Artigo | Auto da Sé: um fio solto na trama da cidade

O pesquisador Reinaldo Hening faz um paralelo entre um trágico tiroteio no centro de São Paulo há seis anos e o Augusto Matraga de Guimarães Rosa

Imagem: Reprodução

04/09/2015 – segundo o comentário geral, um ano difícil. Sexta-feira, 14h10min. Tarde nublada no Centro de São Paulo. Em frente à Catedral da Sé o povo encheu a rua aos gritos de “Pega! Pega!”, “Larga ela!”, “Mata ele! Mata ele!”, “Lincha!”.

Semicírculo em volta das escadas. Câmeras full HD e celulares de última geração miram as portas fechadas da igreja. Uma pequena multidão raivosa e hesitante se aproxima – a tecla mute faz parecer que vão à missa. A polícia fecha o cerco, a multidão cerca a polícia.

Fazendo papel de antiga grua, um drone se levanta do Marco Zero da maior cidade da América Latina. A câmera deixa ver a Rosa dos Ventos, imensa, no chão da praça; faz uma tomada geral e se dirige num travelling frontal lento e estável pelo corredor de palmeiras imperiais em direção à fachada da Sé.

Corte. Enquadramento difícil, zoom, câmera tremida. Fechando o quadro aos poucos, a lente focaliza Luís Antônio da Silva, 49 anos. Ele veste uma camisa azul e amarela, uma bermuda verde, uma jaqueta militar camuflada e segura um revólver 38 apontado para a cabeça da balconista Elenilza Mariana de Oliveira, 25 anos. O close up do casal tem como fundo os detalhes da porta: cruzes e batentes dourados ornam a madeira vetusta e lustrosa. Todos gritam. Ninguém se entende.

A tomada aérea permite ver o morador de rua Francisco Erasmo Rodrigues de Lima, 61 anos, sacola e mochila nas costas curvadas, jaqueta azul, passando pelo Marco Zero, pisando a Rosa dos Ventos, cruzando a imagem na diagonal (de Sudeste para Noroeste), furando o cerco policial e se dirigindo ao flanco direito das escadarias (canto superior esquerdo da tela).

“Mais documentado do que isso, é impossível!”, afirma o apresentador do programa policial de maior audiência no país, o Brasil Urgente. “Nós temos todas as imagens, de todos os ângulos, do que representa a violência na cidade de São Paulo!”. José Luiz Datena comenta os acontecimentos ao lado de uma modelo opulenta trajando um vestido preto mínimo. Na parte inferior da tela, o lettering anuncia: “Mari Baianinha presenciou tiroteio na Catedral da Sé”.

Justifica-se a presença da modelo: ela e a equipe de gravação de um programa humorístico da mesma emissora, a Rede Bandeirantes de televisão, presenciaram o ocorrido. A equipe do “Pânico na Band” foi responsável pela gravação fortuita do drone que circulou na época e ainda circula junto com centenas de imagens de celulares e programas de TV na internet. É sobre essa gravação e outras, feitas com celular e enviadas por telespectadores, que o apresentador tece seus comentários.

A modelo, um pouco perdida, estica o vestido, cruza as pernas, esforça-se para manter a contristação e a seriedade que o momento exige. O apresentador, nem tanto. Evitando olhar para a moça (o quanto pode), com voz grave e nasalada, sobre as imagens repetidas em looping, ele comenta o desespero da refém que cai no chão sob o sequestrador tentando se agarrar à arma, a revolta dos transeuntes que começam a romper o cerco policial e a atitude heroica, “inconsequente, mas heroica” de seu Francisco – um “verdadeiro anjo”, quiçá um santo.

Francisco atravessou a praça, subiu as escadas, esgueirou-se entre os pés dos apóstolos apoiados nas falsas colunas da entrada, colocou o cigarro entre os dentes e sem obedecer aos gritos dos policiais, nem ser visto pelo sequestrador, jogou-se sobre Luís Antônio.

A pressão aumentou, o cerco se rompeu. A Catedral “matraqueou que nem panela de assar pipocas”.

Diáspora repentina, sístole lenta da multidão curiosa.

Elenilza foi salva, conseguiu escapar com ferimentos leves causados pela luta. Francisco levou dois tiros à queima-roupa do sequestrador e caiu morto, escorando-se na soleira da porta fechada – a mancha de sangue brotando no meio do peito. Luís foi fuzilado pela polícia e morreu deitado de braços abertos em rede nacional.

Segundo a reportagem da Folha de São Paulo de 04/09/2015, tanto o “herói” quanto o “algoz” tinham longas fichas policiais. A de Francisco incluía homicídio doloso (ocorrido em 1980), periclitação da vida, incêndio e receptação. A de Luís começou em 1987, com furto e tentativa de homicídio, seguem-se várias passagens por furto, roubo, lesão corporal, resistência, e três passagens por tráfico de drogas. Houve ainda um quarto ferido, provavelmente por estilhaços de bala, não nomeado, entre os curiosos. Não há detalhes sobre as possíveis condenações e cumprimento de penas dos dois falecidos nas reportagens que consultamos. 

Contrariando a lógica e o bom senso, neste caso, faz sentido reproduzir alguns comentários de leitores: “No que me diz respeito se eram marginais morreram tarde. Eu é que não vou acender velas nem chorar por nenhum deles.” “Todos os pecados do herói foram perdoados com a sua atitude. Subiu purificado. Valeu baixinho.” “Quando a pessoa morre, devemos lembrar somente das coisas boas sobre ele, as más já estão perdoadas. Do presente episódio devíamos enaltecer o ato de solidariedade do pobre homem que salva a vida da mulher.” “A verdade então é se a Justiça funcionasse neste país, os dois deveriam estar presos, e nada disto teria acontecido.” “E a vida desse herói não valeu nada. Só a ficha corrida?” 

Tudo indica que nenhum dos três se conhecia. Elenilza entrou na Sé para rezar, Luís para fugir da polícia, Francisco morava na praça e subiu as escadas para virar o “herói da Sé”.

Na versão do Diário de São Paulo de 05/09/2015, as últimas palavras de Francisco teriam sido: “Antes de eu morrer, vou ficar para a história e ser herói aqui na Sé”. A sentença lapidar, se de fato existiu, teria sido dita ao amigo Kevin Matheus Silva, de 18 anos, antes de Francisco salvar a mulher. Segundo Kevin, que também é morador de rua, o amigo sempre dizia que queria ser lembrado e ficar para a história: “Ele fez sua missão como queria. Sua atitude será lembrada para sempre.” Em outro depoimento colhido pela reportagem, a também moradora de rua Kátia Lúcia Bezerra dos Santos, 36 anos, afirma que Francisco era conhecido como pai de santo, porque frequentava um centro de umbanda. “Ele era um homem bom e divertia todo mundo aqui. Ele representou os moradores em situação de rua. Somos discriminados, humilhados e chamados de drogados. Mas foi um de nós que salvou a vida dessa mulher. Meu amigo foi um herói”, disse Kátia, emocionada.

Justificando a ação duvidosa da polícia, o apresentador repete: “Eu digo o que eu faria [se estivesse no lugar dos policiais]: eu faria o mesmo. Eu atiraria no cara. Mas eu não pensaria nem meia vez! Eu atiraria no cara”.

Datena, como é mais conhecido o âncora, apresenta o noticiário de segunda a sábado. Normalmente, são três horas diárias de programa nas quais, o que se vê, além de informações sobre o trânsito e a meteorologia, é uma espécie de mantra do senso comum em que são repetidos os velhos chavões do jornalismo policialesco: “Bandido bom é bandido morto”; “Os direitos humanos só servem pra ajudar ladrão”; “Cadê os direitos humanos das vítimas?”; “Quero ver se fosse sua filha ou a sua mulher”; “Tá com pena? Leva pra casa!”

Há também um enfoque reiterado na suposta necessidade do recrudescimento das leis penais brasileiras, consideradas “fracas” e “antiquadas”, e a tradicional demonização e simplificação do problema das drogas, questão fundamental na economia da violência no Brasil. Observa-se ainda, uma relação de bajulação e dependência com as polícias, em especial com o que poderíamos chamar de baixo clero policial – já que o bom relacionamento com a instituição garante o material de trabalho e a circulação em prisões, delegacias e cenas de crime. Note-se, são três horas diárias (em média, já que o horário do programa é bastante flexível), seis dias por semana, em que se repetem pela voz e imagem de um único enunciador os mesmos refrães. Além do envenenamento lento e paulatino da bílis supostamente cordial do brasileiro, há um óbvio acúmulo de capital político, usado conforme as conveniências conjecturais. Criar heróis e monstros e justificar a ação nem sempre republicana da polícia – fórmula antiga com nova roupagem.

Mas não se deve desprezar no cenário atual o papel das novas mídias e tecnologias. Há que se interpretar as estratégias de manutenção de audiência frente à concorrência das redes sociais – muito mais permissivas quanto à censura do horror e do abjeto. É neste estado de coisas que ganha espaço cada vez mais evidente na TV aberta e nos sites da grande imprensa a repetição da cena traumática. Assim, tem-se na verdade uma dupla repetição conjugada operando, a do discurso reacionário tradicional e a das cenas traumáticas multiplicadas por uma infinidade de novos recursos tecnológicos e câmeras cada vez mais acessíveis e onipresentes. 

Em nota, o padre Luiz Eduardo Baronto, da Cúria da Catedral da Sé, lamentou as mortes: “o triste acontecimento nos fala de modo trágico de como a violência não é solução para resolver situações de conflito, quaisquer que elas sejam”. O pároco afirmou que na Catedral se reza “em sufrágio dos que perdem a vida nas tragédias e violências de todos os dias” e convidou a todos para “suplicar a Deus para que a paz se restabeleça em nossa cidade e cenas com essa não venham se repetir”.

Segundo o portal G1, em 06/09/2015, a esposa de Francisco, Izabel Pereira Rodrigues, 57 anos, e mais dez parentes estiveram presentes ao enterro realizado no Cemitério Dom Bosco, em Perus, na Zona Norte da cidade. “Ele foi realmente um herói. Já tentou apartar brigas de vizinhos também”, contou a sobrinha, Ione Gabriela Reis, 19 anos. A mulher do sem-teto afirmou também que Francisco tinha o costume de intervir em brigas: “Eu inclusive o alertei algumas vezes de que ele arrumaria confusão por conta dessas intromissões”.

Francisco tinha quatro filhos, um deles falecido, quando resolveu subir aquelas escadas. Era casado, mas abandonara a família havia dez anos para viver entre abrigos, a escadaria da Sé e o Pátio do Colégio. Para todos os efeitos, era pedreiro. Tinha uma ficha policial razoável, iniciada em 1980 com um crime de morte. Especulou-se que Francisco e Luís talvez se conhecessem, do crime ou da praça; que Elenilza e Luís teriam um caso. Mas a versão mais aceita foi a de que Luís entrou na igreja fugindo de um policial e escolheu um refém ao acaso. 

Francisco chegava em “casa” quando viu aquela bagunça e pensou… 

Pensou? O que passou pela cabeça de Francisco?

O tempo também passa, as notícias se acumulam e entre tantos crimes, chacinas, abusos, achaques e escândalos a memória do pesquisador se atrapalha. Neste dia 4 completam-se seis anos desses acontecimentos. Quem se habilita a pensar a violência no Brasil tem que ter memória boa e estômago forte. O material é farto, melancólico, traumático, nauseante, desanimador… De 2015 pra cá, o que era uma perspectiva de reversão das escassas conquistas na área da segurança pública no país, desde a redemocratização, transformou-se, a cada nova manchete, numa realidade ainda mais sombria e, o que é pior, desejada por boa parte da população. O que nos leva à relação intrínseca entre segurança pública e estabilidade democrática no Brasil.

Parcela significativa desse material – que infelizmente logra moldar corações e mentes em larga escala – é composta pelos programas policiais. O sucesso de audiência desses noticiários, frequentemente, corresponde ao sucesso político de seus caricatos apresentadores, e aponta para um aspecto contraditório e alarmante da realidade brasileira. Como fica claro no estudo de Teresa Pires do Rio Caldeira, Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo (2000), “no Brasil, a democracia política não trouxe consigo o respeito pelos direitos, pela justiça e pela vida humana, mas sim, exatamente os seus opostos”. Infelizmente, a expansão da cidadania política correspondeu a uma crescente deslegitimação da cidadania civil, campo em que “a democracia deitou raízes de forma apenas relutante.”

Cabe ressaltar que entre os grupos sociais que reagiram mal à nova configuração dos direitos civis não estão apenas as elites, como seria de se esperar, mas também parte significativa daqueles que são as vítimas preferenciais da violência, seja da polícia, seja do bandido. Nesse sentido, o conceito de democracia disjuntiva, mencionado no trabalho de Caldeira, torna-se interessante para definir aspectos contraditórios do processo democrático, especialmente no caso de países que passaram por transições democráticas recentes. A questão da criminalidade, as formas de combatê-la e o desrespeito pelos direitos individuais e pela justiça por parte de quem deveria preservá-la tornou-se o “principal desafio à expansão da democracia brasileira para além do sistema político”.

O impasse notório diante dessa questão talvez começasse a se resolver com o reconhecimento da centralidade e da persistência do problema da “violência institucional como categoria fundamental à compreensão do fenômeno da violência urbana”, como faz, por exemplo, Alessandra Teixeira, em sua tese Construir a delinquência, articular a criminalidade: um estudo sobre a gestão dos ilegalismos na cidade de São Paulo (2012).

Longe de estabelecer essas relações, o noticiário policial em geral, especialmente sua versão televisiva, opera quase sempre no modo suprassumo-do-senso-comum, entre o cinismo e a desfaçatez, e se entremeia ao que Caldeira chama de a “fala do crime”, que são todas as narrativas cotidianas, comentários, conversas, debates e até mesmo brincadeiras e piadas que adotam o crime e o medo como tema e visam, no fundo, promover a reorganização simbólica de um universo perturbado pela experiência desorganizadora da violência. Essas “narrativas de crimes recontam experiências de violência e, ao fazer isso, reorganizam e dão novo significado não apenas às experiências individuais mas também ao contexto social no qual ocorrem”. Como os programas policias, a “fala do crime” funciona, preferencialmente, em clave monocórdia e maniqueísta.

Caberia então pensar no papel que a repetição ocupa nesses discursos, especialmente na mídia especializada. O advento dos celulares com câmera, das redes sociais e a multiplicação astronômica das câmeras de segurança inflacionou a oferta dos flagrantes de imagens violentas repetidas ad nauseam tanto por veículos de imprensa tradicionais quanto por amadores. Brigas, assassinatos, abusos, atropelamentos e linchamentos são reproduzidos praticamente sem elaboração verbal, quando não são comentadas com um cinismo de fazer arder olhos e narizes. Além disso, essas imagens ficam à disposição (ad eternum?) na internet, e podem ser revisitadas a qualquer tempo. 

De maneira simplista, poderíamos dizer que a repetição tem um papel dúbio diante do quadro traumático. Se, por um lado, ela funciona como atenuante, mitigando o impacto sobre o aparelho psíquico, trabalhando no sentido de acostumá-lo ao choque da experiência traumática, por outro, ela é sempre o reviver intenso dessa mesma experiência. Tal como se configura atualmente, o jornalismo policial no Brasil, sobretudo o televisivo, e seu corolário, a circulação das imagens violentas nas redes sociais (que pode ser incluída como uma nova forma significativa de “fala do crime”), assemelham-se muito à definição do sonho traumático, em que o fracasso da elaboração onírica dá lugar à literalidade da repetição imagética, a posteriori, do “instante sempiterno, infinitamente revisitado”, como disse Paulo Cesar Endo, num artigo de 2012, “Elaboração onírica, sonhos traumáticos e representação na literatura de testemunho pós-ditadura no Brasil”. Essa exposição contínua ao excesso tem como efeito reflexo mais imediato uma intensificação da sensação de medo e alerta. Ao colocar o crime ou o evento traumático no centro da organização do discurso, essas narrativas do cotidiano tanto combatem, no plano psicológico individual, quanto reproduzem, no plano coletivo, os efeitos da violência.

Seis anos depois, a pergunta ainda ecoa: o que passou pela cabeça de Francisco?

Como milhares de rostos apagados em São Paulo, Francisco renunciou a uma vida de tropeços para mergulhar no anonimato definitivo da “grande boca de mil dentes”. Renunciou à família e à casa própria. Aos filhos, que não via há mais de dois anos. Na sacola ele carregava os equipamentos que usava para fazer bicos de pedreiro. Talvez carregasse também culpa, arrependimento?

Todas as vezes que revejo essas imagens penso em outro “renunciador” da cultura brasileira, assim identificado por Roberto DaMatta em Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro (1978) – Augusto Matraga.

Assim como Francisco, Matraga não era nada. Mas era Estêves, Augusto Estêves, filho do Coronel Afonsão Estêves. Tinha uma família e uma história que deixou para trás muito antes de se imolar pela vida de desconhecidos.

Para DaMatta, ao narrar o “ato de renúncia” de Nhô Augusto, João Guimarães Rosa introduziu na cultura brasileira letrada “um elemento fundamental do mundo social brasileiro”, dificilmente percebido, inclusive nos estudos que procuram interpretar a nossa formação. Em “A hora e vez de Augusto Matraga”, o protagonista, ao desistir da vingança pessoal, abdicar de seus “direitos” de mandatário local e enveredar pela vida de andarilho beato (que também pode significar “o fio que foge da trama de um tecido”, segundo o Houaiss), apresentaria uma “saída pessoal e subjetiva para o problema da luta social no mundo brasileiro” e atualizaria uma “possibilidade socialmente dada e legitimada pelo sistema: a rejeição absoluta de tudo”.

Para o sociólogo, personagens como Matraga e Antônio Conselheiro – contraponto histórico e modelar de renunciador – encontraram na rejeição completa dos papéis sociais uma forma de reagir à ordem estabelecida. A renúncia estaria então ligada a uma possibilidade concreta de individualização (indivíduo aqui entendido como o sujeito weberiano moderno das relações impessoais, que se contraporia, no jogo dual identificado por DaMatta na sociedade brasileira, ao mundo personalista das relações de compadrio e amizade). Ocorre que se estivermos certos em nossa comparação, uma breve passada de olhos na vida de Francisco é suficiente para minar um pouco daquele otimismo tímido embutido nas colocações damattianas. Não parece que Francisco, quando decidiu ficar só com sua sacola, ou Nhô Augusto, só com seu jumento, tenham adentrado, no que diz respeito à esfera pública, num mundo de relações mais impessoais ou igualitárias, sob qualquer ponto de vista. Não obstante o tempo que separa a estória de Matraga da história de Francisco, o caminho da renúncia não parece ter aberto grandes brechas na parede de exclusão brasileira. Nesse sentido, contrapor literatura, realidade e teoria, produz, como primeiro efeito, certo aterramento de qualquer devaneio culturalista. Sem embargo de permanecerem válidas e produtivas as reverberações simbólicas dessa comparação.

Ajude a Ponte!

Na parte que me cabe dessa mistura, sempre que reenceno na memória aquele auto tão típico e representativo do esgarçamento do tecido social brasileiro, imagino Francisco gritando pra si “as palavras todas e os nomes imorais que aprendera em sua farta existência”: “– Epa! Nomopadrofilhospritossantamêin! Avança, cambada de filhos-da-mãe, que chegou a minha vez!”. “– Eu vou p’ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!… E a minha vez há de chegar… P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!…”. Porque “cada um tem a sua hora e sua vez”.

“Ô gostosura de fim-de-mundo!”, talvez tenha pensado Francisco, quando deixou o cigarro cair da boca, com a certeza da vitória que só tem quem não tem nada a perder. Aproveitando sem pensar a chance de fazer a coisa certa, reverter os pecados todos pelo ato de heroísmo cavalheiresco, quem sabe se não disse baixinho: “Põe a benção na minha filha… seja lá onde for que ela esteja… E, [Izabel]… Fala com [Izabel] que está tudo em ordem! Depois, morreu”.

*Reinaldo O. Hening é bacharelem estudos literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutor pelo Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP)

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