Estudo analisou 190 casos de negros mortos pela polícia em países da América do Norte, América do Sul e Europa. No Brasil, casos do adolescente João Pedro Matos Pinto, Luana Barbosa dos Reis e da vereadora Marielle Franco compuseram a pesquisa
Completam-se nesta terça-feira (29/6), 1.203 dias que as questões “quem mandou matar Marielle Franco e por quê” não são respondidas à sociedade brasileira e sobretudo à família da vereadora executada em março de 2018 no Rio de Janeiro. O assassinato de Marielle (PSOL) foi um dos casos analisados no estudo do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU) divulgado nesta segunda-feira (28/6).
O documento investiga o racismo sistêmico e as violações de direitos humanos contra africanos e pessoas de ascendência africana, no Brasil, nos Estados Unidos e em outros países europeus e das Américas. Apresentado pela alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, o estudo é consequência da proposta indicada por 54 países africanos, após o assassinato de George Floyd, homem negro norte-americano asfixiado até a morte por um policial branco, em maio de 2020, em Minneapolis, nos Estados Unidos.
Um dos focos principais do estudo foi investigar as mortes cometidas por policiais em diferentes países com sistemas jurídicos diferentes. “O relatório encontrou ‘semelhanças impressionantes’ e padrões – incluindo os obstáculos que as famílias enfrentam para ter acesso à justiça”, diz o texto da ONU.
Na visão de Anielle Franco, jornalista, irmã de Marielle e diretora executiva do Instituto Marielle Franco, o reconhecimento do racismo sistêmico na sociedade brasileira é um passo importante para a superação dessa desigualdade. “Existe um papel importante da ONU que é de instar os Estados para que atuem e apresentem respostas para esses problemas e esses casos específicos de violações. Por isso acredito que é um avanço termos esse reconhecimento e diálogo aberto com a ONU para tratar de episódios de violência tão cruéis e recentes na nossa história, como é o caso da própria Marielle, mas também do João Pedro, da Luana Barbosa, da chacina do Jacarezinho e mesmo da Katlhen”, afirma.
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Outros sete casos foram estudados com atenção no relatório, incluindo a morte de Luana Barbosa dos Reis Santos, 34 anos, mulher negra e lésbica, ocorrida em abril de 2016. Luana foi espancada em frente a sua casa por policiais militares na cidade de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. As agressões ocorreram após ela exigir a presença de uma policial mulher quando iria ser revistada. Até hoje os policiais André Donizete Camilo, Douglas Luiz de Paula e Fábio Donizete Pultz não foram condenados pela justiça.
Outro caso brasileiro detalhado pela ONU é o de João Pedro Matos Pinto, que foi morto aos 14 anos em maio de 2020 durante uma operação das polícias federal e civil no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Assassinado por um tiro de fuzil, João Pedro brincava dentro de casa com primos e amigos. O crime não foi solucionado até hoje.
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As mortes de Breonna Taylor, ocorrida nos Estados Unidos, a de Kevin Clarke, no Reino Unido, a de Adama Traoré, na França e a do colombiano Janner García Palomino também foram analisadas. O relatório demonstra que há três contextos principais em que as mortes decorrentes da atividade policial acontecem com maior frequência, em 85% das vezes: “O policiamento de delitos menores, paradas de trânsito e buscas; o policiamento de pessoas em crises de saúde mental; e a condução de operações policiais especiais no contexto da ‘guerra às drogas’ ou operações relacionadas a gangues”.
O estudo concluiu que, em muitos dos casos, as vítimas não parecem representar uma ameaça iminente de morte ou ferimentos graves aos policiais ou a população, que justificassem o nível de força usado.
Para Thiago Amparo, advogado, professor de direito internacional e direitos humanos na FGV (Fundação Getúlio Vargas) e doutor pela Central European University, o principal achado do relatório é colocar de forma direta a violência policial como uma questão racial. “É a primeira vez que a ONU faz isso com tal clareza, embora tenha já abordado racismo historicamente e já possua princípios sobre uso da força por agentes da lei. Inova também o relatório ao colocar no centro do debate casos de vários países, inclusive o Brasil ao mencionar os casos de Luana Barbosa e João Pedro”.
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Amparo foi uma das 340 pessoas consultadas no estudo que recebeu 110 contribuições por escrito, no qual foram analisados 190 casos de mortes de negros pela polícia. Segundo o advogado, o relatório não somente apresenta os problemas, mas também contribui com recomendações concretas em quatro eixos. “Parar de negar o problema e desmantelar o racismo nas polícias, acabar com a impunidade e construir confiança, escutar os negros e fazer justiça e reparação histórica”, diz.
A justiça e a reparação são aspectos mencionados por Anielle, que também participou do estudo por meio do Instituto Marielle Franco, que desde 2020 participa de uma coalizão de organizações internacionais que atuam no acompanhamento da implementação da Resolução 43.1 sobre racismo sistêmico e violência policial. “Sempre digo que o caso de Marielle não é um episódio isolado, ele é reflexo da política de morte que o Estado brasileiro promove há anos contra corpos negros e periféricos.”
O assassinato de Marielle representou para ela um enorme ataque a democracia brasileira. “Por ela ser, além de tudo, uma parlamentar e já terem se passado mais de três anos sem sabermos quem mandou matar e sem que a justiça de fato aconteça”. A “presunção de culpa” de pessoas negras, a ausência de formas de fiscalização e de investigações são alguns dos motivos apontados pelo relatório para a impunidade.
Por isso, é importante que casos como o de João Pedro, de Luana e tantos outros não “caminhem para o mesmo lugar de impunidade”, afirma Anielle. “Sem dúvidas a falta de respostas é reflexo do racismo no sistema de justiça e na sociedade brasileira como um todo. Nós sabemos quais são os corpos que podem tombar e ninguém responde por aquilo, não são corpos brancos, são os nossos.”
No estudo, Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, chamou a atenção para que os países adotem “medidas imediatas” contra o “racismo sistêmico” enfrentado pelos negros. Bachelet destacou ainda que é preciso “uma abordagem transformadora que aborde os âmbitos interconectados que estimulam o racismo e levam reiteradamente a tragédias que poderiam ser evitadas, como a morte de George Floyd”.
“Apelo a todos os Estados para que parem de negar e comecem a desmantelar o racismo; para acabar com a impunidade e construir confiança; para ouvir as vozes dos afrodescendentes; e para confrontar legados do passado e fornecer reparação”, disse a alta comissária da ONU.
O relatório também traz preocupações com o “policiamento excessivo de corpos e comunidades negras, fazendo-os se sentirem ameaçados em vez de protegidos”, citando a criminalização de crianças negras como uma questão fundamental.
A criação de um mecanismo específico para promover a justiça racial e a igualdade em operações das forças de segurança é um dos pedidos colocados nas recomendações por Bachelet, além do fortalecimento de instrumentos já existentes.
Ela diz que “os Estados devem mostrar forte vontade política para acelerar a ação no âmbito da justiça racial, da reparação e da igualdade por meio de compromissos específicos e com prazos para conquistar resultados. Isso envolve repensar o policiamento e reformas do sistema criminal, que repetidamente produz resultados discriminatórios para pessoas de ascendência africana”.
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Em uma comparação, o relatório expõe as probabilidades dos negros morrerem nas mãos de policiais entre diversos paises. “Na França, de acordo com os resultados de uma pesquisa realizada em 2016 pelo Defensor dos Direitos, jovens que pareciam árabes, do Magreb, ou negros eram 20 vezes mais propensos a serem submetidos a verificações de identidade do que outros, e declararam ter sido submetidos a atitudes consideravelmente mais insultuosas e maus-tratos físicos durante as abordagens policiais”.
O estudo trouxe ainda dados de uma pesquisa realizada em 2019 “por uma organização não governamental em dois bairros de Bogotá, na Colômbia, que revelou que pessoas de ‘pele escura’ tem mais de 2,5 vezes de probabilidade de ter que lidar com a polícia e serem presas ou multadas”.
No Brasil, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, “a taxa de mortalidade em 2019 por intervenções policiais foi 183,2% maior no caso de afrodescendentes do que no dos brancos. Nos Estados Unidos, de acordo com uma organização não governamental, os negros foram 28% dos mortos pela polícia em 2020, 41% dos condenados a pena de morte até 1º de janeiro de 2020 e 33% dos presos em 2018”, mostra o relatório.
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Outro achado relevante do estudo, segundo Gustavo Huppes, assessor de advocacy internacional da Conectas Direitos Humanos, é que em praticamente todos os casos analisados “não houve nenhum tipo de responsabilização das forças de segurança que cometeram violações e o racismo é a força motora”. Além disso, o relatório aponta que nos contextos em que se inserem os casos apresentados sobre o Brasil, “o preconceito racial, estereótipos e o perfilamento parecem desempenhar um papel recorrente nas abordagens, sendo agravado por fatores interseccionais”.
Ele também ressalta que o relatório aponta o cumprimento da chamada ADPF das Favelas como um caminho a ser seguido. “Ao abordar a resposta à conduta de forças policiais em relação à impunidade da liminar dada pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 635 que proíbe operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia de Covid-19.”
O relatório divulgado nesta segunda-feira é um passo importante na luta pelo fim do racismo sistêmico no mundo, diz o representante da Conectas, que tem trabalhado ativamente desde junho de 2020 com a sociedade civil e com a equipe do Alto Comissariado através do envio de informações e subsídios sobre a situação do racismo sistêmico e violações cometidas contra a população negra por parte das forças de segurança do Estado. “Serve também como base para que o tema continue sendo discutido no âmbito do Conselho de Direitos Humanos da ONU.”
O assessor da Conectas explica que “na atual sessão do Conselho, que se reúne em Genebra até o dia 13 de julho, será discutida a renovação da resolução que deu origem a esse estudo. É importante que os Estados se comprometam tanto na implementação das recomendações atuais do relatório quanto ao chamado da Alta Comissária para uma resposta sistêmica ao tema”.
Além disso, é preciso que o estudo seja aprofundado, diz Huppes. “E que seja criado um mecanismo mais amplo no âmbito das Nações Unidas para investigar globalmente casos de racismo estrutural e sistêmico no contexto da aplicação da lei, incluindo as raízes do policiamento racializado, que contribua para a responsabilização e reparação e que leve em consideração a interseccionalidade e o diálogo com as comunidades afetadas, incluindo as vítimas e suas famílias”, aponta.
Na avaliação de Anielle Franco, o documento é uma vitória das organizações de direitos humanos. “Fiquei esperançosa em ver os casos brasileiros sendo tratados pela ONU, com a seriedade que deve ser. E espero que esse relatório, mas também todo trabalho diário que o Instituto Marielle Franco, outras organizações e ativistas de Direitos Humanos em todo o mundo realizam diariamente, consiga trazer justiça para esses e tantos casos de violações de direitos humanos e racismo em nosso país. Não posso deixar de reforçar que esse documento é uma conquista de organizações antirracistas do mundo todo”, finaliza.