Massacre de Guapo’y: PM e pistoleiros matam indígenas no Mato Grosso do Sul

Ação Retomada Guapo’y, dos Guarani Kaiowa, busca demarcar territórios indígenas e sofreu dois assassinatos em menos de um mês

Indígenas em ritual funerário em Guapo'y
Mulheres Guarani Kaiowá entoam cânticos pela proteção do território | Imagem: Gabriel Schlickmann

O Guarani Kaiowá Vitor Fernandes, de 42 anos, tinha uma deficiência na perna, o que  limitava os seus passos. Esta condição o impediu de escapar com os demais que fugiam da operação protagonizada pelo Batalhão de Policiamento de Choque da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul, o BPChoque, no dia 23 de junho passado.

Os indígenas filmaram a ação, envolvendo um grande contingente policial. De acordo com a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública do Mato Grosso do Sul (Sejusp), participaram da operação cerca de 65 policiais, que contaram com 16 viaturas e um helicóptero. 

Sem poder correr, Vítor foi morto com dois tiros nas costas e um na coxa. Ele seria a primeira das duas vítimas fatais em menos de um mês na Retomada Guapo’y, ação dos indígenas Guarani Kaiowá pela demarcação de terras no Mato Grosso do Sul.

O segundo assassinato aconteceu na última quinta-feira, dia 14 de julho. Pistoleiros fizeram uma emboscada e mataram a tiros uma das lideranças da ação, Márcio Moreira.

Em um vídeo gravado na Retomada, Moreira afirmou: “Na verdade, essa terra que se chama fazenda, é a terra indígena. É aqui que nosso irmão [Vitor Fernandes] está enterrado, e vamos permanecer aqui. Por esse motivo”.

De acordo com a Polícia Civil, o assassinato do indígena possivelmente foi devido aos conflitos por terra.

Dezenas de policiais para uma fazenda

Os Guarani Kaiowa, que reivindicaram parte da área da Fazenda Borda da Mata, de 269 hectares, como território ancestral. A fazenda fica em Amambai, a 350 km de Campo Grande.

Imagem de drone de Guapo'y
Imagem de drone da ocupação indígena | Imagem: Gabriel Schlickmann

A ação de junho, que abateu Vítor, teve o intuito de expulsar os indígenas que ocuparam a fazenda. Enquanto corriam em direção à Reserva Indigena de Amambai, que faz divisa com a fazenda, e buscavam se esconder em meio às plantações de milho e aveia, a polícia atirava. Projéteis, balas de borracha e bombas de gás do BPChoque atingiam os Kaiowá, de adolescentes a velhos, culminando em dezenas de pessoas baleadas, ao menos 20 feridos.

“Os policiais estavam chegando, aí ele foi pra lá [aponta para a plantação de milho, para onde os indígenas correram para se esconder] e atiraram nele. Uma, duas e três vezes. E ele caiu!”, conta Asunción Gimenez (36), viúva de Vitor.

Asunción Gimenez com seu filho, ao lado do local onde Vitor foi enterrado
Asunción Gimenez com seu filho, ao lado do local onde Vitor foi enterrado | Foto: Gabriel Schlickmann

Gimenez afirma que Vitor tinha um “problema antigo na perna e por isso ele não pôde correr e morreu”. A Sejusp não reconhece a morte de uma pessoa com deficiência durante a ação,

Vitor foi enterrado no chão da Retomada, no lugar onde seu corpo foi ferido à bala e ele caiu. Próximo do local, Asunción construiu sua barraca e agora é onde ela pretende viver, apesar de não ter ideia do que irá fazer para seguir e cuidar de seu filho.

“Não estou mais feliz. Acabou a minha felicidade. Não quero mais comer. Sem ele, eu vou precisar de ajuda para criar o nosso filho [de 6 anos] que ficou. Eu não tenho condição!”, desabafa a Assunción. 

Em depoimento ao Ministério Público Federal, em Dourados (MS), no dia 29 de junho, a liderança indígena Valdelice Verón, afirmou: “É esse tipo de ação que pistoleiros, policiais, a DOF [Departamento de Operações de Fronteira de Mato Grosso do Sul] faz com a gente. E hoje mais uma vez a gente vem chorar, porque não é a primeira vez que acontece. E neste país a gente não viu justiça ainda”. 

Valdelice é filha de Marcos Verón, liderança indígena brutalmente assassinada em janeiro de 2003. Ela confronta a versão Sejusp, de que os indígenas estavam armados e atacaram: “Como que o Vitor estava com armamento pesado se ele era coxo?”, questiona ela. “Como que ele ia correr? Ele não conseguiu. E morreu. Como que fala que a gente tinha armamento pesado? Chega de mentira. Como estamos com armamento pesado, sem nem comida, muitas vezes a gente tem! É um massacre. Um genocídio. Um terrorismo o que estamos vivendo”.

Em seu relato, Verón afirmou estar cansada de ver tantas mortes e violência contra o seu povo. E que sabe dos muitos riscos que os Guarani e Kaiowá ainda enfrentam.

Do hospital para a prisão

Apesar de o número oficial tratar de apenas 8 feridos, a realidade é, acusam os guaranis, outra: o número contabilizado é somente daqueles que foram para o hospital de Amambai. Essas pesssoas, ao receberem alta, foram detidas. Algumas ficaram presas por até quatro dias, quando a Defensoria Pública da União interviu. 

Devido a este episódio, indígenas feridos, alguns com bala ainda alojada no corpo, não foram ao hospital até hoje, por medo de como serão tratados ao ter alta. “Depois que o helicóptero foi embora, quem estava escondido apareceu e começou a procurar por feridos. E não pediam socorro, porque estavam com medo de serem entregues para o fazendeiro e os policiais. Eu levei um tiro de rifle e um de borracha. Meu vizinho que me socorreu. Até tentaram me levar para o hospital, mas eu estava com medo deles me pegarem e me matarem”, conta Clodoaldo Guarani-Kaiowá, de 38 anos. 

Para encarar a dor os indígenas se automedicaram com Dipirona. Na ocasião em que a Ponte esteve na retomada, eles faziam uma fila, enquanto alguém pingava em uma colher as gotas do remédio.

Quem oferecia a medicação era Roberto, que pediu para ser citado apenas pelo primeiro nome. Seu corpo está marcado por ao menos 5 tiros de bala de borracha.

Indígena Roberto, atingido por balas da PM em Guapo'y
Indígena Roberto, atingido por balas da PM em Guapo’y | Foto: Gabriel Schlickmann

No dia da operação, Roberto ouviu os gritos e os tiros. Preocupado, pegou sua moto e foi em direção à retomada a fim de saber o que estava acontecendo. Foi barrado por policiais que mandaram ele retornar à reserva. Ele afirma que ao virar a moto, os policiais começaram a atirar nele e a persegui-lo.

Até o momento em que o derrubaram com a viatura. “A bala de borracha não me derrubou, o que me derrubou foi o camburão que me atropelou. Quando eu caí eles apontaram a arma pra mim e atiraram à minha volta. Os tiros que me acertaram tão marcados no meu corpo ”, conta.

Roberto foi levado para o hospital. E acabou preso por quatro dias após a alta hospitalar.

Cecilia Simeni Aquino, 63 anos, também foi baleada. Um projétil atingiu a sua perna, próximo ao joelho, enquanto ela buscava refúgio em meio aos tiros. “Meu coração está acelerado, depois que fui baleada. Eu estou com febre, mal-estar. To assustada, porque eu quase morri”, conta Aquino. “Eu nunca presenciei esses tiros, nunca senti o gosto da bala. Estamos aqui porque essa aldeia é nossa. Estamos aqui para demarcar ela!”.

Cecilia Simeni Aquino
Cecilia Simeni Aquino | Foto: Gabriel Schlickmann

Modus Operandi 

De acordo com o veículo De Olho nos Ruralistas, a fazenda Borda da Mata pertence à empresa VT Brasil Administração e Participação. O empreendimento está em nome de Waldir Cândido Torelli e seus três filhos: Waldir Junior, Rodrigo e um adolescente com menos de 18 anos.

Torelli já fundou frigoríficos no Brasil e Paraguai. Dono de 3.792 hectares, divididos em dez propriedades em Amambai, o empresário já foi acusado de desmatamento e exploração ilegal de madeira. Atualmente, tem uma dívida ativa com a União no valor de R $493,2 milhões. 

Em depoimento dado à polícia, os caseiros de Torelli, na Borda da Mata, disseram que os indígenas haviam destruído e saqueado a casa da fazenda quando adentraram no território.

A história foi repetida pelas forças de segurança do Mato Grosso do Sul para justificar suas ações. Contudo, o resultado parcial da perícia antropológica realizada pelo Ministério Público Federal na área de conflito, entre os dias 28 de junho e 4 de julho, constatou que se trata de uma mentira. 

Indígena diante de muro grafitado Thekoha Gapo'Y
Indígena diante de muro grafitado Thekoha (“Aldeia” em guarani) Gapoý | Imagem: Gabriel Schlickmann

De acordo com a perícia, “a alegação de que quebraram tudo e de que tudo fora levado, no entanto, não se sustenta”. O relatório afirma: “Fotografias tiradas em 27 de maio, logo após a primeira retirada dos indígenas pela Tropa de Choque da PM, e disponibilizadas ao MPF pelos antigos moradores, ilustram o local sujo e revirado, mas também objetos de valor que interessariam aos indígenas e que lá permaneceram, a exemplo de equipamentos de pesca, bacia plástica, botijão de gás, freezer e cortina. Vê-se camas, colchões, sofás, poltronas, um aparelho de televisão e até uma nota de R$ 2”.

O relatório do Ministério Público Federal corrobora com essa versão. “As fotografias feitas pelo próprio perito do MPF, em 1º de julho, dias após a segunda ação da Tropa de Choque – que resultou na morte do indígena Vitor Fernandes – mostra a mesma ‘casa azul’ com o interior limpo e mais alguns materiais que poderiam ter valor para os indígenas ali acampados: fogão, geladeira, colchões, toalha, cobertor, roupas, cadeiras, botijão de gás, panelas, garrafão de água mineral, fardo de papel higiênico e até um saco de pães. As informações obtidas pelo MPF é que, entre uma ação da Tropa de Choque e outra, uma equipe de segurança particular passou a ocupar a ‘casa azul’’ Além da ‘casa azul’, as demais edificações da sede da fazenda, incluindo insumos e equipamentos, não aparentam ter sofrido qualquer avaria significativa recente”.

Outro lado

Em nota, a Sejusp afirmou à Ponte que “a tropa foi solicitada para atuar em apoio às forças de segurança locais – que foram acionadas pelas vítimas -, para atender ocorrências de crimes comuns  como violação de domicílio, danos, roubos, cárcere privado, dentre outros, todos de competência das forças estaduais e, que independem de mandado judicial”. 

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A Sejusp ainda afirmou que “ao todo 3 policiais foram feridos a tiros nas pernas e braços, uma vez que usavam equipamentos de proteção individual e escudos”. Os laudos não foram disponibilizados sob a alegação de que “contém informações pessoais, as quais estão protegidas pela lei de proteção de dados, sendo que a autorização para divulgação ou não cabe a cada uma das vítimas”. A Ponte não conseguiu contato com os policiais. 

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