No Rio, juízes divergem sobre aplicação da Lei Maria da Penha entre lésbicas

Mulher teria ameaçado a ex-companheira após o término do relacionamento; dois magistrados se declararam incompetentes para julgar o caso

Foto: Unsplash

Um conflito na Justiça do Rio de Janeiro, em outubro, reacendeu o debate sobre a aplicação da Lei Maria da Penha em casos de violência doméstica envolvendo casais lésbicos. Dois juízes, de varas diferentes, divergiram sobre a questão e se declararam incompetentes para julgar o caso.

A situação ocorreu na Comarca de São Gonçalo, região metropolitana do Rio. Segundo a denúncia feita pelo Ministério Público, uma mulher teria ameaçado a ex-companheira após o término do relacionamento. A vítima relatou agressões e crises de ciúme.

Na sua decisão sobre o caso, o juiz Gabriel Stagi Hossmann, da Vara da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, reconheceu o vínculo afetivo entre as partes, mas não considerou a existência de violência de gênero no conflito. “Não se pode dar a simples desavenças entre familiares ou conviventes o mesmo tratamento dado às vítimas de violência de gênero que são aquelas para as quais realmente foi editada a Lei Maria da Penha”, escreveu ele. O processo, então, foi encaminhado para a justiça comum.

Em 18 de outubro, o juiz que recebeu o caso, André Nicolitt, do Juizado Especial Criminal, discordou do colega, dizendo que “a Lei Maria da Penha cuidou da violência baseada no gênero e não vemos qualquer impossibilidade de que o sujeito ativo do crime possa ser uma mulher”. Para Nicolitt, “a cultura machista e patriarcal se estruturou de tal forma e com tamanho poder de dominação que suas ideias foram naturalizadas na sociedade, inclusive por mulheres.”

Na opinião de Nicolitt, o que configura violência de gênero não é o sexo do agressor, mas a “coisificação” da mulher enquanto vítima.

Desde então, o caso aguarda uma manifestação do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), que vai definir a qual juiz compete o julgamento da ação afinal.

Posições de outros tribunais

Apesar de a Lei Maria da Penha não fazer restrição ao gênero do agressor, a polêmica da sua aplicação em casos de relações domésticas entre duas mulheres é antiga. Em 2014, em caso semelhante ao do Rio de Janeiro, os desembargadores da quinta turma do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) decidiram que “o fato de a agressora ser do sexo feminino afasta o tratamento legal especial”.

Já no Amazonas, em 2020, a Justiça Estadual firmou entendimento de que a Lei Maria da Penha pode ser aplicada em relações “homoafetivas” (entre duas mulheres). No mesmo sentido também decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), na Súmula nº 114, afirmando que “tanto o homem quanto a mulher podem ser sujeitos ativos da violência, figurando como sujeito passivo apenas a mulher.”

O STJ (Superior Tribunal Justiça), responsável por uniformizar a interpretação da lei federal, também já decidiu reiteradamente em favor dessa tese. Para a Corte, só a mulher pode ser alvo de proteção da Lei Maria da Penha, mas o gênero do agressor pode ser qualquer um.

Não basta — a vítima ser mulher?

“Se a violência se der dentro do ambiente doméstico, familiar não há dúvida de que a Lei Maria da Penha deve ser aplicada. Inclusive o parágrafo único do art. 5º determina a aplicação desta independente da orientação sexual [da vítima]”, afirma a advogada Gabriela Nery. Para ela, a única explicação de ainda não haver consenso é o preconceito.

O mesmo conclui Juliana Rocha, lésbica e também advogada. “A interpretação ultrapassada [da lei] se deve à visão heteronormativa que a sociedade tem, presumindo o gênero masculino sempre como detentor do poder financeiro, físico, sentimental e sexual, o único possível agressor, e tornando invisível a realidade de violência que também existe em relações lésbicas”, analisa.

Rocha ressalta ainda o fato de a maioria dos juízes de direito serem homens brancos e pertencentes a uma classe social privilegiada economicamente. “Essa realidade, sem sombra de dúvidas, dificulta a formação de entendimento mais abrangente e inclusivo.”

De acordo com Nery, a aplicação da Lei Maria da Penha entre casais lésbicos “deve ser uma pauta dos movimentos de mulheres e de quem defende os direitos humanos e liberdades individuais. Lutar pela aplicação da lei para mulheres lésbicas e trans é respeitar e garantir a aplicação dos princípios constitucionais”.

Legislação

A Lei Maria da Penha foi sancionada em 7 de agosto de 2006 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Seu principal objetivo é coibir e punir a violência contra a mulher praticada no ambiente doméstico.

Nos 46 artigos da legislação, é criminalizada a violência física, psicológica, moral, sexual e patrimonial contra a mulher e são estabelecidas políticas públicas, medidas protetivas. Basta que entre agressor e vítima haja unidade doméstica, relação íntima de afeto ou que estejam no mesmo âmbito familiar.

O nome da lei é uma homenagem à farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, ativista que lutou pela condenação do seu ex-marido, que tentou matá-la duas vezes (a tiros e eletrocutada). Penha ficou paraplégica, mas sobreviveu às agressões e engajou-se no combate à violência doméstica.

Saiba aqui como denunciar e ajudar vítimas de violência contra mulher.

Reportagem originalmente publicada na Agência Diadorim

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