Coordenador do movimento Policiais Antifascismo do estado, o cabo Vinícius Querzone de Oliveira Sousa está sendo acusado de transgressão disciplinar por defender pautas como o antifascismo e a descriminalização das drogas
A Polícia Militar do Espírito Santo instaurou um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra o cabo e coordenador do Movimento Policiais Antifascismo do estado, Vinícius Querzone de Oliveira Sousa, 32 anos, nesta sexta-feira (29/10). O instrumento foi aberto por meio da Portaria nº 0097/2021 e foi assinado pelo corregedor coronel Moacir Leonardo Vieira Barreto de Mendonça ainda em agosto.
Querzone, que tomou conhecimento do processo na sexta (29), após a assinatura do capitão da PMES Sydnei Machado Junior, diz que se sente perseguido dentro da corporação. “Em 2019 teve um congresso do Movimento Policiais Antifascismo no Recife e assim que eu cheguei, no outro dia eu fui transferido do meu setor, sem justificativa, eles fazem uma espécie de perseguição velada”, conta.
Lotado no 1º Batalhão da PM, Vinícius é policial desde 2011 e é acusado de “conspurcar (ou manchar) a imagem da corporação”, de ter “publicado conteúdo que ‘atente contra a hierarquia’” e ainda de “autorizar, promover e participar de manifestação criticando autoridade militar ou civil com termos ofensivos, pejorativos ou desrespeitosos”, incluídas nos artigos 65 e 66 do Código de Ética da PMES.
A acusação se sustenta ainda, segundo o corregedor, no artigo 43 da Constituição do estado, que diz que “o militar em serviço ativo não poderá ser filiado a partido político nem exercitar atividade político-partidária”. O processo de Querzone ocorre a menos de dois meses após um processo semelhante ter sido movido contra o capitão Vinícius Sousa, também do ES, conforme divulgado pela Ponte em agosto deste ano.
Parte do processo administrativo contra Querzone se baseia na reportagem “Membros da Segurança Pública no ES se engajam em movimento contra o governo federal”, publicada pelo portal de notícias Es Hoje em junho de 2020. No texto Querzone explica de forma geral como se deu a construção do movimento Policiais Antifascismo no estado e das pautas propostas pelo coletivo. Além dessa notícia, imagens do perfil “Policiais Antifascismo ES” do Instagram foram inseridas no processo. Em uma das postagens anexadas o policial assina um dos ofícios de apresentação do movimento a lideranças de trabalhadores da segurança pública, no qual não há menção a nenhum partido político.
Em outra publicação anexada no PAD, Querzone aparece em uma fotografia com outra integrante do movimento, Maria Helena Cota Vasconcelos, em junho de 2020. No texto da postagem os integrantes afirmam que “fizeram a primeira apresentação do Movimento Policiais Antifascismo no Estado do Espírito Santo”.
Fora isso, o post informa que os dois integrantes “visitaram a Associação dos Cabos e Soldados, a Associação dos Subtenentes e Sargentos da PM e Bombeiro Militar, a Aspomires, a Associação dos Bombeiros Militares e o Sindipol, onde também encontraram o diretor da Aepes, e a Assomes”. Por fim o texto afirma que as visitas foram muito “estimulantes e proveitosas”.
Há ainda entre os anexos uma postagem do policial se vacinando e protestando contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Em outra ele aparece em um vídeo no qual convida as pessoas a conhecerem o Movimento Policiais Antifascismo e apresenta as pautas do coletivo, entre elas, a reestruturação da segurança pública, a desmilitarização da polícia, o ciclo completo, a carreira única e a legalização e regulamentação das drogas.
Segundo o cabo, o que está público nas páginas do movimento é basicamente a apresentação das pautas, que são propositivas. “Fazemos uma leitura crítica da segurança pública e ela passa por propor um outro modelos e nesse processo eles colocam que isso é algo ofensivo a instituição, a PM, a ética, aos princípios e valores da instituição. Querem pegar a gente de todo o jeito, de todas as formas”, lamenta.
As perseguições, diz Vinicius, são veladas e uma das formas para limitar suas opiniões foi por meio de uma transferência da reserva de armas do 1º Batalhão para a 5ª Companhia do 1º Batalhão. “Fui transferido para um lugar mais distante da minha residência que ia me trazer implicações, onde eu estava era o lugar ideal para eu fazer o mestrado por conta da escala. Eles me tiraram logo depois do congresso do Movimento, eles já fazem a coisa para nos punir mesmo, para intimidar, mas vamos fazer a defesa”, diz Querzone.
O policial iniciou a trajetória no Movimento Policiais Antifascismo do ES em 2018 e depois deste processo pretende se defender também de forma política, tentando um diálogo com o governador do estado Renato Casagrande (PSB). “Vamos lutar de todas as formas para conseguir fazer uma defesa contundente do ponto de vista jurídico evidentemente, mas também do ponto de vista político, estamos tentando articular uma reunião com o governador, vamos expor isso para ele além de apresentarmos o movimento. Vamos colocar para ele essa perseguição política ao nosso movimento e o que ele pode fazer para cessar isso, é o caminho mais potente.”
Manifestações de policiais com teor político em redes sociais são frequentes, inclusive profissionais da segurança pública que se manifestam favoráveis a pautas antidemocráticas são recorrentemente divulgadas em redes sociais. Como revelou a Ponte em uma reportagem, o capitão Evandro Guimarães Rocha, oficial da ativa do 12º Batalhão da PM de Rio Bananal, no Espírito Santo e o tenente-coronel Gunther Wagner Miranda, comandante do Comando de Polícia Ostensiva Sul chegaram a pedir o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF), além de pedir a prisão e o impeachment de ministros da corte.
Além dos dois militares, os capitães Olival Martinelli Tristão de Oliveira, da Cavalaria, e Rafael Sant’Anna Reis e o major Weverson Mariano são citados na reportagem criticando o Supremo. Sob pena de detenção de dois meses a um ano, o novo Código de Ética da PMES, implementado em 2020, proíbe qualquer tipo de manifestação política para militares da ativa, seja de serviço ou de folga, além de constituir crime tipificado no artigo 166 do Código Penal Militar, que trata de publicação ou crítica indevida. O texto considera a infração ao “publicar o militar ou assemelhado, sem licença, ato ou documento oficial, ou criticar publicamente ato de seu superior ou assunto atinente à disciplina militar, ou a qualquer resolução do Governo”.
Querzone considera que o Código de Ética é usado de forma incoerente, uma vez que policiais que se manifestam favoráveis a pensamentos conservadores. “O que a gente tem hoje no nosso Código de Ética vai ser usado ao bel prazer deles, inclusive eles têm ignorado uma série de manifestações conservadoras, à direita que setores da segurança pública e policiais têm ignorado completamente. Existe uma decisão política de utilizar esse regulamento ao bel prazer, é uma escolha.”
Afronta à liberdade de expressão
Advogado de Querzone, Antônio Átila Carvalho Ramos considera que as acusações contra o cabo são infundadas e vão em sentido contrário a o que preconiza a Constituição Federal. “A Constituição Federal no seu artigo 5º, inciso IV, afirma: é livre a manifestação de pensamento, sendo vedado o anonimato. A Constituição ainda vai além nos incisos seguintes ao trazer que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política e ao defender que é livre a expressão da atividade de comunicação, independente de censura ou licença.”
Segundo ele, a polícia não é homogênea e o policial tem senso crítico, opinião, como qualquer outro cidadão. “A polícia é feita de trabalhadores, cidadãos e precisa ter seus direitos respeitados, bem como precisa respeitar o direito de todos. A manifestação feita pelo militar é respeitosa e fundamentada e isso demonstra que há uma arbitrariedade na eventual punição do militar, já que não há como considerar as manifestações do militar como atos de indisciplina”, esclarece. “O militar supracitado não participou de atividade político-partidária. O cidadão está vinculado ao princípio da legalidade que consiste no fato de que alguém só está obrigado a fazer, ou deixar de fazer, alguma coisa, em virtude de lei. O cabo praticou democracia e não favoreceu nada que não fosse o Estado Democrático de Direito.”
A Constituição do ES prevê em seu artigo 43, parágrafo 6º, que o militar em serviço ativo não poderá ser filiado a partido político nem exercer atividade político-partidária. Todavia, ele frisa: “O cabo Querzone não participou de qualquer atividade político-partidária. Afinal ser contra o fascismo deveria ser inerente a qualquer policial. Indo além, a rejeição ao fascismo e suas variáveis deveria ser requisito de qualquer ação policial”, diz Ramos.
Com relação à defesa, o advogado diz que irá trabalhar no intuito de provar a inocência do policial. “O cabo Querzone tem dez anos nas fileiras da polícia militar e sempre foi um profissional exemplar que, inclusive, busca capacitação que vá além das mínimas exigidas para o cargo. Além de policial, é pai de família e cursa mestrado na Universidade Federal do Espírito Santo.”
O registro de uma punição macula gravemente o histórico disciplinar do militar e traz prejuízos no acesso a cursos, funções, cargos e promoções, explica Ramos. “É preciso considerar que a disciplina é um pilar institucional. Portanto, há um prejuízo à carreira do policial que, no caso, seria de grande injustiça. O exercício de direitos de cidadania é algo louvável, necessário à saúde da democracia, jamais uma indisciplina. Trata-se de uma ação arbitrária que afronta o exercício de direitos fundamentais e marginaliza os movimentos sociais.” Para ele, não houve a prática de transgressão disciplinar por parte do Cabo Querzone, e, em consequência, deve-se arquivar o procedimento administrativo instaurado.
Na visão de Robson Rodrigues, coronel da reserva da PMERJ (Polícia Militar do Rio de Janeiro), o ato de um policial se posicionar contra o fascismo deveria ser uma obrigação de todos. “O fato de ser antifascista, é se posicionar contra um crime, o crime do fascismo, não tem nada demais, pelo contrário. O que não pode é usar da própria opinião para imputar crimes a outras pessoas. O que é reprovado, criminalmente, é fazer uma apologia de crime”, analisa.
Rodrigues pondera que a instituição deverá provar onde Querzone feriu a ética da profissão. “E ele tem todo o direito de se defender dentro dos princípios da legítima defesa, da ampla defesa e do contraditório, que são direitos assegurados a qualquer funcionário público submetido ao devido processo legal. Se ele sentir que a ampla defesa e o contraditório for cerceado cabe a ele entrar na justiça imediatamente.”
A situação de processos frequentes contra policiais do Movimento Policiais Antifascismo do ES, a ausência de fundamentação e a violação à liberdade de expressão dos policiais são elementos observados pela advogada Juliana Vieira dos Santos, que acompanha os casos pela Rede Liberdade, um projeto que reúne advogadas e advogados para a atuação jurídica em casos de violação de direitos e liberdades individuais. “A gente já tem notícias de pelo menos três casos de processos administrativos disciplinares contra policiais do Espírito Santo, que se identificam com o Movimento Policiais Antifascismo e que estão sofrendo perseguição em suas corporações pela simples divergência de opinião política em relação ao restante da corporação. Isso é muito grave, não tem nenhum elemento que justifique esses processos.”
Juliana diz que em geral as acusações são vazias de policiais que simplesmente compareceram em manifestações contra o governo federal, ou que se manifestaram publicamente contra o governo, ou a favor de algum tipo de melhoria na implementação das polícias. “Não houve qualquer violação de hierarquia ou infração disciplinar que justifique esses processos”.
Há duas questões importantes, uma delas é que não é vedado ao PM o direito de crítica, em geral, ou de manifestação, conforme o artigo 166 do Código Penal Militar, que protege a hierarquia militar. “Ele está dentro de um título de crimes contra a disciplina militar e no capítulo sobre insubordinação, então o bem jurídico que ele protege é exatamente a hierarquia, ele visa impedir que o militar da ativa atue contra os seus superiores e nesse tipo penal tem que ter algo concreto que diz respeito à hierarquia e não questões genéricas, como a participação em manifestações, ou a manifestação sobre como deveria ser uma determinada política, isso não é desrespeito a hierarquia”, explica.
Outro ponto levantado por ela é que não existe um dispositivo que impeça uma crítica geral, ou genérica contra políticas públicas, ou contra o governo federal que não está na cadeia de hierarquia e disciplina dos policiais militares estaduais. “A PM é formada por pessoas diversas, que pensam de formas diversas e isso é positivo para a própria instituição.”
Segundo a advogada, a Rede Liberdade avalia que o próprio Código de Ética da PMES tem identificado que a liberdade de expressão está ali protegida ali também. “No artigo 36 parágrafo 4º, o código diz que acerca das circunstâncias que excluem a infração disciplinar sendo uma delas o ‘exercício regular de um direito’. É um absurdo ver a instauração de simulacros de processos administrativos que têm o único objetivo de punir policiais exemplares, simplesmente por suas opiniões políticas manifestadas fora do horário de serviço. O que ocorre no ES é gravíssimo”, pontua.
Outro lado
A reportagem questionou o Capitão da PMES Sydnei Machado Junior e o Corregedor Moacir Leonardo Vieira sobre quais são os fatos de transgressão da disciplina cometidas pelo policial e por que tais fatos se enquadram em transgressão. A Ponte também pediu um posicionamento sobre as postagens dos policiais que se manifestam favoráveis a pautas antidemocráticas. Até o momento as questões não foram respondidas.