Em entrevista, a psicanalista e ex-candidata à prefeitura de Curitiba afirma que o conceito de gênero deve ser abolido
Não é muito comum ver mulheres trans chegarem aos 70 anos de Leticia Lanz. Ainda menos comum, são aquelas que tem a abertura para lançar um livro contando suas memórias. Lançado pela Companhia das Letras em outubro, A construção de mim mesma: uma história de transição de gênero reúne em 110 páginas os momentos chave da vida da psicanalista, economista, especialista em Gênero e Sexualidade pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e mestra em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), ativista e candidata a prefeita de Curitiba nas eleições de 2020, sobretudo a partir da ótica de sua transição quando se percebeu ela mesma, sem rótulos. No livro, ela afirma: “Eu me chamo de eu, vocês chamam do que quiserem”, buscando romper com a ideia de binarismo de gênero que, ela aponta, segue vigente para algumas pessoas trans que querem performar sua identidade conforme os padrões binários da sociedade.
Contra a corrente, ela é pai de três filhos e avô de cinco netos, além de seguir casada com sua companheira, Angela. “Eu nunca tive problema com os papéis que eu sempre exerci’, afirma Leticia. “Meu problema não era com isso, como também não era com orientação sexual. Eu era uma pessoa que sempre quis ser mulher e queria ficar com mulher também”. De acordo com ela, esse posicionamento sempre gerou críticas dos movimentos transgênero. “Diziam que eu prestava até um desfavor à causa, mas que causa? A causa que eu defendo é a causa de a pessoa ser o que ela é”.
Ao longo da entrevista que deu à Ponte, Leticia fala sobre seu livro, explica a diferença entre escolha e identificação e lança um olhar ao panorama caótico brasileiro que vê “com muita tristeza, com muita dor, com vontade de vomitar, para ser mais exata’.
Ponte – Como surgiu a ideia para o livro como que nasceu essa primeira ideia?
Leticia Lanz – A ideia do livro partiu da editora, Fernanda Pantoja, da Companhia das Letras. Há mais ou menos uns quatro anos a mãe dela assistiu o episódio da série Liberdade de gênero que contava a história da minha família e gostou muito. E como a Fernanda coordena uma série com diversos depoimentos de pessoas, ela entrou em contato comigo e perguntou se eu gostaria de escrever a história que tinha sido apresentada. Fiquei muito honrada com o convite de uma editora peso. O primeiro momento foi de muito entusiasmo. O momento seguinte, de total desespero. Uma coisa é você filmar aquela história. Outra coisa é escrever, porque a cada escrita ia trazendo de volta muita coisa. Era mergulhar numa realidade que, ao mesmo tempo que eu sou grata, é também desconfortável e dolorida. Por várias vezes terminei de escrever chorando. E a Fernanda foi simplesmente notável e o livro é assim por causa do empenho dela. Levamos quatro anos e, por várias vezes, eu queria declinar, sabe? No final, quando eu li pela última vez, a versão já impressa, vi que era uma boa história. Achei que era uma história real e, por coincidência, eu sou a protagonista.
Ponte – Como você se sentiu durante sua transição?
Leticia Lanz – Quando eu comecei a transicionar, perdi todos os clientes. Não sobrou nada e não foi assim uma perda de jogar pedra na Geni. Sabe aquele silêncio obsequioso? Você não existe. Eu nunca senti com tanta intensidade essa coisa chamada invisibilização. Ponha-se na pele de uma pessoa negra, pobre, periférica, limpando banheiros num restaurante de classe A. É mais ou menos isso, ela é invisibilizada, ela não existe, ela faz parte daquele mecanismo marginal que está ali. Então, de repente, de uma pessoa conceituada eu virei um zero à esquerda sem nenhuma representação. Do outro lado, me vinham as cobranças desse tipo: “para você é fácil”. Fácil o quê? Eu perdi todo o status que eu tinha, perdi 30 anos de trabalho, nunca mais me chamaram. Inclusive chamam pessoas que não são trans para poder falar sobre pessoas trans dentro das organizações. Não fui colocada dentro dessa nova categoria, fui simplesmente alijada do processo como ninguém. Então, havia esse conflito. Diziam, por um lado, que eu era uma sobrevivente indevida porque estava com mais de 35 anos, estava com 50. Do outro lado, nessa ideia de uma culpa que não me era devida porque eu estava vivendo ali como vitima, eu perdi tudo.
Quem segurou a casa, quem cuidou de pagar a conta foi minha companheira. Você quer ver uma coisa terrível que eu passei? Foi quando eu trouxe para o Brasil a expressão transgender, que foi criada por um sujeito de esquerda, um transhomem, um canadense que mora nos EUA. Eu trouxe, mas eu fui tão apedrejada. “Você quer acabar com a identidade de travesti” Gente, transgênero não é a identidade, é uma categoria que se opõe a cisgênero, é uma categoria que nos obriga a pensar assim como você fala branquitude e negritude. Eu tenho que pensar macro para agir micro. Travesti é uma conquista nacional, uma identidade transgressiva de gênero, uma transidentidade. Hoje, tão tudo pondo “trans” aí. O que me irrita é isso: um dia te joga pedra, no outro dia faz com a maior naturalidade. É capaz de falar: “ainda bem que nós trouxemos”. Eu sei que não trouxe porque a partir da internet tudo está registrado. Você pode recuperar todos os debates, todas as críticas, todos os xingamentos.
Ponte – No começo do livro, você faz a distinção entre escolha e identificação sobre as questões de gênero. Gostaria que falasse mais sobre isso.
Leticia Lanz – Esse é um dos pontos chave dentro da psicanálise e que é pouco explorado inclusive pelos movimentos, que são obrigados a aguentar essa idiotice de dizer que uma pessoa LGBT é assim por escolha. Ninguém escolhe. Escolha, nós nos baseamos na Teoria dos Jogos, do John von Neuman. É uma teoria básica que diz as escolhas são realizadas quando existe mais de uma alternativa, pelo menos duas, e o escolhedor sempre vai escolher aquela que lhe dê mais resultado ou o mínimo de problema. Essa é a lógica também conhecida como ideal hedonista do homem: máximo de resultado com o mínimo de escolha. Então quem vai escolher uma condição de identidade de gênero transgressiva ou uma orientação sexual fora da heterossexualidade para poder sofrer? Porque a única recompensa que existe é uma sociedade com dentes afiados, bebendo seu sangue 24 horas por dia. Então, não há escolha.
Identificação é um processo completamente diferente, pois não existem alternativas. Existe apenas uma relação direta da pessoa com o objeto, pessoa ou a ideia com a qual ela se identifica. E, nesse caso, cria-se um canal de vínculo psicológico profundo. Nós não temos como explicar como esse vínculo se forma. Mas sabemos a força que ele tem quando você vê, por exemplo, um menino que resolve ser sãopaulino em dentro uma família onde só tem corintianos. O processo psicológico de identificação é muito diferente de escolha. Existe aqui uma série de dados relacionados à percepção, à base de processamento do cérebro de cada pessoa. Portanto, a escolha aqui é uma palavra que não pode ser usada.
Ponte – Tem duas frases no seu livro que chamam a atenção por se colocarem expressamente contra o binarismo. A primeira é “Eu me chamo de eu, vocês chamam do que quiserem”. A segunda é “Nem homem, nem mulher, nem trans, eu sou Leticia Lanz”. Qual é a sua percepção sobre isso?
Leticia Lanz – Quando a gente está falando de macho e fêmea, nós estamos falando de um dado, em princípio, da natureza, que, como Judith Butler mostrou, são discursos. Qual seria a noção de macho e fêmea numa sociedade que não classificasse as pessoas em função do seu potencial reprodutivo? Então, essa é uma noção inútil. Tudo não passa de práticas discursivas, como dizia o Foucault, que vão se organizando a partir da imposição da ordem vigente. Um dos problemas dos movimentos é enfrentar discurso. É uma perca de tempo, como se diz aqui no Sul, porque você fica lidando com leões de algodão que não significam nada. Essa sempre foi uma preocupação da minha parte combater não a linguagem, não o discurso, mas as práticas. Nunca me incomodei que me chamassem de Geraldo, cachorro, gato, o que quisesse, mas me incomoda profundamente quando me obrigam a chamar, a me reconhecer como “pãe”, que é uma entidade que não existe, uma contração de pai e mãe. Eu sou pai. A função social do pai é uma prática muito fundamental na sociedade. Chamar de pai ou mãe não faz a menor diferença para mim, mas a função, eu quero exercer. Como disse meu neto várias vezes, minha avó está em casa, esse é o meu avô. A criança não vê o título honorífico, mas o que representa dentro do contexto familiar.
Eu nunca tive problema com os papéis que eu sempre exerci. Meu problema não era com isso, como também não era com orientação sexual. Eu era uma pessoa que sempre quis ser mulher e queria ficar com mulher também. Homem, pra mim, é só para contar piada e tomar cachaça. A mulher sempre teve um vínculo de identificação muito forte. Não tem essa de ser 100% homem, 100% mulher porque nem mulheres nem homens que conseguem ser 100% dentro das práticas discursivas em vigor. Sempre me alinhei a esse raciocínio, eu não sou nem homem, nem mulher, nem trans, eu sou Leticia Lanz, uma construção de mim mesma, que, aliás, é o nome do livro. E isso sempre provocou muito discurso contrário e muito discurso ofensivo. Diziam que eu prestava até um desfavor à causa, mas que causa? A causa que eu defendo é a causa de a pessoa ser o que ela é. Porque estou com a Clarice Lispector: “o que eu sou ainda não tem nome” e eu ainda completo: se algum dia tiver, pode me tirar daí que não sou eu. Eu gosto muito da Judith Butler quando ela diz que os movimentos têm a péssima tendência de criar as pessoas que elas querem representar. Primeiro, descreve quem você está representando e depois, sai pelo mundo coletando pessoas para serem aquela pessoa.
Ponte – Como tem sido lidar com a onda conservadora da extrema direita?
Leticia Lanz – Eu começo fazendo uma correção. É a questão do conservadorismo e do reacionarismo. Conservador, para mim, é aquele que tem valores para conservar e tem fundamento aquilo que ele defende. Vamos pegar o rei da merda contemporâneo. Aquilo ali conserva o quê? Me conta. O que ele tem para conservar a não ser a ignorância dele? O cara não tem nada, não tem conteúdo, não tem suporte. É um idiota reacionário dentro do conceito de reacionarismo do movimento de esquerda. É aquele cara que simplesmente está agindo para manter alguns privilégios, algumas bobagens que ele adquiriu ali, alguns trambiques. É só isso, ele não tem nada. Peça a ele para defender coisas que ele diz que defende como família. Qual é o fundamento que ele tem pra isso? Tem aqui um outdoor na entrada da cidade: O agronegócio defende nosso presidente por Deus, pela pátria e pela família. Ele sabe o que é alguma dessas coisas? Então vamos chamar esses caras de reacionários.
Quanto à questão, é claro que eu me sinto humilhada pelo tanto que vivi e pelo tanto que eu estudei, as coisas pelas quais eu passei. Eu me sinto me sinto mal, me sinto agredida, me sinto humilhada. Eu perco um tempo danado com isso, leio tudo todo mundo que eu posso, vou pesquisar. E o cara vem, ouviu o galo cantar não sabe onde e começa a falar merda. E o pior: isso tem tudo para dominar a cena num país de gente reacionária, ignorante, mal preparada onde, como dizia o Darcy Ribeiro, o esvaziamento da educação não é uma crise, mas é um projeto, que hoje, inclusive, está muito bem-sucedido. Eu vejo com muita tristeza, com muita dor, com vontade de vomitar, para ser mais exata. Enfim, é o que temos para hoje. E, se a gente não lutar muito, é o que teremos para amanhã.
Ponte – De onde surgiu a narrativa da ideologia de gênero?
Leticia Lanz – Cardeal Ratzinger [que viria ser o Papa Bento XVI], Pequim, 1995. Era a primeira vez que a ONU chamava as mulheres para falar sobre o que estava ocorrendo com as mulheres no planeta. E ele representava o Vaticano, assistiu as mulheres de todas as partes do planeta falarem sobre o que aquelas estavam fazendo e ele sentiu que o processo é irrecorrível. E não tem como impedir esse processo, tem como adiar, que é o que estão fazendo por aqui. Adiar a foda dos outros, esse é o jogo deles. Então, ele exclama: “isso não tem fundamento, é ideologia de gênero”. Ideologia são ideias, e nem ideia de ideologia ele estava levantando. Estava muito mais no campo de ideias e isso ligado inclusive à revolução da mulher, a revolução “gayzista”, como eles colocam, a subversão das raças. O cara exclama isso e, de repente, a exclamação dele vira uma escola de pensamento. Eu acho que é uma escola de cagamento. E você começa a ouvir, enquadrando coisas nada a ver. Hoje, dentro de ideologia de gênero, se enquadram desde educação sexual elementar até a paridade de papéis de casa. Tudo isso é ideologia de gênero e tudo está ligado a práticas marxistas que nem eles nem sabem o que é. Há toda essa mistificação de gente reacionária porque eles não têm fundamento nenhum.
Ponte – Na sua opinião, como os movimentos progressistas podem combater o cenário reacionário e violento que vivemos?
Leticia Lanz – A primeira coisa é nós nos convencermos de que defender as identidades não é tão importante quanto defender os direitos. Tem gente que faz questão de dizer: ‘você está esquecendo as populações vulneráveis’. Não estou esquecendo. As travestis de rua que não têm como sobreviver, elas se identificaram com o mundo que não deviam ter se identificado, são transgressoras e entram num campo de vulnerabilidade. Essas pessoas não têm culpa nenhuma, a culpa é da sociedade. É como diz lá o apóstolo Paulo, eu pequei por que tinha regra, muda a regra que eu deixo de pecar. Ninguém fala isso na igreja evangélica, mas está lá em Romanos, capítulo 7, versículo 7. É claro, então, que essas identidades têm que ser defendidas. Mas isso não pode virar o pano de fundo para tudo porque aí nós caímos em um identitarismo ridículo, especialmente frente ao oportunismo dos reacionários. A segmentação é importante em termos de elaboração de políticas públicas, por exemplo. Eu não posso pensar na travesti de classe média que tem acesso à escola, que os pais compreendem o processo identificador, que cuidam, que leva a pessoa, tem uma vida bastante razoável, e comparar ela com a famosa “bicha pão com ovo”, que não se definiu na vida, que mora na periferia, que é preta, que está desempregada, que não teve oportunidade. São duas categorias muito distintas, embora a razão que as une seja a mesma: transgredir a ordem estabelecida. Nós temos que combater essa ordem para que essas pessoas sejam incluídas. Agora, na medida em que o movimento só olha para aquela identidade, negando as outras, ou pior, criando caso com as outras.
O que busco não é essa integração a um binárismo de gênero que, primeiro, é falso e, segundo, já está superado. Os movimentos precisariam, antes de mais nada, ser o que eles dizem que são: inclusivos. A minha ideia de movimento é tirar do armário, o que para mim, é dar condição da pessoa ser o que ela é, um movimento que fosse muito mais contundente em termos de afirmar a sacanagem que é manter as pessoas no armário. Armário, portanto, policia, nos obriga a abrir mão de atitudes e comportamentos que não têm nada a ver com a dinâmica da sociedade. Pelo contrário, são formas de oprimir grupos, de legislar sobre corpos, cor de pele e coisas semelhantes. E, no fundo, o que nós buscamos são direitos para o sujeito e não enaltecer o sujeito do direito. O que tem que fazer é abolir isso, mas, a curto prazo, sou totalmente favorável a defender os direitos dos negros, das putas, das pessoas periféricas. Mas nós precisamos pensar num prazo que essas categorias não façam parte do nosso discurso porque o que nós estamos fazendo é eternizar as diferenças baseadas em discurso tolos e reacionários. Nós vamos querer saber se a pessoa é competente ou incompetente, se ela tem uma visão coletiva ou é muito individualista, egoísta e isso não depende de orientação sexual, nem identidade, mas do caráter e da uma educação robusta em cima de valores humanos.
Ponte – Nas últimas eleições municipais, em 2020, você foi candidata a prefeita de Curitiba. Como foi essa experiência?
Leticia Lanz – Olha eu vejo a política assim: um lugar em que pessoas que pensam, o fazem duas antes de ir, e pessoas que não pensam coisa nenhuma, vão entrar de cabeça. É um jogo baseado, especialmente nessa era da comunicação instantânea, em impressões momentâneas, geradas por fake news, em que o jornalismo cuidadoso, investigativo, que informa, está em segundo plano até nos próprios grandes órgãos de mídia. Numa época como essa, quem vai parar na política? Os que estão lá. E quem não vai? Eu e você, por exemplo, a gente pensa dez mil vezes. Bem, no ano passado, logo no início do ano, fui convidada pelo comitê central [do PSOL] em Curitiba. Criei um caso danado com a minha companheira que não queria de jeito nenhum e que quase juntou minhas coisas e me pôs pra fora de casa. Mas eu acabei aceitando por tudo que te falei. Não era para ganhar, tem valor pedagógico. Quando eles pensam numa pessoa trans, eles veem uma travesti de rua, negra, periférica, pobre, rodando bolsinha de noite. Aqui eles vão olhar o que? Uma pessoa que tem pós, formação e, além de tudo, tem uma família estável. Tudo do jeito que eles gostam. Não cheguei do jeito que eles chegam, mas era do jeito que eles gostam.
Essa é uma oportunidade na qual a representatividade é importante para eles verem que a gente não é pouca bosta. Quando participava de debate, eles diziam: “estou vendo a que você veio”, até os opositores mesmo. Era exatamente para isso que eu vim numa cidade reacionária como Curitiba, que vai eleger um cara igual esse que está aí, um ótimo jardineiro, que adora enfeitar a cidade. Ele manda pintar um monumento que tem um monte de gente dormindo aos pés e manda a brigada da cidade remover as pessoas porque estão sujando o monumento. Ele foi eleito com esse raciocínio porque a cidade pensa assim. Então, eu não posso abrir mão de um convite. Eu tive que empreender brigas até dentro do próprio partido, uma quantidade enorme de esquerdomacho. Minha competidora abriu mão para ser minha vice e juntamos um monte de mulher. Ah, menina, mas a gente apanhou, hein. Mas do que fora, inclusive. Por causa do discurso, por causa de ser mulher, por causa de ser traveca. Até o slogan que eu queria adotar, que eu não pude, era “não vote no Greca, vote na traveca”. Eles disseram que não pegava bem e coisa e tal.
Ponte – Pretende repetir a experiência em 2022?
Leticia Lanz – Existem muitas pessoas iguais a mim momento que pensam “n” vezes. Se ocorrer de ter que participar ano que vem, será dentro desse espírito. Iria pensar muito para não entrar, mas alguma coisa ia me puxar. É a coisa que me puxa desde que eu me entendo por gente. O que vou fazer com isso? Vou negar a minha índole?
Ponte – Como tem sido para você ser uma mulher trans mais velha num país onde a violência contra pessoas trans é constante?
Leticia Lanz – Num primeiro momento, foi fonte de culpa. E o próprio movimento quis que eu sentisse isso. Eles diziam assim para mim: “como você com 50 anos vai transicionar?”. É uma pergunta, por exemplo, que não se fez à minha querida Laerte, de quem eu sou madrinha, inclusive. Não se fez a pergunta porque a área dela é uma área questionadora, que desde sempre está botando o dedo na ferida da sociedade. Mas a minha é uma é uma área de trabalho que está pensando na racionalidade econômica, na construção de um modelo produtivo para as organizações.
Gosto do Freud quando diz que culpa não serve para porra nenhuma a não ser para você se sentir confortavelmente culpado. Eu recusei esse lugar de culpa. Hoje eu sou muito chamada exatamente para falar sobre essa condição. Me obrigou a estudar, pesquisar, a estreitar relações com pessoas nessa faixa etária. Recentemente, a Sociedade Brasileira de Gerontologia lançou o manual LGBT, eu escrevi um capítulo do manual. O que acontece com as populações que hoje estão atingindo a cota dos mais de 60? São verdadeiros sobreviventes quando você considera a população que veio da rua extremamente vulnerável que passou por tudo o que você pode imaginar. Essas pessoas, em momento nenhum, foram estimuladas a resgatar e a manter valores humanos fundamentais, tipo vínculos. Eu jamais teria dado conta de transicionar naquela idade sem esse vínculo familiar, sem o apoio dos meus filhos e da minha mulher. Eu ia fazer o quê da minha vida nessa altura? As pessoas transgêneras são ostensivamente extorquidas do direito de ter vínculo. A outra coisa é o seguinte, há uma culpa de dentro do gueto, dessas pessoas com mais idade terem sobrevivido. Muitas delas abrem mão da condição de uma identidade transgênera e voltam a viver como homem, por exemplo.
Apesar do momento, quais são os avanços positivos na vida das pessoas trans?
Leticia Lanz – Progressivamente, a gente está caminhando para outro patamar. Por exemplo, não era comum quando se fala em população trans no Brasil, você não falava da população de homens trans. O João Nery, meu grande amigo, tomou porrada de todo lado quando ele apareceu. É outra narrativa que está surgindo agora. Como é que vai ser? Então, você pode olhar no ar que há uma mudança. Acredito que uma dificuldade que vai ser permanecer é que movimento carece muito de uma postura mais revolucionária. Ele é extremamente binarista, não admite a possibilidade de que o gênero seja uma categoria a ser extinta. Não há necessidade, raça e gênero, pra quê? Eu não quero ser aceita 100% como mulher, quero ser aceita 100% como pessoa. Em uma das primeiras entrevistas que eu dei, o Pedro Bial me perguntou: o que é que você é? Eu respondi: sou gente. Eles esperam que a gente se orgulhe e se coloque ali e com isso, tudo fica mais fácil para o movimento, mais para os políticos. A expectativa de comportamento já vem ali carimbada. Você é trans? Então já sei o que esperar de você. É negro? Já sei o que esperar de você.
Quando se coloca essa ausência de categoria, que é a ideia é um sujeito, ao invés de dois gêneros, vamos ter sete bilhões de gêneros e isso complica bastante para quem administra a coisa. De qualquer maneira é muito positivo um movimento que existe hoje, o Vidas Idosas Importam e, dentro dessa importância, considerar as vidas LGBT e, particularmente, as vidas trans. Embora que eu não defenda nenhuma identidade, há a necessidade de políticas específicas para esse segmento neste momento. A longo prazo, eu penso que nada disso deva permanecer porque imagina que daqui a 30 anos, é uma pessoa trans que não vai ser eu e uma jornalista que talvez não seja você, falando dos mesmos assuntos? Eu imagino que daqui a 30 anos esses conceitos tenham se tornado espúrios, desnecessários.