Arte e política se fundem no Teatro do Oprimido da Maré

    Levando questões da favela para os palcos de outros espaços, jovens do Projeto Teatro do Oprimido convidam sociedade a debater sua realidade por meio da arte


    Nem o forte temporal que desabou sobre grande parte do Rio de Janeiro na tarde do último domingo, 29/11, comprometeu as apresentações das dezenas de jovens que participaram do Festival Juventude da Maré, no Parque das Ruínas, famoso centro cultural carioca localizado no alto de Santa Teresa, bairro nobre na zona central da cidade. Tampouco levou embora o público que foi assistir às peças dos grupos do Projeto Teatro do Oprimido da Maré (GTO) e vem ocupando, com a força de sua arte, espaços urbanos que lhes são comumente negados.

    Com início na parte da manhã, quando foram abertas a “Exposição Visões da Maré” – com telas pintadas por jovens da Maré – e um espaço infanto-juvenil de contação de histórias, o evento seguiu tarde adentro, com as apresentações teatrais, que, elaboradas pelos próprios jovens – que atuam, escrevem, produzem e dirigem os espetáculos – levou ao público algumas das questões sociais vivenciadas cotidianamente por moradores de favelas – como a segregação espacial, o racismo, a estigmatização de favelados e a questão de gênero. Além dos grupos teatrais do GTO, também houve roda de capoeira e outro grupo de teatro da Maré.

    O Festival foi realizado pelo Centro de Teatro do Oprimido, que trabalha em várias comunidades da cidade do Rio de Janeiro há 15 anos e, há dois, se estabilizou no conjunto de favelas da Maré, período no qual já realizou mais de 70 oficinas, dentro e fora das comunidades, promovendo a “democratização dos meios de produção teatral”, segundo o coordenador geral do projeto, Geo Britto, sociólogo e idealizador do projeto. “A gente vai ao local e passa os meios de produção para as próprias pessoas produzirem os seus trabalhos, a sua estética. Então, as histórias são contadas pelos próprios oprimidos. Esta é a essência do Teatro do Oprimido”, explica Britto, em entrevista à Ponte Jornalismo.

    As oficinas acontecem em associações de moradores, escolas públicas, organizações não governamentais, espaços religiosos e diversos outros locais. Assim, foram criados grupos em alguns locais onde se estabeleceu uma parceria sólida: da parceria com o Museu da Maré, foi criado o coletivo teatral MareMoTO; da parceria com o Observatório de Favelas, nasceu o Marear, e com o Centro de Saúde Américo Veloso, o grupo Maré 12.

    Cena do Festival da Maré. Imagem: Yuri Westermann.
    Cena do Festival da Maré. Imagem: Yuri Westermann.

    A técnica parte da proposta do diretor de teatro, dramaturgo e ensaísta Augusto Boal (1931-2009), que fundou, em 1986, o Centro de Teatro do Oprimido, cujo princípio é o de que os oprimidos retomem seu direito à palavra e seu direito de ser, retomando, assim, o protagonismo de sua própria vida. Isto ocorre por meio da troca de experiências entre atores e espectadores, tirando estes últimos de sua posição passiva e atribuindo-lhes um papel transformador, para que, junto com os atores, os oprimidos, busquem meios concretos de ação para transformar a realidade que lhes é apresentada por meio do teatro.

    “O objetivo do projeto é justamente potencializar uma rede de parceiros para debater políticas públicas através do Teatro do Oprimido, que é uma forma política e artística ao mesmo tempo. A gente não vê uma divisão entre política e arte, a gente trabalha isso de uma forma integrada”, afirma o coordenador geral do GTO, que destaca o uso não apenas da palavra, mas de meios estéticos como som e imagem, que devem “partir do próprio oprimido”, com sua “visão de mundo” para pensar “que outro mundo é possível”.

    No Festival Juventude da Maré, o Maré 12, composto apenas por mulheres, apresentou uma peça que aborda a questão de gênero e o machismo a partir da história de uma família na qual o pai apenas senta-se diante da televisão e espera que a esposa e as filhas o sirvam, façam tudo o que ele desejar – como se fossem suas empregadas. Um pai que determina que sua filha, que quer jogar bola, não pode fazê-lo, porque “não é coisa de menina”. O debate sobre a questão de gênero também é proposto pelo grupo MareMoTO, que apresenta a história de um jovem que quer ser ator de teatro e é proibido pelo pai, sob a alegação de que “teatro é coisa de gay e de vagabundo”, e a de uma menina, que também sonha em ser atriz, mas é impedida porque é obrigada a fazer os trabalhos domésticos, atribuídos somente a ela, por ser mulher, enquanto há homens na casa que poderiam desempenhá-los.

    Questão gravíssima no Rio de Janeiro – sobretudo neste período que precede os Jogos Olímpicos de 2016, com linhas de ônibus que conduzem moradores de comunidades da zona norte para as praias da zona sul sendo cortadas e passageiros negros, pobres e favelados sendo retirados de coletivos e revistados sem serem suspeitos de qualquer tipo de delito – a segregação espacial e o direito à cidade também foram debatidos, em uma peça do GTO Marear. “Qual é a cidade que a gente quer? O favelado, o morador de comunidade, tem direito à cidade ou não tem? Qual é o espaço dele?”, questiona Britto, referindo-se à peça, que apresenta um jovem que consegue um emprego e é demitido quando descobrem que ele é morador da Maré, bordando o preconceito existente contra moradores de favelas e a estigmatização destes como bandidos.

    A tarefa de envolver tantos jovens em um projeto como este é árdua, sobretudo quando se trata de um conjunto de favelas que possui mais de 200 mil habitantes, distribuídos em 16 comunidades. “A Maré tem várias divisões, não só do tráfico, mas de identidade. Às vezes um local é mais bem cuidado que outro; alguns jovens nem se identificam como sendo da Maré, então são várias questões”, explica o sociólogo. “Houve recentemente ocupação militar, depois o processo da UPP, então são várias questões profundas que atrapalharam bastante o projeto, porque você não tem liberdade de ir e vir”, explica ele, referindo-se às violações de direitos praticadas pelas chamadas Forças de Pacificação do Exército, que ocuparam a Maré por quase um ano e meio, e por policiais militares da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), contra os moradores das favelas.

    “A gente vive num Estado Democrático de Direito, mas muitos jovens de uma comunidade não podem ir para uma outra comunidade, porque são identificados como jovens de algum comando criminoso, ou de outra entidade, por exemplo. Então são várias questões que a gente debate, e tenta quebrar um pouco isso através da arte”, completa.

    Laboratório de Mídia e Tecnologia do GTO estimula “leitura crítica da mídia”

    Além das atividades artísticas do Teatro do Oprimido na Maré, o projeto abarca o Laboratório de Mídia e Tecnologia, no qual são desenvolvidas “ações, pesquisas e experimentações relacionadas ao uso de tecnologias livres e abertas numa intersecção com o teatro”, segundo o pesquisador de tecnologias livres e jornalista Adriano Belisário, que atua no laboratório. Os encontros com jovens dos grupos MareMoTO e Marear são quinzenais e acontecem, desde o início deste ano, nos mesmos locais onde são desenvolvidas as atividades do teatro – no Museu da Maré e no Observatório de Favelas, ambos no conjunto de favelas da Maré.

    Para Belisário, o Laboratório contribui para que os jovens façam “uma leitura crítica da mídia e das tecnologias que circundam e perpassam o trabalho de qualquer artista e qualquer cidadão” e entendam “que essa mídia e essa tecnologia que estão aí não nos servem e não estão aí para representar os anseios da maior parte da população, e que nós temos meios tecnologias e conhecimentos para desenvolver nossa própria mídia e construir nossas próprias alternativas”.

    Além de dois teasers produzidos a partir de gravações de atuações do GTO, os dois coletivos já têm seus próprios espaços na internet – MareMoTO e GTO – Marear, com o conteúdo produzido pelos jovens, além do blog do projeto Maré.lab. O objetivo foi mostrar “que é muito simples a gente construir nossos próprios canais e meios de comunicação, para colocar nossa própria voz, sem depender dessa grande mídia que tem interesses que não são os mesmos desses jovens”, encerra o pesquisador.

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