Governos municipal e estadual de São Paulo anunciaram conjunto de medidas para combater a cena de uso de drogas na capital; pesquisadores avaliam que propostas reciclam ações antigas e ineficazes: “sem base científica”
Os governos municipal e estadual de São Paulo anunciaram, na terça-feira (24/1), um conjunto de ações que serão adotadas para combater a “Cracolândia”, como é chamada pejorativamente a cena aberta de uso e venda de drogas por pessoas em situação de vulnerabilidade social no centro da capital. Algumas das medidas já vinham sendo antecipadas pela imprensa, como a ampliação do monitoramento por câmeras de vigilância, aumento de vagas em comunidades terapêuticas e o uso da chamada Justiça Terapêutica, que propõe como alternativa a pessoa com dependência química e que cometeu algum delito de menor potencial ofensivo a escolha de acolhimento e/ou internação para não ser presa em flagrante.
O rol de ações, contudo, causa preocupação a especialistas em direitos da população de rua e estudiosos das políticas de drogas, principalmente pelo fato de o projeto não contar com a participação de membros da sociedade civil e das pessoas diretamente envolvidas para discutir as propostas.
“Não há por parte do poder público nenhuma disposição em dialogar. Eles tentam impor as propostas que são violadoras de direitos humanos, ineficazes, porque não funcionaram no passado, e não há nenhum diálogo com a sociedade civil e especialistas que não seguem essa cartilha proibicionista”, critica Cristiano Maronna, diretor da organiação Justa e membro do Conselho Municipal de Políticas Públicas de Drogas e Álcool do Município de São Paulo (Comuda).
A pressa do anúncio também incomodou. “Esse pacote criado em 25 dias talvez não vá responder as demandas reais da região”, avalia Maria Angélica Comis, gerente de advocacy do Centro de Convivência É de Lei.
Membro do Fórum da Cidade em Defesa da População em Situação de Rua, Alderon Pereira Costa também questiona o apoio institucional do Ministério Público e da Defensoria Pública ao pacote. “São órgãos fiscalizadores, o que a priori já causa estranhamento”, afirma.
A Ponte elenca abaixo algumas das ações comentadas por eles.
Internação compulsória
A internação compulsória acontece por determinação judicial, quando a pessoa não tem como escolher.
O prefeito Ricardo Nunes (MDB) defendeu a medida uma semana antes do anúncio, em 13 de janeiro, para pessoas que estivessem consumindo crack há mais de cinco anos. “É uma avaliação médica, o que não podemos desconsiderar é a realidade dos fatos. Quem está no consumo há mais de cinco anos, são estudos que demonstram, o poder público precisa dar um atendimento, seja internação involuntária, compulsória ou em comunidade terapêutica, seja qual for”, afirmou na ocasião.
Ele se baseou em um levantamento feito pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que identificou que 57,4% dos frequentadores da “Cracolândia” estavam na região há pelo menos cinco anos em 2021.
Na coletiva, contudo, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) disse que a medida seria empregada em “último caso”.
O diretor do Justa, Cristiano Maronna, explica que a internação compulsória só é prevista para pessoas que não tenham como discernir a consequência de seus atos ao cometer crime, chamadas de “inimputáveis” porque não entendem que determinado ato que praticaram é crime e não podem ser punidas por isso.
“A internação compulsória só tem previsão legal no Brasil quando se trata de medida de segurança, então o inimputável, o semiputável, que pratica um crime não pode ser punido com uma pena, mas com uma medida de segurança, que pode ser a internação compulsória em um hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou tratamento ambulatorial”, sinaliza. “Fora dessa hipótese prevista na lei penal, não há no ordenamento jurídico brasileiro nenhuma hipótese legal que autoriza o juiz internar alguém por qualquer motivo, nem internar alguém por ser dependente de drogas.”
Na Lei de Drogas (11.343/2006) foram incluídas, em 2019, dois tipos de internação: a voluntária (com consentimento da pessoa dependente de drogas) e a involuntária (solicitada por alguém e decretada por um médico). Maronna, que lançará um livro sobre a interpretação da lei em fevereiro, aponta que a internação involuntária é “excepcional”, independe do tempo que a pessoa consome entorpecentes e não é uma “panaceia”.
“O fato de a pessoa viver na rua por si só não justifica a internação forçada, o fato de a pessoa usar droga ou ser dependente também não justifica a internação forçada”, aponta. “A internação forçada é uma medida excepcional em que só pode ser aplicada em momentos de surto, quando a pessoa passa por uma situação em que ela coloca em risco a própria integridade e isso não acontece necessariamente quando a pessoa está vivendo na rua ou, eventualmente, é dependente de drogas.”
Ele indica que a atuação contra o problema da permanência na cena de uso depende de ampliação de serviços públicos, que envolvam as áreas da saúde e assistência social, e que incluir o sistema de justiça nesse processo é problemático porque a mudança de 2019 na Lei de Drogas, segundo ele, “repete o que diz a Lei Antimanicomial [2001]”, que visa proteger os direitos das pessoas com transtornos mentais e combater a ideia de que internação compulsória em manicômios é a solução. “A internação involuntária só pode ser decretada por um médico, então envolver juiz, Ministério Público, Defensoria Pública me parece um erro”.
Na Lei de Drogas, para o crime de porte, são previstos três tipos de penas, segundo o artigo 28: advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Nessa terceira pena é interpretada a aplicação da justiça terapêutica enquanto alternativa penal à prisão.
No parágrafo 7º do mesmo artigo, é apontado que o “juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado”. O tratamento ambulatorial é que aquele que não tem internação e a pessoa pode manter suas atividades fora de equipamentos de saúde e de assistência social.
No artigo 26, é indicado que “o usuário e o dependente de drogas que, em razão da prática de infração penal, estiverem cumprindo pena privativa de liberdade ou submetidos a medida de segurança, têm garantidos os serviços de atenção à sua saúde, definidos pelo respectivo sistema penitenciário”. No artigo 47, é apontado que se a pessoa for condenada (e não no momento da prisão) por algum crime e ser dependente químico, o juiz pode determinar encaminhamento para tratamento, desde que atestada a necessidade por profissional de saúde atendendo o previsto no artigo 26.
Justiça terapêutica
O poder público também anunciou a reformulação do Centro de Referenda de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod), que é vinculado ao governo estadual, para se tornar um hub de atendimento ou “porta de entrada aos usuários de substância psicoativas e suas famílias”. A unidade prevê a implantação de uma casa de passagem com 40 vagas e abrigará espaços para atuação de representantes do Ministério Público (MPSP) e do Judiciário, integrando no local uma espécie de juizado especial.
Apesar de os governos terem afirmado que será criado um grupo de trabalho para definir como vai ser feita a implementação em conjunto com o MPSP, Tribunal de Justiça e Defensoria Pública, anteciparam os casos em que a tal “justiça terapêutica” poderia ser aplicada.
Nas apresentações em Power Point compartilhadas no evento, são destacadas quatro situações:
- Pessoa presa em flagrante por infração com menor potencial ofensivo: são infrações/crimes com penas inferiores a dois anos de prisão. Nesse caso, a pessoa é levada pela polícia ao Cratod, onde seriam apresentadas medidas de saúde ou assistência social disponíveis e ela escolheria se quer ou não ingressar nelas e assina um termo de compromisso para comparecer numa audiência. O boletim de ocorrência é feito da mesma forma. A depender da avaliação do Ministério Público e do Poder Judiciário nessa audiência preliminar, e se a pessoa quiser ingressar no tratamento ou não, pode haver a suspensão do processo, acordo de não persecução penal (quando a pessoa reconhece o erro e lhe são dadas outras opções que não seja a prisão) ou, se for condenada, “na sentença estabelece-se como uma das condições o ingresso em medida de saúde ou assistência social indicada pelo programa e/ou proibição de frequentar ‘cenas de uso aberto’ de drogas pelo período especificado”.
- Pessoa presa em flagrante por infração que não seja de menor potencial ofensivo: é levada pela polícia à delegacia, onde o caso é registrado, e passa por audiência de custódia. Se a prisão não for convertida em preventiva (tempo indeterminado) ou o caso entrar nas hipóteses de não persecução penal (oferecido pelo Ministério Público para crimes que não sejam praticados com violência ou grave ameaça e pena seja inferior a quatro anos de prisão), a critério do MPSP e do Poder Judiciário também se estabelece “o ingresso em medida de saúde ou assistência social indicada pelo programa e/ou proibição de frequentar ‘cenas de uso aberto’ de drogas pelo período especificado”. A ideia é que equipes de saúde e assistência social também estejam presentes na audiência para atendimento inicial.
- Descumprimento de medidas cautelares ou penas cumpridas em regime aberto: medidas cautelares são as que restringem direitos, por exemplo, a pessoa teve a liberdade decretada, mas não pode se ausentar da cidade ou sair de casa após as 22h. Já as penas em regime aberto são totalmente cumpridas fora da prisão. Nesse caso, segundo o texto da proposta, o policial faz um registro e libera a pessoa. Essa ocorrência é incluída no processo da pessoa e a depender da avaliação do Ministério Público e do Poder Judiciário, não sendo o caso de prender essa pessoa, é estabelecido “o ingresso em medida de saúde ou assistência social indicada pelo programa e/ou proibição de frequentar ‘cenas de uso aberto’ de drogas pelo período especificado”. Em coletiva, o prefeito Ricardo Nunes disse que presos do regime semiaberto também poderiam entrar nesse critério e, caso recusassem internação se houvesse avaliação médica para isso, poderiam ser presos novamente.
- Pessoa envolvida em ocorrências policiais (passagem) no entorno do projeto e que não esteja portando documento ou se recuse a se identificar: a pessoa é levada para a unidade para ser identificada e tenha acesso a serviço oficial de emissão de documentos (Poupatempo). São apresentadas medidas de saúde ou assistência social disponíveis em que escolhe se quer ingressar. Se negar, é liberada e a situação registrada em sistema.
Nesse rol, como a Polícia Militar é quem faz as abordagens na rua, os governos municipal e estadual anunciaram que os policiais militares “poderão fazer o registro de ocorrência para fins judiciais, repassando diretamente às autoridades eliminando a necessidade de deslocamento até a delegacia, salvo em casos de flagrante”. A ação, contudo, é considerada ilegal pelos especialistas. “A PM não tem função de polícia judiciária [que faz investigação]”, critica Cristiano Maronna.
A Ponte questionou sobre isso na coletiva, mas nem o vice-governador Felicio Ramuth, que é o responsável por coordenar as ações na “Cracolândia”, ou o governador Tarcísio de Freitas deram detalhes nem informaram os critérios para isso acontecer.
Por outro lado, informaram que haverá reforço do policiamento por meio de operações delegadas, um convênio em que a Prefeitura paga policiais militares para reforçar o policiamento na cidade durante suas folgas. Também foi anunciada a aquisição de mais 110 novas motos para a Guarda Civil Metropolitana (GCM).
Na coletiva, tanto o prefeito quanto o governador evitaram avaliar as ações da gestão anterior. O delegado Roberto Monteiro, que era titular da seccional centro e comandava a operação, foi trocado pelo delegado Jair Ortiz Barbosa que, em entrevista à Folha, criticou as dispersões e que “pancada não resolve” o problema.
Membro do Fórum da Cidade em Defesa da População em Situação de Rua, Alderon Pereira Costa entende que essas medidas não se diferenciam do que a Polícia Civil, no âmbito da Operação Caronte, fazia antes da troca de gestão, como em setembro de 2022, quando diversas pessoas em situação de rua e com dependência química eram levadas em massa para o 77º DP (Santa Cecília), assinavam um termo circunstanciado (registro pra infrações de menor potencial ofensivo) e eram transportados para unidades de saúde da Prefeitura para evitar o uso de drogas em vias públicas.
“[As medidas anunciadas] consistem em estar condenando as pessoas a priori a um tratamento, como aconteceu recentemente: pega todo mundo, leva para a delegacia e lá encaminham as pessoas para internação. Na verdade, é um tipo de internação compulsória”, critica.
Maria Angélica Comis, do É de Lei, também concorda que a justiça terapêutica pode ser “mal utilizada” e trazer esse tipo de risco. “A abordagem tem que ser qualificada por várias óticas, não só pela abstinência e pela lógica proibicionista, mas que seja mais ampla. Como acompanhamos, as abordagens na ‘Cracolândia’ [pelas forças de segurança] são bastante truculentas, então pode trazer ainda mais problemas para a saúde mental dessa população que é atendida na região”.
Cristiano Maronna, do Justa, corrobora o entendimento e avalia que as propostas são “novas roupagens” para medidas já aplicadas anteriormente. “A justiça terapêutica é um modelo muito ruim porque lida com uma espécie de extorsão que é você dar para a pessoa que tem a possibilidade de ser presa e processada a alternativa de se submeter a um tratamento compulsório e, se ela não quiser, vai sofrer as consequências da lei. Ninguém, evidentemente, vai escolher ser processado ou ser punido se tiver outra opção”, analisa. “A questão é que o tratamento da dependência química é extremamente complexo e quando não é voluntário é ineficaz e não surte resultado. As pesquisas mostram que nos casos de internação involuntária, 97% das pessoas voltam a usar drogas justamente porque simplesmente isolar é um mau caminho, não surte efeito”.
Além do espaço para MP, Defensoria e Judiciário, Cratod também terá um espaço para “atuação da sociedade civil organizada ou não, por meio dos coletivos, assim como também, dos grupos de mútua ajuda”. Contudo, não especifica quem e nem os critérios de escolha para quem ocupará o espaço. “Eu fiquei com muita dúvida nessa questão porque, se se prevê participação da sociedade civil, por que ninguém participou da discussão?”, critica Maria Angélica, do Centro de Convivência É de Lei. “Será que vai ser permitida a atuação de uma organização como o É de Lei, que trabalha com redução de danos?”, prossegue.
Redução de danos é um tipo de abordagem que não prevê a abstinência total de um usuário de drogas e busca maneiras para minimizar os impactos para ele e para a sociedade, já que ele não conseguiria ou não quer parar de consumir. As ações vão desde a distribuição de insumos, como cachimbos e seringas, evitando ferimentos e contaminação por doenças contagiosas, até políticas que garantam moradia e possibilidade de renda aos usuários. Esse tipo de abordagem foi adotada no extinto programa “De Braços Abertos”, na gestão do prefeito Fernando Haddad (2013-2016).
Maria Angélica pontua que as propostas não são claras se tipo de abordagem também integrará o projeto, embora exista lei e decreto municipais de 2019 que preveem a redução de danos como uma das possibilidades de tratamento. “Desde que foi incluída em 2019, a redução de danos nunca foi devidamente implementada pela Prefeitura”, denuncia.
“O que tira as pessoas da ‘Cracolândia’ são vínculos, sentidos, cuidados, por isto a redução de danos é tão potente e já é adotada até em gestões de direita pelo mundo todo, porque não é só por ser uma política humana e porque trata bem as pessoas, mas porque é uma política mais barata e efetiva”, complementa a antropóloga Roberta Costa, integrante do coletivo A Craco Resiste, que denuncia violações de direitos humanos na região. “Cuidar e criar vínculo funciona, prender e bater só piora a situação.”
Comunidades terapêuticas
Outra proposta dos dois governos é abrir mais 1.000 vagas em comunidades terapêuticas, sendo 500 de atendimento imediato. Foram anunciadas 220 vagas para desintoxicação em hospitais gerais, sendo 20 delas na unidade Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP); reorganização da Unidade Helvétia com abertura de 46 leitos para desintoxicação e cuidados médicos; contratação de 200 profissionais especializados em dependência química para Equipe de Abordagem Qualificada, embora não tenha sido informado de que área seriam esses profissionais (se médicos ou assistentes sociais); e Novo Serviço de Cuidados Prolongados (SCP), ligado ao programa Rendenção da Prefeitura, com implantação junto ao Caps (Centro de Atendimento Psicossocial) Álcool e Drogas III Boracea, com 40 vagas, para “receber pacientes que receberam alta da internação, mas que precisam seguir com cuidados intensivos e assistidos”.
Vale destacar que comunidades terapêuticas não são equipamentos de saúde e nem podem ser espaço de internação, conforme prevê o parágrafo 9º do artigo 23-A da Lei de Drogas. Conforme a seção VI da lei, que trata do assunto, esse espaço é de acolhimento transitório visando a abstinência do usuário e sua reinserção social e econômica, com oferta de moradia e “atividades práticas de valor educativo e a promoção do desenvolvimento pessoal”. Pessoas “com comprometimentos biológicos e psicológicos de natureza grave que mereçam atenção médico-hospitalar contínua ou de emergência” não podem ser encaminhadas a esse tipo de estabelecimento e sim à rede de saúde.
Os especialistas entrevistados pela Ponte questionam esse tipo de solução devido às denúncias de violações de direitos humanos nesses espaços, a falta de dados que atestem a eficácia da medida, e a falta de controle de gasto excessivo. Em abril de 2022, um estudo do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e da ONG Conectas Direitos Humanos mostrou que, entre 2017 e 2020, o Brasil gastou R$ 560 milhões para financiar vagas de internação em 593 entidades, sendo que a maior partes dos recursos (R$ 300 milhões) saíram dos cofres do governo federal, sobretudo durante o governo Jair Bolsonaro (PL).
À reportagem da BBC News Brasil na época, o pesquisador do Cebrap e um dos responsáveis pelo estudo, Maurício Fiore, explicou que os contratos costumam ser feitos sem licitação e as entidades precisam cumprir apenas exigências de resoluções da Anvisa e da Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (Senapred). “Hoje, se você quiser abrir uma Comunidade Terapêutica para receber pessoas e conseguir financiamento público, basicamente precisa cumprir requisitos burocráticos e preencher formulários. Não há análise do serviço que será oferecido, do público-alvo ou da demanda do local onde a comunidade está localizada”, declarou.
Cristiano Maronna, que também integra o Comuda, aponta que as comunidades terapêuticas, que teriam uma “atuação complementar” ao do poder público, se tornaram o “centro da política [de drogas]”. “As comunidades terapêuticas drenam recursos que poderiam ir para o SUS e que acabam indo para entidades privadas que têm uma natureza religiosa, ligadas a uma perspectiva de política pública muito conservadora e própria do bolsonarismo, o Osmar Terra [deputado federal pelo MDB-RS e ex-ministro da Cidadania no governo Bolsonaro] foi um dos maiores incentivadores”, analisa. “O centro da política pública deveria ser o SUS, os Caps [Centros de Atenção Psicossocial, que substituíram os hospitais psiquiátricos e manicômios], a rede de atenção psicossocial do SUS.”
Maria Angélica Comis, do É de Lei, concorda e ressalta que a pesquisa da Unifesp sobre frequentadores da “Cracolândia” identificou que 10,4% deles relatou já ter sido submetido a trabalhos forçados em instituições de tratamento para dependência química pelo menos uma vez na vida, sendo que mais de um terço desses referiu ter sofrido essa situação em 2021.
Além disso, ela aponta que a pesquisa sugere a implementação de ações de baixa exigência. “Esses estudos apontam que esse tipo de abordagem focado na abstinência não vai ter efeito nas pessoas que são mais resilientes, e essa pesquisa sugere foco em abordagens e cuidados de baixa exigência, ou seja, baseadas redução de danos”, pontua.
Ela também destaca que 53% dos frequentadores da “Cracolândia” relataram na pesquisa que voltariam para os Caps e para os Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica III (Siat), que funcionam como hotéis sociais. “Se esses tiveram os índices mais satisfatórios, por que a Prefeitura e o Estado não investem nesses serviços ao invés de aumentar o número de vagas em comunidades terapêuticas?”, questiona.
“O que a gente percebe é que a Prefeitura e o Governo do Estado estão alinhados a um discurso ultrapassado, sem base científica, um discurso higienista que o Haroldo Caetano, um promotor de justiça de Goiás que estuda essa questão, chama de ‘populismo manicomial’, que é achar que a solução é internar, isolar e excluir de circulação essas pessoas”, critica Maronna. “Essas medidas já foram adotadas e não deram certo. É uma novela que se repete com novos personagens porque a ‘Cracolândia’ não é um lugar, são pessoas que tem necessidades como todos nós temos, o começo da solução passa em se compreender isso”.
Programa Reencontro
O prefeito e o governador colocaram a área da habitação como “porta de saída” nessa cadeia de tratamento para as pessoas com dependência química. Uma das medidas que constaram no anúncio mas que não ficou claro se seria destinada a usuários de drogas é o Programa Reencontro e o Auxílio Reencontro, da Prefeitura.
Ambos são projetos da prefeitura e estão previstos no programa de metas municipal. O auxílio foi sancionado no ano passado, o que de antemão gerou críticas de movimentos sociais e entidades voltadas à temática por ter sido votado na Câmara Municipal dentro de um mês após o Executivo enviar a proposta, sem passar por discussão com os conselhos que tratam da temática da população de rua e com a sociedade civil. No anúncio do pacote de medias para a “Cracolândia”, o prefeito Ricardo Nunes anunciou que seria assinado decreto para regulamentar o auxílio e instituir o programa, que foi publicado nesta quarta-feira (25) no Diário Oficial da cidade.
O auxílio consiste na oferta de R$ 600 a R$ 1.200 por mês a quem se dispor a acolher uma pessoa em situação de rua. O valor mínimo é para acolhimento individual e o máximo para acolhimento de família em situação de rua. Uma das regras é que a pessoa que acolhe pode ser do núcleo familiar, núcleo estendido ou de grupo afetivo de quem está em situação de rua. O auxílio tem duração de dois anos e pode ser cancelado se a pessoa voltar para as ruas ou ingressar no mercado de trabalho. Já a Vila Reencontro são moradias sociais construídas, que podem ser transitórias ou por locação social.
Assim que tinha sido sancionado o auxílio em 2022, Kelseny Medeiros Pinho, pesquisadora do Laboratório de Justiça Territorial da Universidade Federal do ABC Paulista (UFABC), escreveu um artigo no jornal O Estado de S. Paulo junto com outras pesquisadoras apontando os problemas da medida, como ferir a autonomia da pessoa em situação de rua ao ir “na contramão de auxílios já existentes como o emergencial, o bolsa aluguel, o antigo bolsa-família e o auxílio municipal às mulheres vítimas de violência doméstica, entre outros, que se destinam diretamente ao público que se deseja fortalecer” e produzir riscos para a população de rua, uma vez que o Censo Municipal da População de Rua de 2021 apontou que um dos principais motivos (34,7%) para uma pessoa estar em situação de rua são os conflitos familiares.
Ao analisar a regulamentação por decreto, Kelseny disse à Ponte que o texto “enfraquece” o Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População em Situação de Rua (Comitê PopRua) que tem a atribuição por lei de discutir e definir diretrizes das políticas públicas na temática, bem como avaliá-las e monitorá-las.
“Fica bem claro que as decisões importantes serão tomadas por um núcleo técnico que o decreto institui, com vários secretários, sem participação da sociedade civil. Um exemplo é: o decreto atribui ao núcleo técnico criar os critérios para que as pessoas acessem o Auxílio Reencontro e a Vila Reencontro”, analisa. “Na minha opinião, isso fere a lei municipal de políticas públicas para população em situação de rua porque isso seria atribuição do Comitê PopRua.”
Outro ponto é estruturar o auxílio e a vila pelo serviço de Moradia Primeiro, que é a adaptação do modelo Housing First, de oferecimento de moradia à população de rua. No decreto, para ser determinado qual dos benefícios será destinado, leva-se em consideração “o grau de autonomia do beneficiário, aferido em avaliação socioassistencial, e conforme a disponibilidade de unidades”.
Para Kelseny e Alderon, do Fórum da Cidade em Defesa da População em Situação de Rua, o critério vai na contramão da ideia original do modelo. “O Moradia Primeiro, na forma como é sistematizada a metodologia internacionalmente, não faz essa avaliação. Pelo contrário, ele é voltado para a pessoa com menos autonomia e mais tempo de rua. A Prefeitura vai no sentido contrário: ela quer escolher a pessoa ou família com menos tempo de rua e mais autonomia”, critica Kelseny.
Além disso, o texto não evidencia se as pessoas em situação de rua e com dependência química serão beneficiadas, o que, para os especialistas, deveria ser a porta de entrada no tratamento dessas pessoas. “O Moradia Primeiro é específico para quem faz uso abusivo de drogas e não é um programa para a população em situação de rua. O Moradia Primeiro original surge como uma resposta para quem faz uso de droga poder se inserir na sociedade e se inserir no espaço em que outras políticas poderão adentrar, como redução de danos”, pondera Alderon. “Eles [poder público] estão usando o Moradia Primeiro como marketing, o que não é.”
“Essas pessoas devem receber um tratamento que não é qualquer pessoa que pode dar”, complementa Maronna sobre o auxílio. “Isso também gera uma distorção do trabalho do Estado, quer dizer, você paga para uma pessoa que não tem capacidade técnica para acolher, é muito complicado”.
O que dizem os governos
A Ponte questionou a Prefeitura e o Governo do Estado a respeito das avaliações dos especialistas entrevistados sobre as medidas voltadas para a “Cracolândia” e aguarda retorno.