Artigo | Ismael Ivo: um legado na arte mundial

    O artista interdisciplinar Flip Couto relembra a vida do coreógrafo e dançarino Ismael Ivo, que morreu nesta quinta-feira (8) de Covid-19 aos 66 anos, e repete sua profecia: “a América Latina será celeiro da renovação da linguagem do corpo”

    O coreógrafo, dançarino e gestor Ismael Ivo | Foto: Reprodução / Instagram

    Um delírio de criança transformou Ismael Ivo em um dos maiores dançarinos, coreógrafos e pensadores da dança no mundo. Um artista que construiu seu legado por sinuosas linhas de seu corpo negro, encontrou no movimento uma forma documentar o invisível levando sua expressividade da Vila Ema, bairro da zona leste de São Paulo, para grandes palcos do mundo. Contrariando as possibilidades apresentadas para um jovem negro gay, iniciou sua trajetória dando seus primeiros passos lá nos anos setenta, durante a ditatura militar no Brasil.

    O movimento de Ismael ganhou asas para o mundo através do encontro com lendário coreógrafo afro estadunidense, Alvin Ailey (1931-1989) conhecido mundialmente pelo seu trabalho junto a companhia “Alvin Ailey American Dance Theater” formada por dançarines negres. À convite de Alvin Ailey, Ismael Ivo viajou à Nova Iorque em 1983 onde mergulhou seus trabalhos como dançarino e coreógrafo, no ano seguinte fundou em Viena o ImPulsTanz, importante festival internacional de dança onde se desenvolveu como um grande curador em dança formando artistas que vinham do mundo todo para aprender com ele proporcionando trocas também com outros artistas que se cruzavam no festival.

    Atento em gerar oportunidades de estudos e experiências artísticas para jovens do Brasil, Ismael criou programas formação como o “Biblioteca do Corpo” (2014), sendo um grande facilitador no intuito de construir pontes para a inserção de bailarinos internacionalmente. Ali, ele selecionava bailarines emergentes do Brasil, que recebiam orientações e treinamentos no festival ImPulsTanz abrindo a possibilidade de criar uma nova geração de bailarinos coreógrafos para o futuro.

    Considerado um deus em solo europeu, Ismael brilhou por mais de três décadas no exterior onde desenvolveu sua poderosa e singular forma de criar através do corpo. Faminto em absorver e digerir as mais diferentes técnicas, estilos, movimentos, expressões e ideias, ele entendeu que o impossível já não era uma possibilidade, ali o impossível já tinha sido tateado e caminhos já estavam abertos.

    Mas não foi somente nos palcos que Ismael construiu seu legado. Esteve também nas ruas, junto ao movimento negro na luta antirracista e por direitos humanos, lado pouco conhecido do grande publico. Ele explica em uma conversa com jovens artistas do interior de São Paulo que “de um lado, eu estava infiltrado na arte da dança moderna, ou dança contemporânea de São Paulo. Como todos sabem, este é um espaço normalmente reservado para a elite branca. Por outro lado, fui muito próximo de um grupo que funcionou como meus mentores. Refiro-me a pessoas como Abdias do Nascimento, Thereza Santos, Lélia González, Helena Teodoro, etc. me envolvi muito com eles e me fortaleci com as suas reflexões sobre o negro brasileiro”. A formação na dança moderna brasileira, experiências internacionais e o envonhinenho com movimento negro brasileiro alimentaram a potência performática e política que Ismael Ivo trouxe para seu corpo negro, gay, periférico.

    Para além do “virtuosismo” e “plasticidade”, cada pedaço de seu corpo contava uma história, ou era a própria história. Com o desejo de trazer jovens das periferias de São Paulo para o Teatro Municipal, Ismael Ivo assumiu em 2017 a direção do Balé da Cidade de São Paulo e, primeira pessoa negra a assumir o cargo, transformou radicalmente a relação do com o público. Há relatos de pessoas que nunca pisaram no Municipal antes de ele assumir o posto. Ismael contribuiu com uma programação mais acessível e que dialogava com a cidade. Esteve à frente da programação cultural do município levando hip hop, samba, funk e outras linguagens negras para dentro do Municipal, convidando também pessoas pretas e periféricas para assistir espetáculos como o “Balé da Cidade | Um Jeito de Corpo – Dança Caetano”, que estreou poucos dias após o assassinato de Marielle Franco em 14 de março de 2018. Após o encerramento, Ismael pediu um minuto de palmas em homenagem à vereadora.

    Além de favorecer a participação da população nos equipamentos de cultura do centro, Ismael difundiu a arte pelos múltiplos territórios da cidade, valorizando e fomentando essa efervescência que pulsa nas periferias de São Paulo.

    Ele conseguiu se infiltrar nas estruturas de arte, majoritariamente branca, rompendo com a hegemonia, criou fissuras e abriu caminhos para outras pessoas, como ele, pretas, periféricas e LGBTQIA+ do Brasil adentrarem espaços antes relegados à elite, assumindo eles como seu/nosso por direito.

    Tragicamente, em julho de 2020, Ismael sofreu dois AVCs e se recuperou sem sequelas. Em agosto daquele ano sofreu acusações formais de assédio moral e em novembro do mesmo ano foi demitido do cargo de diretor Balé da Cidade, até hoje sem nenhuma explicação, mesmo após ser inocentado das denúncias de assédio moral, negadas por ele com veemência. Em nota, afirmou: “Minha carreira artística e profissional é imaculada. No mundo todo, por onde passei, sempre respeitei e fui respeitado como ser humano e como artista. Manchar minha imagem tornou-se uma verdadeira obsessão. Tanto que mesmo após eu ter sido inocentado pela comissão especial continuo sendo atacado e impedido de retornar ao cargo que ocupava.”

    Recentemente foi contratado como diretor artístico da TV Cultura, mas não pode nos presentear com suas criações no canal, pois na última quinta feira (8/4) a Covid-19 interrompeu precocemente os passos de mais um grandioso artista negro brasileiro. Ismael Ivo encerrou seu ato nesse plano aos 66 anos. Infelizmente, Ismael não foi o único que partiu por conta de um governo que não preza pela vida, um governo negacionista que minimiza uma pandemia que segue matando pessoas negras de forma desproporcional.

    Ismael Ivo profetizou que os “países da América Latina serão futuros celeiros da renovação da linguagem do corpo” e ele sempre será um grande ícone da dança que estará guardado em nossas memórias, nos inspirando pelo seu legado e suas grandes contribuições na construção da dança negra contemporânea brasileira.

    A dança em si nunca teve o espaço que realmente merece no país. Um corpo negro na dança, então… Que sejamos capazes de entender essa partida que deixa marcas profundas no país para reafirmar a urgência de honrar nossos ancestrais em vida. Uma pena que somente após a morte os principais veículos do país, assim como a sociedade que grita pelo antirracismo, tenha se dado conta da grandiosidade e genialidade que perdemos.

    Que façamos um exercício constante de memória, para nunca esquecer aqueles que dedicaram uma vida inteira para que pudéssemos estar aqui dançando nesse palco aniquilador chamado Brasil.

    Flip Couto é artista interdisciplinar formado em dança é Idealizador do Coletivo AMEM, diretor executivo da Aliança Pró-Saúde da População Negra, intérprete criador na Cia. Sansacroma e membro da House Of Zion.

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