Justiça prende jovem negro usando ‘reconhecimento de voz’ como prova

Para especialista, procedimento do Código de Processo Penal não foi cumprido. Família de Riquelme realizou protesto pedindo a liberdade do rapaz que foi detido quando a polícia realizava ação na casa do vizinho

Riquelme Antunes tem o sonho de ser jogador de futebol, segundo a família. | Foto: Arquivo Pessoal

Riquelme Madeira Antunes, 18 anos, voltava para casa, na Rua Rafael Arino, Jardim Elisa Maria, região da Brasilândia, zona norte da cidade de São Paulo, na noite do último dia 6 de julho, quando viu que o portão do seu vizinho estava aberto. Com intenção de alertá-lo, o jovem entrou na residência para alertar os moradores. Ao invés de encontrar o dono da casa, ele foi recepcionado por policiais militares da Força Tática.

Ocorria naquele instante a prisão de um grupo que tinha cometido roubo e sequestro relâmpago contra um rapaz que caiu no golpe do falso encontro através de um aplicativo de relacionamento horas antes. Em seu depoimento na 72º DP (Vila Penteado), a vítima informou que reconheceu a mulher que tinha marcado o encontro com ele, os homens que o abordaram e o levaram para o cativeiro, tomaram seus pertences e o fizeram de refém. Porém, sobre Riquelme, ele alega ter ouvido apenas a voz e não detalha em que momento da ação criminosa o jovem teria falado algo.

O depoimento da vítima, junto com o dos policiais militares André Luís Voltan de Andrade e Willian Arimateia da Silva Germano, foram suficientes para que a promotora do Ministério Público de São Paulo (MPSP) Daniele Volpato Sordi de Carvalho Campos fizesse o pedido de prisão do rapaz, que a juíza Gabriela Marques da Silva Bertoli, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), acatou sem nenhum questionamento.

Em seu depoimento à delegada Gisele Maciel Rocha, Riquelme informou que não conhecia o dono da casa, mas sim o seu filho, um garoto de 16 anos que era seu amigo. “Afirma que por volta meia noite viu o portão aberto da casa e foi até lá para saber o que estava acontecendo, momento em que viu policiais militares no local abordando os indivíduos que desconhece, inclusive uma mulher. Disse que não sabia o que estava acontecendo, mas foi abordado junto com os demais que ali estavam. Afirma que estava no local errado e na hora errada, afirmando que nunca participou de nenhuma ação criminosa”, diz um trecho boletim de ocorrência que narra o depoimento do rapaz.

A família de Riquelme está revoltada e incrédula com a sua prisão. No final da tarde da terça-feira (12/7), junto com vizinhos e amigos, eles fecharam a avenida Cantidio Sampaio, colocando fogo em pneus e pedindo a libertação do jovem, que mora com a mãe e mais quatro irmãos. Natasha Kemellyn Madeira Ramalho, 21 anos, irmã mais velha, diz que o irmão sempre quis ser jogador de futebol.

“Há muito tempo que ele tem esse sonho. Ele não tem emprego atualmente por conta disso, porque ainda tem esperança de jogar profissionalmente. Ele já fez teste em vários clubes e participou até da Taça das Favelas”, conta Natasha.

Ela lembra que o irmão é uma pessoa muito tranquila e querida na comunidade, que nunca se envolveu com nada errado e que ninguém acredita na possibilidade de ele estar relacionado a um crime. “Está todo mundo muito revoltado com o que está acontecendo. Meu irmão é um rapaz bondoso e carinhoso e está pagando por ter se preocupado com o vizinho.”

A família, que ainda está sem advogado para defender Riquelme, informa que existe um vídeo de uma câmera de segurança da rua que mostra a viatura da Polícia Militar passando pelo local e um minuto depois o rapaz passa pelo mesmo local. “Isso mostra que meu irmão não estava junto com as pessoas que estavam sendo procuradas pela polícia”, desabafa a irmã de Riquelme.

Para a advogada criminalista e mestranda em criminologia pela Universidade de São Paulo (USP) Débora Nachmanowicz, tanto o boletim de ocorrência quanto o processo criminal mostram que a situação de Riquelme se diferencia dos demais acusados. “Todos os outros envolvidos são representados por uma mesma advogada e foram instruídos a não se manifestarem perante os questionamentos. Riquelme é o único que é apresentado à Justiça sem um defensor e a todo instante nega que tenha participado do crime.”

Nachmanowicz ressalta que o método de reconhecimento feito na delegacia foi falha e não seguiu os padrões que são recomendados no Código de Processo Penal (CPP). O artigo 226 do CPP diz que “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”, o que não aconteceu neste caso.

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“Acho que temos uma grande ilegalidade aí. A questão do reconhecimento é citado no BO e nas declarações. O texto do boletim não deixa claro que ele foi reconhecido só pelo voz, não seria razoável que essa fosse a única prova para uma condenação, considerando sua fragilidade”, cita a advogada.

Outro lado

A Secretaria de Segurança Pùblica de São Paulo disse através de nota que o caso foi registrado pela Polícia Civil e encaminhado para a Justiça, que não solicitou novas diligências. 

“Quatro homens, com idades entre 18 e 33 anos, e uma jovem, de 22, foram presos em flagrante após terem roubado um homem, de 41 anos, na noite do último dia 6, na região da Brasilândia, na zona norte da Capital. A vítima, que foi mantida refém pelos suspeitos, compareceu à delegacia e prestou depoimento. O caso foi registrado pelo 72º DP (Vila Penteado). Os suspeitos foram encaminhados para audiência de custódia e o Poder Judiciário manteve as prisões. Até o momento, o inquérito policial não retornou à unidade para novas diligências”, diz a íntegra da nota enviada pela pasta.

O Ministério Pùblico e o Tribunal de Justiça de São Paulo também foram contatados para dar as suas versões sobre  a prisão de Riquelme, mas até o momento da publicação desta matéria não houve retorno.

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