Juíza reconheceu gravidade do estado de saúde de cadeirante negro e necessidade de cuidados permanentes que não são possíveis dentro da prisão: “medida de caráter humanitário”, escreveu; Ponte denunciou caso em junho
Ana* respira aliviada desde o dia 21 de setembro, quando o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu conceder a prisão domiciliar para seu filho. João* é paraplégico, tem infecção nos ossos, usa fraldas e carrega quatro feridas profundas e permanentes nos glúteos, que precisam ser limpas duas vezes por dia, sob risco de infecção, e está com 80% da audição comprometida devido a antibióticos que fez uso. “Graças a Deus, ele está bem”, disse.
A Ponte denunciou o caso em junho, quando o rapaz estava na Penitenciária de Dracena, distante a 650 quilômetros da capital, que é destinada a pessoas condenadas. A mãe do rapaz negro de 26 anos não tinha condições de fazer visitas com frequência, mandava os materiais e curativos do próprio bolso e tinha medo de o filho pegar uma infecção nos ferimentos e morrer devido às condições do presídio. A Pastoral Carcerária também vinha monitorando e questionando a Coordenadoria de Saúde do governo paulista sobre a situação do jovem. Cinco dias depois da publicação da reportagem, ele foi transferido para a Penitenciária Mario de Moura Albuquerque, localizada em Franco da Rocha, na Grande São Paulo, e um pouco menos distante da casa da família.
No entanto, o desejo de Ana era poder assegurar que o filho fosse bem cuidado, algo que só poderia acontecer de duas formas: ou se ele permanecesse no Hospital Penitenciário ou cumprisse a pena em casa. Depois de negativas, inclusive com manifestação contrária do Ministério Público Estadual, o tribunal atendeu o pedido de prisão domiciliar.
A juíza Luciana Netto Rigoni, da Unidade Regional do Departamento Estadual de Execução Criminal em Campinas (Deecrim), escreveu que ficou impressionada com as imagens dos ferimentos de João que foram anexadas no pedido feito pela Defensoria Pública e que ficou demonstrada a gravidade das condições de saúde do detento. “O caso é de alta complexidade, e por mais que se verifique que o executado [preso] esteja assistido pelo sistema prisional, seu estado de vulnerabilidade excepcional justifica a adoção da medida extraordinária, que autoriza o cumprimento da pena de maneira diferenciada”, apontou.
Ela também refutou o argumento do promotor Alexandre Daruge de que não caberia acolher a solicitação porque João já era paraplégico quando participou de um roubo de celular, em 2019. Rigoni indicou que não desconhece como o crime aconteceu, mas “sua condição de saúde vem se deteriorando com o tempo, sendo sua manutenção no cárcere algo impiedoso, que não se coaduna com a finalidade da pena”.
Na ocasião, o rapaz teria atuado como “olheiro” de dois ladrões, permanecendo no carro enquanto a dupla praticava o assalto. Pelo crime, foi condenado, no ano seguinte, a 8 anos e 10 meses de prisão. Ele respondeu ao processo em liberdade e, quando a condenação se tornou definitiva, sem possibilidade de recurso, foi mandado para a prisão, em 25 de fevereiro deste ano. João é cadeirante desde os 16 anos, quando sofreu um acidente de moto e ficou paraplégico.
A magistrada destacou que os direitos previstos às pessoas presas têm que ser assegurados sob o princípio da dignidade humana e determinou que ele use tornozeleira eletrônica enquanto estiver em prisão domiciliar. “Havendo provas robustas quanto à grave condição de saúde do executado e ausência de indicativos de cura ou melhora, deve-se conceder a prisão domiciliar por se tratar de medida de caráter humanitário”, argumentou.
“Eu ainda estou em choque porque foi um milagre, depois de tanta negativa nesse percurso e eu só conseguia visitar ele de 15 em 15 dias por causa do serviço, agora eu consigo ter meu filho aqui comigo”, declarou Ana.
*Os nomes são fictícios e foram trocados a pedido da família.