Acre e Rondônia são os únicos estados que implementaram política, segundo perita do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura; Ministério dos Direitos Humanos busca combater violações a partir de projeto para qualificar informações sobre sistema prisional
Acre e Rondônia são os únicos dos sete estados da região Norte brasileira que têm um órgão a nível estadual do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura em funcionamento, cujos peritos foram empossados no dia 7 deste mês. O dado, que faz parte de um mapeamento ainda a ser lançado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), foi antecipado pela perita Camila Sabino nesta quarta-feira (21/6), durante o 17º Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que acontece em Belém, no Pará.
“O cenário que nós vemos sobre a criação de comitês é devastador”, declarou Sabino. “O arcabouço normativo é, na maioria, muito ruim, ou seja, à revelia da recomendação número cinco”, disse em referência à Lei 12.847/2013, que prevê, no parágrafo quinto do artigo 8º, a criação de mecanismos em âmbito estadual. Os mecanismos preveem nomeação de peritos para fiscalizar unidades de privação de liberdade. Já nos comitês integram diversas entidades, tanto da sociedade civil quanto operadores do sistema de justiça e da segurança pública, que acompanham, avaliam e propõem ações de combate à tortura.
A fala se deu durante a mesa Políticas penais e violações sistemáticas de direitos humanos no sistema prisional brasileiro. Camila Sabino é uma dos nove peritos que atuam no MNPCT, órgão que é subordinado Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Com foco em atuações no Pará, Sergipe e em São Paulo, a perita também aponta que as legislações criadas recentemente em alguns estados, como no caso do Pará, “não respeitam a paridade de presença de órgãos da sociedade civil” e privilegiam a inclusão de forças policiais nos comitês, o que dificulta a participação da sociedade civil.
Ela alerta, ainda, sobre a criação de mecanismos estaduais cujos peritos não recebem remuneração. “Esse tipo de legislação implode o sistema por dentro porque efetivamente não vai fazer funcionar”, critica. Durante o governo Jair Bolsonaro, em 2019, o MNPCT teve a previsão de remuneração retirada via decreto, o que foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Além disso, a secretária-executiva do MDHC, Rita Cristina de Oliveira, sinalizou a responsabilidade do Estado em deixar de promover políticas públicas voltadas à população prisional. “Desde 2002, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já adotou sete medidas provisórias em razão da alta letalidade, ocorrências de tortura, tratamento cruel, desumano e degradante contra as pessoas que vivenciam a privação de liberdade”, declarou em relação ao descumprimento de medidas de casos em prisões brasileiras que foram denunciados e julgados na esfera internacional.
“Desde o Carandiru, as prisões brasileiras pouco mudaram”, criticou, em referência ao massacre de 1992 quando 111 presos foram assassinados em uma incursão da Polícia Militar no Complexo do Carandiru, em São Paulo. Oliveira aponta também uma estimativa de R$ 18 bilhões de gastos anuais com a população prisional no Brasil que não se reflete com a realidade desse público, que vive em unidades superlotadas com falta de alimentação adequada, atendimento médico e condições mínimas de higiene. “Esse diagnóstico nos preocupa bastante porque mostra que não temos uma padronização de serviços no sistema prisional”, afirma, ao indicar uma discrepância de 340% entre Pernambuco, que menos gasta mensalmente per capita por preso, e Tocantins, que mais gasta.
A secretária declarou que uma das prioridades da pasta, a pedido do presidente Lula (PT), é o combate de violações sistemáticas no sistema penitenciário. Por isso, ela idealizou o Projeto Mandela, que visa qualificar o monitoramento do sistema prisional a fim de incentivar políticas públicas com base em evidências: “nós temos um apagão de dados sobre os serviços de assistência e de saúde oferecidos dentro das prisões”.
O projeto, que segundo ela ainda deve ser implementado neste ano, é inspirado no manual de Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos, também conhecido como Regras de Nelson Mandela, uma vez que o país é signatário de tratados internacionais de direitos humanos e de combate à tortura.
O objetivo inicial é criar um grupo de trabalho juntamente com integrantes do Ministério da Justiça e da Segurança Pública para mapear e padronizar a coleta de dados do sistema prisional, com foco em pessoas com deficiência, indígenas, LGBT+, idosas, além de quesitos voltados à etnia, perfil socioeconômico, situação de gestantes e filhos menores de 12 anos e/ou com deficiência, além de serviços prestados aos custodiados e a mortalidade por causa do, segundo a secretária, “elevado percentual de mortes por ‘causas desconhecidas'”.
A inciativa também pretende aprimorar os canais de denúncia e de acolhimento e realizar visitas e inspeções em unidades prisionais. “Trata-se, portanto, da fiscalização da legislação vigente sobre a execução da pena visando maior controle do Estado sobre o sistema com participação social e desenvolvendo uma cultura de responsabilização e realização dos direitos humanos”, declarou Rita Cristina de Oliveira.
Com isso, a coordenadora do Programa Violência Institucional e Segurança Pública da organização Justiça Global, Monique Cruz, ressaltou a importância da atuação dos órgãos responsáveis em garantir os direitos das pessoas presas. “Também cabem aos promotores e juizes que se omitem e promovem essas violações serem responsabilizados”, afirmou.
*A Ponte viajou a Belém a convite do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Correções
A primeira versão da matéria dizia que apenas o Acre tinha órgão de combate à tortura em funcionamento. O texto foi alterado após a perita Camila Sabino fazer a correção já que a informação não havia sido mencionada na palestra. Informação corrigida às 18h do dia 21/6/2022.