Com críticas a Bolsonaro e à destruição de terras indígenas pelo agronegócio, obra do rapper portorriquenho retrata as lutas dos povos latino-americanos
De costas para uma criança indígena, um homem branco vestindo terno come um bife num prato e em seguida usa a bandeira do Brasil para limpar a boca. Apesar de usar garfo e faca e não as mãos para comer, a cena faz referência ao presidente Jair Bolsonaro (PL) e sua política anti-indígena que estimula a devastação das florestas para a produção de carne — 63% das áreas desmatadas na Amazônia servem de pasto para gado, segundo um relatório publicado no ano passado pela Fundação Heinrich Böll.
A cena faz parte do clipe da música This is Not America, do rapper portorriquenho Residente (fundador do grupo Calle 13), com participação da dupla franco-cubana Ibeyi (que gravou Libre, com Emicida). O recado do vídeo é direto: os Estados Unidos não são aquilo que os filmes de super-heróis, que monopolizam as salas de cinema do terceiro mundo, mostram. Lançado nesta semana, com direção do francês Gregory Orel, o clipe traz uma série de referências às lutas dos povos latino-americanos e às violências praticadas contra eles pela atuação imperialista dos Estados Unidos — país que costuma se autodenominar América, apagando a identidade do restante do continente.
“América não é só USA, papai / Ela vai da Terra do Fogo ao Canadá / Tem que ser muito estúpido, bem cabeça oca / É como dizer que a África é só Marrocos“, diz a letra, endereçada para os estadunidenses que se consideram o umbigo do mundo. A música é também uma resposta a This is America, rap de Chidish Gambino lançado em 2018 que fez uma severa crítica ao sistema racista norte-americano contra os negros que vivem no país. Residente amplia o debate e mostra como os problemas que o próprio governo americano causa ao seu povo extrapolam as suas fronteiras e afetam um continente inteiro: “Gambino, meu irmão / Esta, sim, é a América”.
Desde o lançamento do clipe, explodiram nas redes sociais comentários e compartilhamentos do vídeo listando as dezenas referências presentes nele, de países como Brasil, Venezuela, México, Colômbia e Chile. Várias delas podem ser vistas neste fio:
Logo em sua primeira cena, o clipe faz referência a Lolita Lebrón, figura importante na luta pela independência de Porto Rico. A ativista foi responsável por denunciar a situação colonial do país da América Central e liderou um ataque à Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, em março de 1954.
Para mostrar o tamanho da influência latina dentro da cultura norte-americana, o rapper lembra que o nome artístico escolhido de um dos expoentes do rap vem de Tupac Amaru II, líder indígena peruano que comandou a insurreição contra a coroa espanhola no século XVIII: “2pac se chama 2pac pelo Túpac Amaru do Peru”. No clipe, a cena de uma mulher sendo puxada pelos braços e pernas pela polícia faz referência à morte de Amaru, que teve o corpo desmembrado pelos cavalos dos espanhóis.
O momento onde a violência se mostra mais explicitamente no vídeo, e que também lembraThis is America, de Gambino, é a que relembra o assassinato do cantor chileno Victor Jara. No clipe, um homem aparece levando um tiro à queima roupa na cabeça, dentro de um estádio de futebol, enquanto segura um violão. O artista foi fuzilado dentro do Estádio Nacional, em Santiago, com 40 tiros, em 1973. Antes de ser morto, teve todos os dedos das mãos quebrados em sessões de tortura. A ditadura chilena assumiu o poder naquele ano após derrubar o governo democraticamente eleito de Salvador Allende, com o apoio dos EUA.
Porém nem a música, nem o vídeo, se prendem apenas a questões históricas vividas no continente no passado e trazem a discussão para os dias atuais, mostrando, por exemplo, o descalabro ambiental comandado pelo governo Jair Bolsonaro, tanto frente aos povos indígenas, quanto no desmatamento. O Brasil também aparece no clipe com referências ao filme Cidade de Deus, na marcha de mulheres indígenas e nos protestos contra a Copa do Mundo de 2014.
Outras recentes manifestações no continente são destacadas no clipe como os protestos ocorridos no ano passado na Colômbia, onde clipe rememora a imagem de um casal beijando-se durante as ações policiais ou quando ativistas simulavam cadáveres sendo cobertos com a bandeira do país.
A onda de protestos nas ruas venezuelanas em 2017 são retratadas nas cenas onde uma pessoa aparece tendo o corpo incendiado, fazendo referência a um chavista que teve o corpo queimado por opositores. As boinas vermelhas do exército venezuelano são citadas na cena em que soldados aparecem pisando em um pilha de corpos. A imagem também é uma lembrança as fotos onde militares americanos aparecem na mesma posição dentro da base de Guantánamo, em Cuba.
Grupos revolucionários latino-americanos são homenageados por Residente em sua música e no vídeo. Aparecem nos quatro minutos e dez segundos do clipe os Lustrabotas, engraxates bolivianos que precisam esconder seus rostos sob capuzes por conta do preconceito social; os 43 de Ayotzinapa, grupo de estudantes mexicanos que foram executados e queimados após protestarem contra um prefeito do interior do país que tinha ligações com o narcotráfico; as mulheres de Cherán, também no México, que, para defender seu território, expulsaram traficantes, policiais e políticos corruptos; além do Exército Zapatista de Libertação Nacional, também do México, e os Macheteros de Porto Rico.
Além das críticas baseadas em contextos históricos, a produção também traz a reflexão em torno do capitalismo e como o imperialismo é nocivo a comunidades tradicionais quando mostra crianças em trajes de povos originários em cima de embalagens que remetem as redes fast food com Starbucks e Mc Donald’s. Crianças também são lembradas quando aparecem um grupo de meninos e meninas atrás das grades, lembrando a política do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, que isolava os filhos de imigrantes ilegais dos seus pais.