Priscila Diva é considerada uma das primeiras mulheres trans de Perus, bairro da capital paulista, inspirando outras meninas a encontrarem suas identidades. Sua morte continua sendo investigada
“Justiça para Priscila”. É o que diziam os cartazes estendidos pelas mãos de amigos, amigas e familiares durante o enterro de Priscila Santos, conhecida como Priscila Diva.
A mulher trans de 29 anos e moradora do bairro de Perus, região noroeste da cidade de São Paulo, foi encontrada morta na última terça-feira (22/3) no município de Mairiporã, na região metropolitana.
Vista pela última vez na quinta-feira (17/3), deixou a casa por volta das 21h, horário que sempre costumava sair para trabalhar. Durante o velório, sua mãe lembrou da cena que se repetia com frequência: “deu uma volta, jogou o cabelo e foi”.
Diferente dos outros, neste dia Priscila deixou a casa apenas de chinelo, short e top, sem celular ou documentos.
“Ela foi vista pela última vez na Rua Mogeiro, com a Av. Dr Silvio de Campos, em Perus. Nós ficamos atrás dela, perguntando para muitas pessoas”, conta a irmã, Suellen Teixeira, que chegou a ir até hospitais e publicar anúncios de busca nas redes sociais.
A morte da jovem ainda está em processo de investigação na Delegacia de Franco da Rocha, município da Grande SP para onde o corpo foi levado após ser encontrado já em estado de decomposição na represa de Mairiporã. O caixão estava lacrado, apenas com uma foto do rosto da jovem.
“O caso é investigado pela Delegacia de Franco da Rocha. A equipe da unidade trabalha para elucidar os fatos e prender o autor. Mais detalhes serão preservados para garantir a autonomia do trabalho policial”, disse em nota ao Nós, mulheres da periferia a Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo.
A família tem tido o cuidado de resguardar a memória de Priscila, uma vez que notícias falsas sobre o estado de seu corpo vêm sendo disseminadas pelo bairro. “Meu marido marido e o irmão dela reconheceram o corpo. Ela não teve o cabelo raspado, nem suas partes íntimas mutiladas como tem sido falsamente disseminado pelo bairro”, aponta a irmã Suellen.
‘Medo de sair e não saber se vamos voltar’
“Eu estou profundamente chocada, porque essa não é a primeira vez que isso acontece em Perus”, diz a amiga Safira Rodrigues de Souza, também transgênero. “Passam-se os anos, quando achamos que passou um pouco o trauma, novamente acontece com a Priscila. Onde vamos parar? Uma coisa é você ter medo de sair e de ser assaltada. Outra coisa é você ter medo de sair e não saber se vai voltar”.
O medo de Safira se espraia por todo o país. O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. A média de vida de uma pessoa trans no país é de apenas 35 anos. Segundo dados da Transgender Europe (TGEU), o Brasil registrou 41% de todos os casos de assassinatos de pessoas trans em todo o mundo.
Até o dia 30 de setembro de 2021, já eram 125 assassinatos. A ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) mostrou que, em 2020, o número de mortes violentas chegou a 175. A maioria das vítimas são negras.
“Da mesma forma que fizeram com elas, vão querer fazer com a gente. Acho que alguém deveria tomar providência. Tem gente que até aceita, mas depois que bebe uma ou duas, aí começam a humilhação. Tem quem xingue e tem gente que se junta e agride a gente”, lamenta Safira, que vivencia desde adolescente casos de transfobia.
‘Priscila era especial para muita gente’
Nascida em 11 de dezembro de 1992, Priscila era filha de Dona Irene dos Santos, irmã de Suellen, Luana, Diego, Taise e Diógenes. Seus sobrinhos e sobrinhas, mesmo sem entender sua partida, choravam a saudade da tia.
“Era uma pessoa muito extrovertida. Alegre e sorridente. Falava bem. Estava sempre bem arrumada. Era muito especial para muitas pessoas”, é o que, em meio ao turbilhão de informações e emoções, diz a irmã Suellen Teixeira.
Cresceu em Perus e alguns amigos dos tempos de escola continuavam a amizade ainda nos dias de hoje. É o caso de Talysson Ferreira, que reafirma o quanto Priscila era querida por todos.
“Priscila era uma pessoa maravilhosa. Humilde, simples, meiga no jeito de falar ou de olhar. Onde ia, conquistava amizades”, conta o vizinho, com quem estudou ainda na infância na Emef – Escola Municipal de Ensino Fundamental Jairo de Almeida, no Recanto dos Humildes, onde morava.
Em uma das últimas vezes que se viram, ela o presenteou com um óculos, o qual ele vestia durante o velório, como uma homenagem à amiga. “Ela me deu uma coisa que está aqui comigo, que é o óculos, que eu trouxe de homenagem. É muito triste perder uma pessoa assim, tão especial, desde pequeno a gente se conhecia”.
‘Uma das primeiras mulheres trans de Perus’
Pela região, Priscila era muito conhecida, principalmente por ter aberto o caminho para outras meninas e mulheres em seus processos de identificação enquanto mulheres trans e travestis.
“Eu acompanhei a trajetória dela e o sofrimento, porque não foi fácil. Não é fácil para nenhum de nós. Pra mim, ela foi a diva, ela que iniciou como uma mulher trans aqui em Perus. Sofreu muito para iniciar e tomar uma atitude e dar força a outras mulheres, porque nenhuma tinha coragem ainda”, diz Talysson.
“Ela deu coragem a todas para se assumir e ter orgulho de ser o que é. Única rainha que vai ter aqui em Perus. A nossa diva de Perus”, conta, emocionado, o amigo Talysson.
“Ela viveu para ter o corpo dela. Ela conseguiu se montar. Ela trabalhava para ela. Para comprar seus perfumes, suas roupas, seus saltos, era uma pessoa que não pedia nada pra ninguém, se bancava e ajudava muito as pessoas”, complementa Safira, que chegou a acompanhar Priscila algumas vezes durante os programas que realizava.A família também diz que a mãe, Irene, também sempre auxiliou Priscila financeiramente.
‘Não existia tristeza perto da Priscila’
Extrovertida e alegre são alguns dos sinônimos utilizados por algumas das mais de 70 pessoas que acompanharam o velório e sepultamento de Priscila nesta quinta-feira (24), no Cemitério Dom Bosco, em Perus.
“Não existia tristeza perto da Priscila. Qualquer pessoa que chegasse triste perto dela rapidinho ela levantava o astral com o jeito dela brincalhão de ser”, conta Safira.
Para Flávia dos Santos Oliveira, 30, ela era a melhor amiga, que a animava repetindo sempre uma frase: “ai que tudo, amiga”.
“Tudo que eu precisava eu conversava com ela. Era uma menina incrível. A Priscila foi morta de tal maneira que nem eu acredito. Pra mim, isso está sendo um choque. Eu quero justiça pela minha amiga. Quero muita justiça, o que fizeram com ela não vai ficar impune”, reivindica Flávia.
TransAfeto: acolhimento a pessoas trans nas periferias
Diante de casos como o de Priscila e também pensando nas pessoas LGBTQIA+ que vivem em situação de rua no bairro de Perus, a moradora Paula Roberta Ferraz criou o TransAfeto.
“O projeto visa levar alimentação para a população LGBTQIA+que está em situação de rua, roupas, calçados, cobertores, água, barracas e carinho. O foco do projeto está nas pessoas trans”, diz Paula, presidente e fundadora da TransAfeto.
Para ela, como Perus não tem um centro de acolhida a essa população, o projeto se torna um importante espaço de suporte emocional. “Acho necessário que haja uma casa de apoio que acolha o público LGBTQIA+, pois falta suporte em Perus para essa população. Falta um lugar que possa dar cursos profissionalizantes, pois muitas vezes são excluídos”.
Para quem está buscando apoio ou quer ajudar o projeto, é possível entrar em contato por meio do perfil do TransAfeto no Instagram e falar diretamente com Paula.
*Esta reportagem contou com o apoio técnico de Juca Guimarães (Alma Preta) e Fausto Salvadori (Ponte Jornalismo).