Ator e atriz perdem processo de difamação, mas Heard, que enfrentou a “ira de nossa cultura”, é quem paga mais
Em 2018, Amber Heard escreveu em um editorial para o The Washington Post: “Tornei-me uma figura pública representando o abuso doméstico e senti toda a força da ira de nossa cultura pelas mulheres que se manifestam.” No texto, ela discorre sobre como as instituições trabalham para proteger homens poderosos que abusam de mulheres. Quem diria que, quatro anos depois, suas palavras — embora consideradas maledicentes pelo júri — tenham se mostrado tão substancialmente verdadeiras.
Heard se referia ao seu divórcio, ocasião em que conseguiu uma ordem de restrição contra seu ex-marido Johnny Depp após se apresentar ao tribunal com hematomas no rosto provocados por ele. A situação se tornou um escândalo e Depp processou o tabloide The Sun no Reino Unido por chamá-lo em manchete de “Espancador de Esposa”. Depp perdeu o processo, pois o juiz da Suprema Corte de Londres, Andrew Nicol, considerou verdadeiras 12 das 14 agressões alegadas por Heard. Ele concluiu: “devem ter sido aterrorizantes. Eu aceito que o Sr. Depp a fez temer por sua vida.”. O ator entrou com apelação, mas perdeu mais uma vez.
Dessa vez, Depp processou Heard pelo artigo citado no início deste texto — que não cita o nome dele — e ela o processou de volta, acusando algumas declarações feitas pelo ex-advogado de Depp, Adam Waldman, como difamatórias. Ambos perderam, mas a condenação dela foi de US$ 15 milhões (reduzidos para US$ 10,35 milhões por causa de limites legais da Virgínia, onde correu o proceso), enquanto o ator terá que pagar US$ 2 milhões. O julgamento foi baseado em seis declarações, três do artigo de Heard e três de Waldman. O júri considerou as três declarações do artigo dela como difamatórias, enquanto também considerou difamatória a fala do ex-advogado de Depp de que a atriz havia criado uma emboscada, uma farsa de abuso para incriminar o ex-marido.
Decisão intrigante, pois o fato de Heard se colocar como vítima de violência doméstica em um artigo é, portanto, difamatório, mas dizer que ela mentiu sobre o abuso também. Ou seja, eles reconhecem então que ela é vítima, mas deve ficar em silêncio? Importante considerar que evidências cruciais sobre o caso de Heard foram excluídas por objeção dos advogados de Depp e o júri não teve acesso a elas, como as notas de seu médico sobre o abuso sexual e fotos de ferimentos. A atriz deve recorrer.
No entanto, independentemente do veredito, já havia uma derrota certa. Amber Heard já havia perdido no tribunal paralelo da internet, o tribunal da opinião pública. E — como ela previu — a ira de nossa cultura ganhou os mais perversos contornos.
Provar da dimensão cruel do riso é uma experiência comum para qualquer um que tenha sua porção de vida na internet. Mas, nas últimas seis semanas de julgamento, confesso que me assustei profundamente com a capacidade humana de encontrar humor em um caso de tamanha gravidade: nas alegações de estupro e abuso feitas por Heard.
A Juíza Penney Azcarate permitiu que todo o julgamento fosse televisionado e ele então tomou a proporção de um grande circo midiático. E quando digo circo, incluo sua característica principal, a de produzir o riso. Celebridades, influencers, programas de comédia e pessoas comuns no Tik Tok ganharam engajamento usando trechos do tribunal, imitações, memes e comentários ácidos. Até mesmo uma empresa de maquiagem e um aplicativo que ensina inglês se aproveitaram do hype para promover suas marcas. Houve, no entanto, a escolha de um só palhaço para esse circo.
Embora o julgamento tenha se dado entre duas partes, parece-me que apenas uma delas foi analisada pelo público em seus trejeitos, expressões e postura. Se Heard chorava sem lágrimas visíveis, estava forçando. Se do choro desciam lágrimas, estava atuando. Se sorria gentilmente para a advogada, não estava sofrendo o suficiente para uma vítima. Brotaram inúmeras imitações zombando do choro e desespero de Heard enquanto ela narrava na tribuna a lembrança traumática de ter sido abusada sexualmente por Depp com uma garrafa. Houve uma trend de vídeos com seus áudios dos relatos de abuso extraídos do tribunal e usados em vídeos hipersexualizados. Chris Rock disse em seu stand up comedy: “acredite em todas as mulheres, menos em Amber Heard”.
Não se falava do comportamento de Johnny Depp no tribunal, que passava boa parte do tempo desenhando e comendo doces. Quando a psicóloga Dra. Hughes deu uma aula ao júri sobre violência doméstica em todas as suas facetas, ele parecia alheio à própria causa. Ou sobre suas risadas constantes durante o testemunho de Heard enquanto ela falava das terríveis agressões amparadas por fotos de tufos de cabelo arrancados, lábio cortado, hematomas no corpo. Sem falar de sua risada histérica em uma piada interna com a advogada no meio de um testemunho. Ou até mesmo sobre ter ido na direção de Heard na saída do tribunal num ato que parecia intimidatório e ter que ser barrado por um guarda para que não se aproximasse dela. Depois saiu, rindo e balançando os ombros. A última e mais bizarra foi ver Depp gesticulando e chamando a advogada de Heard “para a briga”. O comportamento de Heard foi analisado com uma lupa e julgado centímetro por centímetro, o de Depp foi naturalizado. O choro de Heard virou piada, o riso de Depp era apenas o ídolo “mitando”.
Depp avisou que ofereceria à Heard “uma humilhação global” em mensagem a um ex-agente presente na lista de evidências. E ele obteve sua vitória. É humilhante rever seu trauma publicamente, falar do abuso na frente das câmeras para o mundo todo e de seu abusador (enquanto ele ri). É humilhante ver sua dor ser transformada em comédia e viralizada como entretenimento, sua foto em latas de lixo, um grafitti com seu rosto e um nariz de pinóquio, ou as trends perversas ridicularizando sua dor.
Parece ser exatamente o que Depp queria. Ele não parecia tão preocupado em vencer o processo em si, mas em limpar sua imagem afundando a de Heard, usando a Corte para espalhar as mesmas fake news que rodavam há anos pela internet e manipular a opinião pública contra ela. A internet contou uma história desse julgamento completamente diferente do que estava havendo lá, uma história onde ele caminha entre vítima e herói. Por isso ele obteve a vantagem de um julgamento televisionado, um verdadeiro reality show que provocou uma disputa de narrativas onde Heard sempre saía perdendo, não importa o cenário. Não importavam as evidências, mas sim as fancams dele e seus advogados em frases de efeito no Tik Tok.
De fato, Heard enfrentou a ira de nossa cultura, que inclui o escárnio como uma de suas ferramentas mais cruéis. Quando me pergunto “qual o limite do riso”, eu digo que já não é possível conhecê-lo, pois já o ultrapassamos e fomos longe demais.
Tais vídeos e memes expuseram a profunda e naturalizada misoginia com a qual convivemos, a desconfiança de mulheres, a empatia com o abusador. Esse riso não é tão “dos outros” assim. Ele não vem de incels, mas daquela pessoa que está do seu lado, seus amigos, familiares, aquele artista que você admira. São essas pessoas que estavam fazendo piada de uma vítima de violência doméstica. Impressiona o número de mulheres que participaram desse circo perverso e comemoraram o veredicto favorável a Depp. Será que elas estão tão alheias assim à sua própria condição, sendo condescendentes com o sistema que as oprime, com uma máquina de moer a reputação de quem fala contra o abuso patriarcal? Ou não se deram conta de que estão sendo vítimas da manipulação de uma campanha de difamação financiada inclusive por grupos de extrema-direita?
Ler as mensagens onde Depp dizia querer encontrar o cadáver de Heard se decompondo no porta-malas de um carro não é o bastante para o benefício da dúvida? Ou quando ele disse querer afogá-la e estuprar seu cadáver…?
Sabe-se que tribunais de família são usados por abusadores para perpetuar o abuso e silenciar suas vítimas. Casos como esse, onde o agressor processa a vítima por difamação, podem se tornar cada vez mais comuns. Esse julgamento talvez abra precedentes perigosos os quais sentiremos seus efeitos nos próximos anos. Claire Waxman, comissária de vítimas de Londres, disse ao The Guardian que a zombaria em torno de Heard estava “fazendo as mulheres hesitarem em relatar histórias semelhantes. Segundo ela, “[…] parece que estamos desfazendo anos de trabalho. Fui contatado por vítimas que estão profundamente angustiadas com a cobertura e profissionais que apoiam vítimas que estão realmente questionando ‘sou digno de ser acreditada?’”.
Assistimos a uma mulher branca, cis e de alta classe no tribunal ser condenada por falar sobre seu abuso. Na realidade, vimos a tentativa de transformá-la na própria agressora. O retrocesso é claro e ele atingirá ainda com mais violência as vítimas menos privilegiadas que Amber Heard. Esse julgamento será usado como modelo para cada agressor que desejar silenciar sua vítima.
O caso Johnny Depp vs Amber Heard enviou às vítimas de violência doméstica um recado muito claro: silêncio.
* Larissa Ibúmi Moreira é escritora, historiadora formada pela USP, mestranda em História e graduanda em Comunicação Social pela UFSJ. Autora do livro “Vozes Transcendentes: os novos gêneros na música brasileira” e trabalha como pesquisadora para Audiovisual.
Correções
Uma versão anterior deste texto informava que o artigo de autoria de Amber Heard foi publicado em 2020 - na verdade o artigo é de 2018. A informação foi corrigid às 19h32 do dia 2/6/2022