que, “sem motivação específica”, Margarida era constantemente agredida pelo marido na frente das filhas, além de ser ofendida com palavrões e receber ameaças de morte. O breve relato mencionou também que Margarida sofreu, recentemente, um aborto espontâneo após as agressões.
O nome da delegada Alexsandra de Sousa Alves da Silva aparece nesse documento, mas sem assinatura já que ela não estava no local. Maria Lúcia permaneceu na delegacia até que o boletim de ocorrência fosse reescrito e que Margarida fosse encaminhada para o exame de corpo de delito.
Leia também: Um vírus e duas guerras: uma mulher é morta a cada nove horas durante a pandemia no Brasil
“Ficamos lá até 16h. Pediram um prazo de até 48h para protocolar o caso dela e pediram para ela voltasse nesta quarta (17/3) para falar com a delegada. Não tem um horário, mas ela deve comparecer pela manhã. Em todas as delegacias que fomos, eles se recusaram levar uma viatura até o local das agressões. Margarida está sem documentos e escondida. Uma rede paralela ao Estado teve que se juntar para que ela permanecesse viva”.
Para Maria Lúcia, o fato de ela e da vítima serem mulheres negras foi um fator determinante para que o descaso acontecesse. “É feita toda uma propaganda das delegacias, mas o atendimento não acontece. Uma mulher preta e periférica é tratada de maneira diferente de uma mulher branca. Há racismo no atendimento dessas DEAMs [Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher]”.
“A vítima relatava que ouviu da delegada que ela deveria largar o agressor, como se fosse fácil. Uma mulher que sofre violência doméstica tem dependência psicológica. Ela sabe que aquilo não faz bem, mas ela não consegue sair, precisa de todo uma acompanhamento. A morte da mulher começa na porta da delegacia”.
Outro lado
A reportagem procurou a Secretaria de Segurança Pública e o Governo do Piauí para questionar o atendimento recebido pela vítima, além de solicitar entrevista com os policiais civis, e aguarda retorno.
*O nome da vítima foi alterado para não expor sua identidade