Mesmo com baixo valor dos produtos, juíza alegou que não cabe o princípio da insignificância para o caso; segundo a Defensoria Pública, mulher disse que estava menstruada, ficou com vergonha de ter sujado itens e que os devolveria depois de lavá-los
Depois de ficar hospedado por 10 dias e pagar R$ 850 pelas diárias, um casal de colombianos foi preso por furtar três toalhas, duas fronhas e dois lençóis de um hotel localizado no centro de São Paulo. A mulher recebeu a liberdade provisória por não ter antecedentes criminais. Porém, a juíza Thaís Fortunato Bim, do Tribunal de Justiça de São Paulo, transformou a prisão em flagrante do homem em prisão preventiva (sem tempo determinado).
A magistrada alega que o homem tinha antecedentes criminais e não levou em conta o princípio do crime de bagatela, que são os delitos de menor potencial ofensivo. O defensor público Diego Rezende Polachini entrou com o pedido de habeas corpus alegando que o furto foi praticado pela mulher e que o companheiro não tinha ciência da ação, mas o desembargador Diniz Fernando negou a solicitação.
O casal foi preso na tarde do dia 7 de janeiro quando deixou o Hotel Aurora, localizado na região central da cidade de São Paulo. Os policiais civis Cláudio Malta Benalia e Emerson Rocha dos Santos avistaram o casal saindo do local e consideraram que os dois estavam em “atitude suspeita”. No boletim de ocorrência registrado no 3º DP (Campos Elíseos), a dupla afirma que nada de ilícito foi encontrado com o casal, mas, ao revistarem a mochila, estavam as peças de roupa de cama com a marca do hotel.
Os policiais foram até o hotel e informaram ao responsável pelo estabelecimento sobre o furto e ele confirmou que itens pertenciam ao local. O funcionário foi até a delegacia e consta como testemunha no boletim de ocorrência.
A delegada Sabrina Rodrigues de Almeida determinou a prisão em flagrante do casal informando que a natureza do crime praticado não permitia a soltura por meio de fiança. “O delito, como já anotado, foi o de furto qualificado pelo concurso de pessoas. A pena máxima cominada, teoricamente, não comporta concessão de fiança em solo policial, não sendo, por esse motivo, arbitrada qualquer valor de fiança”, informa o boletim de ocorrência.
Menstruação e antecedentes
No pedido de liberdade provisória, a Defensoria Pública relata que a mulher informou que retirou os pertences do hotel porque estava menstruada e teria sujado os lençóis e toalhas. Ela afirma que ficou com vergonha de dizer o que tinha acontecido e levaria os objetos para serem lavados e depois os devolveria.
“Durante a audiência de custódia a indiciada confessou os fatos, afirmou que estava menstruada e ficou com vergonha de deixar os lençóis no local com manchas de sangue. Afirmou que o companheiro não sabia sobre o furto”, detalhou no documento o defensor Diego Rezende Polachini.
Na audiência de custódia, a juíza Thaís Fortunato Bim tomou como base para sua decisão os antecedentes criminais dos dois. A mulher não tinha nenhuma passagem pela polícia e por isso recebeu a liberdade provisória. Mesmo alegando que não sabia que a companheira havia retirado as peças de jogo de cama do hotel, o homem teve sua prisão em flagrante convertida em preventiva.
Para a magistrada, duas fronhas, três toalhas e dois lençóis acumulam um valor que não pode ser tratado pelo princípio da insignificância e que o fato de o acusado ter dois processos por furto é suficiente para pedir a sua detenção. “Não há que se falar em princípio da insignificância, considerando a natureza e quantidade dos bens subtraídos (…) bem como a reincidência específica do indiciado, que ainda responde a dois processos criminais”, declarou nos autos a Thaís Fortunato Bim.
Ao se manifestar contrário ao pedido de habeas corpus feito pela Defensoria Pública, o desembargador Diniz Fernando também justificou o seu posicionamento utilizando o argumento que o acusado possui histórico criminal e não tem residência fixa, por isso não merece ter sua prisão relaxada.
“Em um primeiro olhar, não se constata constrangimento ilegal evidente na conversão da prisão em preventiva Isso porque, apesar da ausência de violência ou grave ameaça, verifica-se que o acusado é reincidente específico e responde a outros 2 processos, um deles suspenso, estava em liberdade provisória com medidas cautelares alternativas e indicou apenas o local dos fatos como onde pode ser encontrado. Assim, afigura-se necessária uma maior cautela para a análise do pleito liberatório”, declarou nos autos o desembargador.
Cabe princípio de insignificância, aponta criminalista
A pedido da reportagem, a advogada criminalista Debora Nachmanowicz analisou a decisão. Para ela, caberia o princípio da insignificância e, consequentemente, a prisão do homem não seria convertida em preventiva.
“Existem requisitos para o princípio e, dentro deles, o juiz tem que considerar a mínima ofensividade da conduta do agente, sendo que a parte absurda dessa decisão é o juiz dizer que um furto, sem nenhum tipo de violência, de dois lençóis e duas toalhas é algo grave”, explica. “O segundo requisito, conforme o STF, é o mínimo de periculosidade, então a gente está falando de uma conduta que não é perigosa para a sociedade, atingiu especificamente o dono do hotel, que deve ter perdido algo em torno de R$ 100, e ele não teve nenhum prejuízo considerando que os itens foram devolvidos.”
Outro ponto que a criminalista aponta é o “reduzido grau de reprovabilidade do comportamento”. “Furto de pequenas coisas têm baixo grau de reprovabilidade penal, não quer dizer que está tudo bem o cara furtar várias vezes itens de hotel, supermercado, mas é uma conduta que deve de alguma forma ser controlada de outro lugar e não em um processo penal, prendendo pessoas.”
O último requisito é “inexpressividade da lesão do bem jurídico provocada”, o que significa que o prejuízo à vítima deve ser inexpressivo, insuficiente. “A gente está diante de uma conduta que pode e deve ser considerada insignificante. Os lençóis e as toalhas devem equivaler a R$ 100, por exemplo. Mesmo sendo furto qualificado – porque são duas pessoas, pode ser aplicado –, mesmo sendo reincidente. Então o juiz, se quisesse, poderia ter acabado com o processo ali.”
No caso da prisão do homem, ela entende que o que pesou para manutenção da prisão foi fato de ele não ter comparecido em juízo em processo anterior e por ter informado o endereço do hotel como residência fixa. A magistrada mencionou o parágrafo segundo do artigo 310 do Código de Processo Penal, que foi incorporado pelo Pacote Anticrime, para fundamentar a decisão, o qual prevê que “se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares”.
“Na minha opinião, esse é um dos tantos artigos inconstitucionais do Pacote Anticrime, tem uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) no STF que questiona a constitucionalidade desse artigo, porque viola presunção de inocência, o processo legal e está considerando que o cara vai ser condenado, mas não foi suspenso, então o juiz se quisesse ir contra, talvez o Ministério Público fosse recorrer”, critica a advogada.
Outro lado
A Ponte procurou as assessorias da Secretaria da Segurança Pública, do Ministério Público e do Tribunal de Justiça, mas não houve resposta até a publicação.