Julgamento de PMs da Chacina do Curió pode ser marco contra impunidade, dizem especialistas

Onze pessoas foram mortas por policiais em 2015 na Grande Messejana, em Fortaleza (CE); quatro policiais começam a ser julgados pelos crimes nesta terça-feira (20/6) em meio a pedido de desculpas do governador do Ceará 

11 pessoas foram mortas e 7 ficaram feridas na Chacina do Curió | Foto: Reprodução/Facebook

Nesta terça-feira (20/6) quatro policiais militares são julgados no primeiro júri da Chacina do Curió, ocorrida há sete anos na Grande Messejana, em Fortaleza (CE). Onze pessoas foram mortas em crimes motivados, segundo o MInistério Público do Ceará (MPCE), por vingança pelo assassinato do soldado Valtemberg Chaves Serpa, morto em um roubo. Especialistas ouvidos pela Ponte avaliam que a possível punição aos militares é “histórica” e por ser um “marco” contra a impunidade. 

Nesta terça vão a julgamento os policiais Antônio José de Abreu Vidal Filho, Marcus Vinícius Sousa da Costa, Ideraldo Amâncio e Wellington Veras Chagas. Ao todo, o Ministério Público ofereceu denúncia contra 45 PMs por participação na chacina, em um processo que acabou desmembrado em três ações penais — duas com 18 réus cada e uma com oito. Entre junho e setembro, 34 deles devem ser levados a júri popular e os demais passarão por Auditoria Militar. 

A chacina do Curió durou cerca de quatro horas, com práticas de tortura e violações dos diretos humanos, e é a maior no Ceará em relação ao número de agentes públicos envolvidos. Jurema Werneck, diretora da Anistia Internacional no Brasil, avalia que o julgamento pode dar um recado importante. 

“Isso [júri popular] é histórico. Histórico porque o Brasil vive uma trajetória de impunidade. Uma polícia só produz massacres porque pode, porque o Estado deixa, o comando deixa e o sistema de Justiça permite”, diz Jurema. 

A Anistia está como observadora do júri e acompanha o caso junto a organizações sociais e do movimento das Mães do Curió. Werneck reflete que homicídios cometidos por agentes do Estado e por policiais acontecem porque tem anuência de “muitas instituições”. 

“É preciso lembrar que o governador de estado é o comandante das polícias e se a polícia está agindo fora da lei é porque está agindo com anuência, cumplicidade ou omissão do governante”, comenta. 

Na noite de segunda-feira (19/6), o governo do Ceará usou as redes sociais para manifestar apoio aos familiares das 11 vítimas da chacina. “O Governador do Estado do Ceará manifesta sua absoluta solidariedade com os familiares e amigos das vítimas dos homicídios ocorridos no dia 12 de novembro de 2015, quando 11 pessoas dos bairros do Curió, São Miguel, Lagoa Redonda e Messejana foram brutalmente assassinadas. Afinal, foi uma tragédia para toda a sociedade”, disse o texto publicado nas contas oficiais e também na página pessoal do governador. 

Elmano de Freitas (PT) prometeu um pedido de desculpas público aos familiares durante encontro do qual participou em abril deste ano reuinindo familiares das vítimas mediado pela Anistia Internacional. 

Jurema vai além de apontar o dedo para o executivo estadual e diz que o Ministério Público também é responsável pela continuidade de mortes em decorrência de intervenção policial. “O Ministério Público é outra instituição que também tem permitido [mortes por agentes policiais] ao longo do tempo. O Ministério Público tem o dever escrito na Constituição de ser  fiscal, ele representa a sociedade na fiscalização da atividade policial.”

Ela destaca que o MP é o responsável pelo controle externo da atividade policial, “ou seja, de garantir que tudo está sendo feito como deve e que a polícia está cumprindo o dever de proteger o cidadão, a vida, a propriedade e a integridade”, completa.

“Não tinham feito isso, né? Por isso que a gente chega nesse lugar”, conclui Jurema. O Procurador Geral de Justiça do Ceará também se manifestou pelas redes sociais. Manuel Pinheiro definiu a chacina como a “madrugada mais sombria da história do estado”. Na mensagem divulgada na noite de segunda (19), ele defendeu a atuação do MP no caso. 

“O Ministério Público formou um grupo de promotores com grande capacidade técnica, com grande experiência para ajudar o promotor natural do caso. Os promotores estão muito bem preparados para atuar nas sessões do Tribunal do Júri”, disse Pinheiro. 

Mara Carneiro, coordenadora geral do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca-CE), lembra da campanha “O Ministério tem que ser Pùblico”, promovida no ano passado em parceria entre a  organização, a Anistia Internacional e as Mães do Curió. 

“Nós tivemos várias reuniões com representantes do Ministério Público, mas mais recentemente no bojo dessa campanha junto à Anistia, nós tivemos algumas reuniões cobrando, inclusive esse trabalho exemplar do Ministério Público nesse acompanhamento, nesse processo agora de reta final de preparação para o júri”, comenta Mara. 

Ela fala que o Brasil tem poucas experiências de responsabilização de policiais que se envolvem em crimes como o do Curió e vê que o júri iniciado nesta terça (20) passará uma mensagem importante. 

“A chacina do Curió em julgamento é uma possibilidade real de responsabilização e pode, na verdade, abrir um novo tempo no Brasil em casos como esse, sendo de fato um caso exemplar onde há responsabilização da polícia e passando essa mensagem de que o país não tolera mais crime como esse”, diz Mara. 

Mais mil pessoas mortas desde a chacina 

Dados da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará mostram que, desde 2015 (ano da chacina) até 2022, 1.135 pessoas foram mortas em decorrência de ações policiais no estado. No primeiro semestre deste ano, 62 óbitos já foram notificados, número que preocupa. 

“A gente vem chamando atenção já nos últimos anos de temos até uma nota pública, temos o relatório sobre mortes por intervenção policial e a ausência mesmo de responsabilização desses crimes”, diz Thiago de Holanda, do Comitê de Prevenção e Combate à Violência do Ceará. 

Holanda diz que o número de mortes registrado no primeiro semestre deste ano já supera o número registrado no ano passado. O pesquisador cita o estudo Trajetórias Interrompidas, conduzido pelo Comitê em 2016, que ouviu famílias de adolescentes mortos em situações de violência no estado. 

“A percepção geral dos entrevistados nesse estudo é que a polícia não trazia segurança, mas representava ameaça. Uma fala principalmente da juventude moradora da periferia, da juventude negra é de que uma abordagem policial é violenta”, conclui. 

O pesquisador também vê com esperança e como um marco o julgamento dos PMs envolvidos na chacina. 

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“Uma resposta para esse crime pode realmente trazer para as famílias, para as mães que estão aí há oito anos lutando por justiça, um amparo maior, uma resposta maior. Claro que essa dor nunca vai cessar, mas essa reparação é fundamental para que a gente consiga reduzir outros crimes do tipo”, comenta o pesquisador. 

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