Delegado ignorou informação sobre vídeo que mostrava homem negro amarrado por PMs

Delegado Rafael Godoi foi informado por PMs de que uma testemunha havia filmado a agressão policial, mas não pediu as imagens; depois que cena viralizou nas redes, escreveu que “não teve acesso aos vídeos”. Testemunha conta que foi intimidada e desacreditada por policiais

A violência praticada por quatro policiais militares, que algemaram e amarraram os pés de um homem negro, Robson Rodrigo Francisco, 32 anos, com quem apreenderam duas caixas de bombons furtadas, na zona sul da cidade de São Paulo, só gerou reação das autoridades depois que um vídeo da agressão viralizou nas redes sociais, na terça-feira (6/6). Antes disso, os indícios de violência foram ignorados tanto pela Polícia Civil como pelo Judiciário. A principal testemunha da agressão, que fez a filmagem com o celular, conta que foi alvo de intimidação e descrédito por parte dos policiais.

A testemunha — que não quer ser identificada, por medo de represálias — contou à Ponte que estava em uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento), no bairro da Vila Mariana, na noite de domingo (4/6), quando viu os policiais carregando Robson amarrado.

“Na hora que eu me deparei com aquela cena fiquei muito espantado e muito chocado”, conta. “Fui até lá e nisso eu já tirei o celular do bolso e rapidamente comecei a gravar sem pensar em nada, só em gravar e registrar aquela cena de horror”, relata a testemunha. 

Ela conta que Robson se debatia no chão e gritava. Ao notar que estava sendo filmado, segundo a testemunha, um dos policiais chegou até ele com questionamentos.  “O policial vem para cima de mim, perguntando meu nome e pedindo meu RG, perguntando se eu era formado e dizendo que eu não podia questionar ele só se eu fosse formado em segurança pública”, descreve. 

A testemunha diz que foi levada contra sua vontade pelos PMs até o 27º DP (Campo Belo), com a justificativa de que, por ter filmado a cena, teria que ser levado até a delegacia. “Eu falei: ‘assim eu não vou’. Ele [o PM] falou assim: ‘Você vai querer ou não? Você vai por bem ou por mal para delegacia porque você filmou e você é testemunha’”. A prática de conduzir pessoas que filmam violência policial para delegacias, contra a vontade delas e sem ordem judicial, é considerada ilegal por especialistas e uma forma de intimidar testemunhas.

Testemunha desqualificada por delegado: ‘Você é policial?’

No depoimento prestado na mesma noite pela soldado da PM Luana de Almeida Ortega, à qual a Ponte teve acesso, ela conta ao delegado Rafael Godói de Vasconcelos, do 27º DP, que uma testemunha havia se mostrado “inconformado com a forma que estavam tratando o cidadão” e que havia filmado a cena. Em seguida, a PM menciona novamente a filmagem, ao dizer que o vídeo “serviria de prova sobre a regularidade do procedimento”.

A testemunha conta que Rafael Godói não só não perguntou a ela sobre o vídeo relatado pela PM como ainda desqualificou seu depoimento. “Eu relatei a ele: não é assim que se trata uma pessoa, não é esse o procedimento. O delegado perguntou: ‘você é polícia?’. Eu disse que não, mas não preciso ser polícia para saber como se trata uma pessoa”, diz.

Diante da postura do delegado, a testemunha evitou mencionar a filmagem. “Eu não cheguei a mostrar o vídeo porque o delegado não me pediu e porque fiquei com medo de me coagirem para apagar o vídeo, porque eu estava sozinho ali com os policiais”, conta.

Para juíza, não houve tortura

Na audiência de custódia em que analisou as circunstâncias da prisão de Robson Rodrigo Francisco, na segunda-feira (5/6), a juíza Gabriela Marques da Silva Bertoli, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), ignorou as denúncias feitas pela testemunha em seu depoimento registrado no 27º DP e considerou que não houve excessos nem tortura no comportamento dos quatro policiais.

“Não há elementos que permitam concluir ter havido tortura ou maus tratos ou ainda descumprimento dos direitos constitucionais assegurados ao preso”, escreveu Gabriela na decisão da audiência de custódia, na qual converteu a prisão em flagrante para preventiva (sem prazo).

A magistrada destacou ainda que Robson era reincidente e estava cumprindo pena em regime aberto por uma condenação anterior por furto. Ela justificou a decisão afirmando que isso se dá “a fim de se evitar a reiteração delitiva, eis que em liberdade já demonstrou concretamente que continuará a delinquir”. 

Na terça-feira, depois de o vídeo viralizar nas redes sociais, a PM anunciou o afastamento, sem diminuição do salário, dos quatro policiais envolvidos — o sargento Helio dos Santos Carvalho e os soldados Carlos Junio do Nascimento Silva Vieira, Luana de Almeida Ortega e Guilherme Augusto Macedo. Em nota, a corporação afirmou que a violência praticada contra Robson “não é compatível com o treinamento e valores da instituição” e que instaurou um inquérito sobre o caso. 

No dia seguinte, a defensora pública Amanda Babadopulos solicitou à juíza providências da Corregedoria da PM a respeito de “filmagens expostas na mídia” que mostravam como Roberto foi “humilhado e agredido pelos policiais” e “tratado sem qualquer dignidade”. 

No relatório final de inquérito policial que enviou ontem à juíza, o delegado Rafael Godói não menciona que a PM o havia avisado sobre a existência das filmagens e, em vez disso, nega ter tido conhecimento do vídeo. “Ressalto, por fim, que, no momento da lavratura do auto de prisão em flagrante, esta Autoridade Policial [referindo-se a si mesmo] não teve acesso aos vídeos que foram gravados no hospital (…), somente tomando conhecimento da situação nos dias seguintes por intermédio da imprensa e, por esse motivo, não acostou nesses autos as referidas filmagens”, escreveu o delegado, acrescentando que Robson “não adentrou ao Distrito Policial imobilizado daquela maneira.

Robson é suspeito de ter furtado um supermercado Oxxo na Avenida Conselheiro Rodrigues Alvez, na Vila Mariana. Segundo o boletim de ocorrência, um funcionário do estabelecimento contou que cinco pessoas entraram no local e faziam uma espécie de arrastão. Ele teria então acionado o botão de pânico e esperado pelos policiais na parte de fora. Três homens teriam deixado o local com mercadorias.

Os policiais chegaram e fizeram buscas nas áreas próximas. Robson foi localizado na Rua Morgado de Mateus, próximo dali. Com ele, os policiais disseram ter encontrado duas caixas de bombom e que de “informalmente” ele teria confessado o crime e sido preso em flagrante. Ainda segundo os policiais, Robson teria resistido a prisão e os ameaçado de morte. Eles teriam pedido a ajuda de mais uma viatura no local e quatro policias teriam se juntado para contê-lo. Seus pés e mãos foram amarrados e os policiais o levaram para uma UPA do bairro.

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Instituições de defesa dos direitos humanos também se posicionaram sobre o caso. Uma delas foi o Instituto Sou da Paz. “A conduta dos policiais que amarraram o homem com uma corda pelas mãos e pés é completamente inaceitável e foge totalmente da postura ética e profissional que deve fazer parte da atividade policial”, escreveu em nota divulgada nas redes sociais

O que diz o Estado

Procurada, a Secretaria da Segurança Pública do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) não se manifestou até o momento.

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