Enfrentar a realidade do aborto é criar políticas e serviços públicos para assistir adequadamente as mulheres que precisam abortar. Isto significa garantir a vida, a dignidade e a igualdade de condições entre as mulheres
Por Maria Amélia de Almeida Teles (Amelinha Teles) (*)
Dia 28 de setembro marca a luta pela legalização do aborto em toda a América Latina e Caribenha. Foi uma decisão tomada no 5º. Encontro Feminista Latino Americano e Caribenho, realizado em 1990, em San Bernardo, na Argentina. A data foi proposta pelas brasileiras devido ao fato de que em, 1871, neste dia, no Brasil, foi assinada a “Lei do Ventre Livre”, que estabelecia que os filhos de escravos que nascessem, a partir daí, seriam considerados livres, embora suas mães permanecessem escravas.
A data foi escolhida pelas feministas brasileiras e aprovada, então naquele 5º Encontro. De lá até hoje, são realizadas manifestações em diversas capitais e cidades em defesa do direito ao aborto. Os dizeres estampados nas faixas levadas por mulheres são os mais criativos, como: “Eu aborto, tu abortas, nós abortamos!” Ou então: “eu decido, a sociedade respeita e o Estado garante”! As mulheres vão às ruas, fazem seminários, participam de conferências nacionais e internacionais, articulam ações de pressão junto às diversas instâncias de poder, usam a rede social, fazem panfletos, acessam, ainda que com dificuldades, até mesmo a mídia tradicional.
O Estado e os governantes brasileiros, no entanto, sob forte pressão de grupos religiosos fundamentalistas, cada vez mais se distanciam das lutas democráticas e suas bandeiras em defesa do direito inalienável das mulheres de abortarem. Em nome da governabilidade, agem em favor dos conservadores e inclusive os de extrema direita em detrimento das reivindicações feministas populares, como o direito de escolha de ser ou ser mãe, o enfrentamento da discriminação sexista e racista.
Assim sendo, passados 25 anos da criação desta data, no Brasil, temos praticamente pouquíssimos avanços no rumo do reconhecimento do direito de interromper uma gravidez indesejada e ausência de políticas públicas que garantam uma vida digna e segura para as mulheres.
O programa do aborto legal, serviço que teve seu funcionamento de forma pioneira, no Hospital Municipal do Jabaquara, em São Paulo, em 1989, visou atender apenas os dois casos previstos em lei, de acordo com o código penal brasileiro, de 1941, os quais são: quando a gravidez decorre de um estupro ou então coloca em risco a vida materna. Hoje encontra-se fechado por falta de uma equipe de profissionais que possam realizar o aborto em condições seguras. Há alguns poucos hospitais, em funcionamento, no território nacional que atendem violência sexual e fazem o aborto legal.
Bem mais tarde, em 30 de abril de 2012, foi reconhecido o direito ao aborto, restrito única e exclusivamente aos casos de anencefalia, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Os ministros do STF, em sua maioria, consideraram que, quando o feto é anencéfalo, não se trata de aborto pois não há nenhuma possibilidade da vida fora do útero. Desta forma, decidiram que não haveria necessidade de autorização judicial para a realização do aborto feito por médicos.
Enfim, as mulheres têm percorrido um longo caminho de lutas em defesa de direitos democráticos sobre seus próprios corpos, com pouquíssimos resultados positivos. A realidade cotidiana mostra que as mulheres que se encontram diante de uma gravidez indesejada e precisam abortar, são obrigadas a buscar, em silêncio, na clandestinidade e, solitariamente, recursos precários, na maioria das vezes, caros e que podem colocar suas vidas em perigo. Enfrentar a realidade do aborto é criar políticas e serviços públicos para assistir adequadamente as mulheres que precisam abortar. Isto significa garantir a vida, a dignidade e a igualdade de condições entre as mulheres. Significa, de fato, tomar uma atitude em defesa da vida das mulheres principalmente as mais pobres. São feitos por volta de 850 mil abortos, anualmente, no Brasil. As mulheres com alto poder aquisitivo o fazem, de um modo geral, em condições seguras para sua saúde. As pobres, negras, não brancas e periféricas, o fazem em situação de alto risco, ameaçadas de morrer com hemorragia, ter seus corpos mutilados e sofrerem sequelas que poderão repercutir em toda sua vida. Podem ainda ser criminalizadas, condenadas e encarceradas, em processos judiciais por iniciativa do próprio aparato estatal. O Estado não promove a saúde das mulheres, comete graves violações de seus direitos humanos e as responsabiliza pela crônica negligência estatal.
(*) Maria Amélia de Almeida Teles é ex-presa política, militante feminista, diretora da União de Mulheres de São Paulo, integra a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos