Desde 2019 o Supremo Tribunal Federal tenta julgar ação que envolve uma área declarada de ocupação tradicional dos índios Xokleng, em Santa Catarina. Caso tem repercussão geral e deve impactar outras demarcações de terras indígenas no Brasil
Na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) está o julgamento em plenário da tese do Marco Temporal. O texto do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 prevê que os povos indígenas devem comprovar que já ocupavam suas terras em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, criando o Marco Temporal. O recurso também desautoriza a ampliação de terras que já foram demarcadas anteriormente e facilita atividades econômicas em terras indígenas.
A tese é duramente criticada por lideranças indígenas e movimentos sociais, que estão desde o dia 22 de agosto mobilizados na capital federal para acompanhar o julgamento e pressionar os magistrados a julgarem o caso como improcedente. Segundo o último balanço realizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), 6 mil indígenas de 176 povos estão em Brasília no acampamento Luta Pela Vida, vindos de todas as regiões do país. Conforme publicação do Conselho Indigenista Missionário, esta tem sido a maior mobilização indígena pós-constituinte.
O julgamento do STF também vai determinar a suspensão ou não de todos os processos judiciais que poderiam provocar despejos ou a anulação de procedimentos demarcatórios até o final da pandemia da Covid-19.
A decisão do RE 1017365 tem repercussão geral e define que o chamado Marco Temporal pode ou não ser aplicado em processos demarcatórios atuais e com isso, a possibilidade de basear as propostas legislativas que tratam dos direitos territoriais dos povos originários.
A ação trata da reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklanõ, onde também vivem indígenas Guarani e Kaingang, localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás, em Santa Catarina. Outro ponto analisado pelos ministros foi a determinação do ministro Edson Fachin, de maio de 2020, que suspendeu os efeitos do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), e havia oficializado a tese do Marco Temporal.
A TI Ibirama-Laklãnõ está localizada entre os municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, Vitor Meireles e José Boiteux, 236 km a noroeste da capital Florianópolis. Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a área foi reduzida drasticamente por conta de um histórico de disputas que vêm se arrastando desde o século XX. “Foi identificada por estudos da Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2001, e declarada pelo Ministério da Justiça, como pertencente ao povo Xokleng, em 2003. Os indígenas nunca pararam de reivindicar o direito ao seu território ancestral”, diz um texto da organização.
Em 2019 foi reconhecida a repercussão geral da matéria. O argumento do governo de Santa Catarina é que a terra não estava ocupada por indígenas em 1988, pois era pública e foi vendida a proprietários rurais no fim do século XIX. A área entretanto, é protegida pela portaria 1.182/03, do Ministério da Justiça. O texto declarou posse permanente dos grupos indígenas Xokleng, Kaingang e Guarani a Terra indígena Ibirama-La Klãnõ.
O conceito de “Marco Temporal” vem sendo adotado pela bancada ruralista do Congresso pelo menos desde 2009, quando Ayres Britto, então ministro do STF, adotou o termo procurando estabelecer uma data para limitar as possibilidades de demarcação em um julgamento sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
Em 2018, os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli foram favoráveis à tese para julgar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida pelo então PFL, atual DEM. Nela, o partido questionava a constitucionalidade do decreto presidencial de número 4.887 que revogava a tese do marco temporal em relação aos quilombolas.
Ainda no âmbito desta ação, em 2020, organizações sociais pediram para que o Supremo julgasse embargos de declaração sobre a validade da tese, que não teve entendimento pacificado e consolidado, sem criar jurisprudência, ou seja, abrindo margem para novas interpretações do conceito ou de determinadas leis. No julgamento a corte “rejeitou a incidência da tese do marco temporal à possibilidade de reconhecimento da tradicionalidade das terras, aptas a configurar a propriedade coletiva das áreas pelos remanescentes de comunidades quilombolas”, disse a ministra Rosa Weber.
O julgamento da ação que trata do Marco Temporal iria ocorrer em outubro de 2020, mas foi adiado, depois estava marcado para ocorrer em 11 de junho de 2021, mas foi suspenso por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. O recurso estava programado para ser julgado no final de junho de 2021, mas voltou a ser adiado. O início dos debates da ação nesta quarta-feira (1/9) pode ter novo pedido de vistas, o que prorrogaria ainda mais a decisão.
Eloy Terena, advogado e coordenador jurídico da Apib, enfatizou em artigo publicado pela organização que “após séculos de violências, remoções forçadas e extermínio de povos inteiros, a Suprema Corte terá a oportunidade de fazer valer o artigo 231 da Constituição, que determina que as terras indígenas, utilizadas para as atividades produtivas e para a preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar dos povos indígenas, bem como aquelas que são necessárias para a reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, devem ser demarcadas e protegidas”.
Segundo Terena, “esse é um direito fundamental, inalienável, indisponível e imprescritível. Foi essa a escritura pública que o Estado brasileiro assinou para os povos indígenas do Brasil”.
O processo é tido pelo movimento indígena como emblemático, segundo a Apib. Muitas organizações participarão dos debates na condição de amicus curiae, incluindo Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Conselho do Povo Terena, Aty Guasu Guarani Kaiowá, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e Conselho Indigenista Missionário.