Conto popular de Campinas (SP) inspirou festa típica e carrega memória do período pré-abolição; série veiculada pela Ponte destaca como a história foi reapropriada pelo movimento negro
Era uma Sexta-Feira Santa de 1888 quando Toninho, um homem negro escravizado que trabalhava na Fazenda Santa Genebra, ouviu um boi falar enquanto tentava laçá-lo afim de arar a terra: “Hoje é dia santo, é dia do Senhor, não é dia de trabalho”. A lenda do “Boi Falô” surgiu em Campinas, interior de São Paulo, e atravessou gerações, se tornando uma tradicional festa e narrativa popular do atual distrito de Barão Geraldo. A história agora é tema de uma série documental dirigida e roteirizada pela jornalista Tatiana Diniz e lançada nesta quinta-feira (27/1) no YouTube da Ponte.
Em quatro episódios, a série destaca como a história se tornou símbolo de oralidade e explica relações históricas com a formação da cidade após o período da abolição da escravatura no Brasil. No fim do conto, segundo moradores e pesquisadores, Toninho e os demais trabalhadores receberam folga naquele dia. No entanto, ele passou a trabalhar dentro da casa do Barão Geraldo de Rezende até seus últimos dias de vida e acabou sendo enterrado junto ao túmulo do fazendeiro.
Todo ano o festejo do Boi Falô, nas Sextas-Feiras Santas, relembra a narrativa e reúne o público para apresentações culturais e a distribuição de macarronada com sardinha. Por conta da pandemia, as duas últimas edições da festa foram suspensas. Com montagem do editor Daniel Barros, Boi Falô, A Série recupera imagens dos eventos e apresenta entrevistas com pesquisadores, artistas e animações misturando música e danças típicas afro-brasileiras, como o jongo, para contar de que forma a história foi interpretada em dois vieses. Um deles destaca o feito do Barão e a fala do boi. O outro destaca a figura de Toninho, traz novos significados e levanta um debate sobre exploração, silenciamento e o racismo estrutural.
“Há uma problematização intrínseca à lenda que se revela nos depoimentos de artistas, pesquisadores e moradores que conhecem e recontam a história, entrevistados nos filmes. Apesar do caráter festivo, o enredo guarda marcas da escravidão e do racismo. O fato de o Barão ser celebrado na história por dar folga ao trabalhador, por exemplo, exalta uma memória branca e escravocrata”, pontua Tatiana.
Ao longo da série, a narrativa vai de encontro com fatos recentes e mostra a intersecção de culturas regionais e as camadas de classismo e racismo que até hoje permanecem na sociedade. Entre os entrevistados estão personalidades de diferentes gerações como as cantoras MC Gabriella e Paula Nunes, a mestra da Comunidade Jongo Dito Ribeiro Alessandra Ribeiro e o diretor de arte e projetos da Ponte Antonio Junião, que nasceu em Campinas e carrega uma história familiar marcada pela resistência negra.
Para entrelaçar todas estas vozes, os episódios são acompanhados por uma trilha sonora assinada pelo cantor, compositor e poeta Lirinha, que contou com a colaboração do mestre da viola caipira Chico Saraiva, o percussionista Maurício Badé e a cantora Maria dos Prazeres Diniz. A produção do documentário foi feita com recursos da Lei Aldir Blanc.
Boi Falô, A Série
Produção Executiva – Tatiana Diniz e Leandro Taveira
Pixel Art e Animação – João Diniz
Edição de abertura – Dizin
Ilustração e design – Elvira Freitas Lira e Dizin
Videoarte – Tiago Calazans
Fotografia e imagens em Barão Geraldo – Breno Bradley Moraes (Quarto Olhar Comunicação), Clara Vitória de Araújo e João Barroso
Imagens Aéreas – João Barroso e Rafael Estevam
Pesquisa – Mateus Araújo e Luís Nogueira
Distribuição – Ponte Jornalismo