Documentário conta a trajetória de duas vidas afetadas pelas violações da Segunda Guerra Mundial e que se entrelaçaram na arte marcial
O trem estava lotado. O ponto final não era um destino comum. Era um lugar para as realizações de torturas, assassinatos e todo tipo de monstruosidades. Mas aquela garotinha não se deu por vencida. Com apenas 13 anos, ela pulou do vagão tentando fugir do destino cruel que estava reservado para sua família. Do outro lado do oceano, um garotinho tenta escapar das bombas arremessadas por aviões estrangeiros que devastaram sua cidade. Seu país viria abaixo. O encontro dessas duas culturas — e culturas — é o ponto de partida do documentário de longa-metragem Um Samurai em São Paulo, da diretora Débora Mamber Czeresnia.
O filme estreou comercialmente quinta-feira (30/3), em nove cidades brasileiras. “Quando o Okuda me contou sobre sua infância durante a Segunda Guerra Mundial no Japão, não tive como não lembrar dos meus avós, que também viveram esse período terrível na Europa. Então, os paralelos foram se construindo”, explica a diretora.
Descendente de judeus poloneses, a jornalista e cineasta Débora Mamber Czeresnia era aluna de karatê do professor japonês Takedo Okuda (1942-2022). Radicado no Brasil desde os anos 1960, ele tornou-se um dos principais nomes desta arte marcial no país.
Inicialmente, existia uma grande distância entre a diretora e o personagem. Okuda era um homem comedido e reservado. “Tudo o que eu sabia eram apenas rumores de que ele tinha sido uma figura muito importante no karatê brasileiro”, ressalta a realizadora. Homem metódico, o sensei mantinha uma distância restrita para todos os alunos. Ele apenas cumprimentava secamente no início e no final dos treinos. “Eu ficava curiosa, queria saber mais”, confessa Débora. Em 2013, o único filho homem do professor, que vinha sendo preparado para sucedê-lo, morreu subitamente. “Okuda já estava com mais de sessenta anos, e eu pensei que a história dele fosse se perder. Então decidi fazer o documentário”.
A realizadora percebeu que a história da família dela e a de Okuda se entrecruzaram. De um lado, os judeus que foram massacrados nos campos de concentração pelos nazistas e fugiram para outros países. Da mesma maneira como os japoneses foram massacrados pelas bombas atômicas e tiveram que se reerguer. “Mas, como sempre, foi a população que pagou o preço da escolha de seu governo. As reflexões que a história de Okuda me provocou sobre a trajetória dos meus avós foram ampliando para mim o significado da arte marcial”.
Czeresnia pesquisou a fundo a trajetória do próprio karatê no Brasil. Acabou descobrindo que Okuda emigrou para a América do Sul trazendo todo o treinamento da Associação Japonesa de Karatê aprendido no Japão, cujo método era pesado e bastante violento. Tanto que muitos poucos alunos se formaram. Nunca mais esse tipo de treinamento foi repetido por aqui. “Portanto, os que passaram por ele nesse período tiveram uma formação única”, conclui a diretora.
Diversas pessoas foram entrevistadas ao longo do processo de produção. Mas esses depoimentos acabaram não entrando na versão final do filme. “Decidi investigar em paralelo as nossas histórias pessoais, escolhendo uma linguagem mais ensaística, as entrevistas passaram a não fazer sentido no formato final”.
Com 70 minutos de duração, Um Samurai em São Paulo apresenta um misto de culturas que conseguiram sobreviver após um conflito brutal. O personagem principal aparece como uma figura austera que demonstra muita resiliência após a perda do filho, Tetsuo Okuda. “Ao longo do processo de realização do filme, ficou claro para que o que importava para o filme era como Sensei Okuda enfrentou essa perda tão grande, e que não cabia a mim e nem aos espectadores remexer em algo tão traumático”, explica a realizadora. “Tenho para mim que esta foi uma escolha ética”.
Czeresnia acompanhou o sensei Okuda em algumas viagens internacionais no Japão e no Uruguai. Levou a equipe técnica para documentar o professor em diferentes ambientes. O sensei ia todos os anos para o país vizinho ministrar cursos de artes marciais. “Era uma situação bastante diferente de São Paulo, onde a quantidade de alunos era bem mais restrita. Eu quis registrar a diferença”.
No Uruguai algo muito diferente aconteceu repentinamente durante um jantar: Okuda começou a cantar. “Era algo que costumava fazer quando mais jovem, e bastante comum para os japoneses, mas que gradualmente foi abandonado. Eu nunca havia presenciado ele cantando, e muitos dos que estavam ali também não. Ele não sabia que estava sendo filmado, acho que do contrário não cantaria”.
Já no Japão era a tentativa de filmá-lo em sua terra natal. “Ali ele estava totalmente em seu ambiente, especialmente no templo de Ise Jingu, que é um dos mais importantes do xintoísmo”.
Czeresnia poderia ter documentado a trajetória pessoal e profissional em uma grande reportagem ou em livro. Mas percebeu que o cinema talvez fosse a linguagem mais apropriada para aquele personagem. “Okuda ensinava pela prática e não pelas palavras. Todo o aprendizado dele estava no corpo, nos gestos, na respiração, nos atos. Eu achava que o audiovisual era a melhor forma de fazer com que pessoas que não o conheciam pudessem captar melhor quem ele era e o que ensinava”.
Foram inúmeras dificuldades enfrentadas ao longo da produção de Um Samurai em São Paulo. Desde conseguir financiamento até aprender a lidar com burocracias e montar uma equipe de trabalho. Achar as imagens de arquivo foi outro problema porque instituições como a Cinemateca Brasileira estiveram fechadas durante a pandemia. A paralização da Ancine (Agência Nacional do Cinema) fez com que a produção do longa-metragem ficasse parada por mais dois anos. “O mais triste disso tudo foi que Okuda não chegou a ver o filme totalmente finalizado”.
Um Samurai em São Paulo foi produzido de forma independente e está em cartaz num circuito comercial um tanto restrito para ter grande público. A diretora explica que o caminho natural do cinema de hoje é a breve carreira nas salas e uma sobrevida nos canais de streaming. “Me comoveu quando fui ao cinema assistir Os Fabelmans do Steven Spielberg”. Antes do filme começar, o realizador aparece agradecendo o público por ter ido presencialmente aos cinemas. “Me comoveu ver o Spielberg agradecendo ao público por estar disposto a sair de suas casas e experienciar essa imersão coletiva que somente o cinema proporciona”.
Um Samurai em São Paulo é o primeiro longa-metragem da diretora. Ela explica que, para insistir nesse tipo de produção nos dias de hoje, somente tendo um misto de paixão, resiliência e (por que não dizer?) uma boa dose de teimosia. Tudo isso porque as linhas de financiamento são muito escassas para uma demanda enorme de gente qualificada com muitos projetos. Já a exibição deixa muito a desejar, uma vez que o horário nos cinemas é muito limitado. “São raríssimas salas que se abrem para o cinema independente autoral, imagine o que acontece em outras partes do país. Isso reflete numa enorme deficiência na formação de público para esse tipo de filme. O streaming consegue sanar essa questão em parte, mas a questão das salas de cinema está posta e não vejo nenhuma solução à vista”, ressalta Czeresnia.
Um Samurai em São Paulo
Direção: Débora Mamber Czeresnia
Brasil, 2022
Duração: 70 minutos
Em cartaz nos cinemas
A coluna “Direitos em Cena” é o espaço para o cinema brasileiro contemporâneo na Ponte: seus filmes, seus diretores, seus personagens. Busca ampliar o espaço de narrativas cinematográficas que muitas vezes não recebem atenção da grande mídia, sempre em relação com os direitos humanos. A coluna é escrita por Matheus Trunk, jornalista, escritor, roteirista e mestre em comunicação audiovisual, autor dos livros O Coringa do Cinema (Giostri, 2013), biografia do cineasta Virgílio Roveda, e Dossiê Boca: Personagens e histórias do cinema paulista (Giostri, 2014).