Familiares fizeram manifestação em frente ao Fórum da Barra Funda antes da sessão; dez testemunhas foram ouvidas nesta terça-feira (25/7)
“O que eu posso esperar? Faz três anos, sete meses e 25 dias [da morte], para só hoje haver a primeira audiência de instrução. Sabe o que é isso? É muito tempo. Meu filho tinha 16 anos e eu nunca vi ele usando barbeador. Meu filho não teve direito a votar, nem título de eleitor ele teve direito de tirar. Ele não teve tempo para nada”, lamenta Adriana Regina dos Santos, 51 anos, mãe de Dennys Guilherme dos Santos Franco, uma das nove vítimas do massacre de Paraisópolis, ocorrido em 2019. A primeira audiência do caso ocorreu nesta terça-feira (25/7) no Fórum da Barra Funda, no centro de São Paulo. Familiares, amigos e representantes de movimentos sociais fizeram uma manifestação em frente ao local antes da sessão.
As mãos de Adriana tremiam ao falar sobre o filho Dennys Guilherme. A mulher franzina de olhar carregado de lágrimas foi abrigada por abraços logo que chegou ao protesto, que, naquela altura, por volta das 11h, já reunia dezenas de pessoas. Marcada para esse horário, a manifestação já contava com participantes desde às 9h30min.
“Ceifaram a vida dele. Desde o dia 1º de dezembro de 2019 a gente está preso. Eu estou presa nesse sentimento de angústia que não tem mais fim. Os policiais estão soltos, livres, ganhando os seus salários e fazendo uso da farda. O que eu posso esperar? Espero que eles sejam condenados, só que ainda sim eu não vou sentir a justiça acontecer, porque ela nunca vai acontecer, meu filho não volta mais. Isso é uma coisa que eu tenho que carregar até o último dia da minha vida”, contou Adriana ao ser questionada sobre a expectativa pela primeira audiência, que pode levar a júri popular os policiais militares envolvidos nas mortes no baile da DZ7.
O processo está em etapa de instrução, o que significa que neste momento são ouvidas testemunhas, sobreviventes e os acusados. Além disso, são produzidas provas para que o juiz Ricardo Augusto Ramos decida se os 12 policiais denunciados pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP) por homicídio qualificado (com dolo eventual, ou seja, teriam assumido o risco de matar) vão ou não a júri popular. A Constituição Federal prevê que crimes contra a vida sejam julgados desta maneira.
Ao todo, 52 testemunhas foram arroladas (somadas as de defesa, acusação e as que são comuns às partes). Nesta terça-feira (25), a audiência começou por volta das 14h com as oitivas. Na sala de audiência puderam permanecer apenas um familiar de cada vítima. A Ouvidoria das Polícias e o Conselho Estadual de Direitos da Pessoa Humana (Condepe) também acompanharam a sessão com um representante cada.
As dez testemunhas ouvidas nesta terça (25) são pessoas que estavam no baile, moradores e médicos que atenderam as vítimas no dia dos fatos. Nove delas foram arroladas pela acusação e um era comum aos dois lados. A audiência acabou por volta das 18h30. A continuação da audiência foi agendada para o dia 18 de dezembro deste ano, a partir das 13h30.
Segundo Dimitri Sales, presidente do Condepe e que esteve presente na audiência, a fala das testemunhas confirmaram que agiu com dolo eventual.
“Os depoimentos foram todos nessa direção. Há depoimentos de duas médicas que chamaram atenção porque elas confirmaram que as vítimas chegaram no hospital já sem vida [ao hospital] o que nos leva a reafirmar algo que a gente já havia dito: a polícia alterou a cena do crime.”, comenta.
Os policiais denunciados pelas nove mortes são Aline Ferreira Inácio, João Carlos Messias Miron, Luís Henrique dos Santos Quero, Rodrigo Almeida Silva Lima, Marcelo Viana de Andrade, Marcos Vinícius Silva Costa, Leandro Nonato, Paulo Roberto do Nascimento Severo, Gabriel Luís de Oliveira, Anderson da Silva Guilherme, Matheus Augusto Teixeira e José Joaquim Sampaio. Já o PM José Roberto Pereira Pardim é réu pelo crime de explosão. Ele teria lançado bombas na Rua Manoel Antonio Pinto, onde pessoas estavam reunidas.
Marcos Paulo Oliveira dos Santos, de 16 anos; Bruno Gabriel dos Santos, 22; Eduardo Silva, 21; Denys Henrique Quirino da Silva, 16; Mateus dos Santos Costa, 23; Dennys Guilherme dos Santos Franco, 16; Gustavo Cruz Xavier, 14; Gabriel Rogério de Moraes, 20; e Luara Victoria de Oliveira, 18, morreram naquele 1º de dezembro.
Além deles, outras 12 pessoas ficaram feridas quando foram jogadas bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha foram disparadas pelos policiais militares.
As famílias lutam para que os 31 policiais envolvidos no massacre sejam condenados, reivindicando a reversão da absolvição de 18 agentes. Eles também cobram que a Secretaria de Segurança Pública (SSP) conclua as investigações administrativas contra o grupo.
Fim da Polícia Militar
Mãe de Denys Henrique, a pesquisadora Maria Cristina Quirino subiu na pequena mureta com cuidado para estender uma faixa na grade que cerca o Fórum Criminal da Barra da Funda. “Massacre de Paraisópolis: hora da justiça”, dizia o texto. Mal terminou de ajeitar o pano e já foi logo chamando familiares e mães das outras vítimas para que uma foto fosse tirada registrando esse dia histórico.
Cristina não queria mais ser perguntada sobre a expectativa porque a resposta está tatuada na pele. “Não foi resistência, não foi pisoteamento, não foi socorro”, comunica o texto que a pesquisadora carrega na mão direita e que responde em parte o questionamento: ela quer justiça, mas também quer o fim do braço do Estado que mata.
“A gente precisa que haja punição e que sirva de exemplo para os outros que estão aí. Nós gostaríamos muito que acabasse com a polícia. Eu acho que a palavra de ordem é o fim da Polícia Militar. Nós entendemos que ainda é necessário que eles façam os trabalhos deles, mas exigimos que haja punição para que eles não matem mais inocentes”, diz a pesquisadora.
O pensamento é o mesmo do filho Danylo Amilcar, 22 anos. Denys era apenas dois anos mais novo que ele, o que permitiria, comentou o estudante durante uma fala, que talvez os dois estivessem juntos na universidade se o irmão estivesse vivo.
“Nós temos muito que avançar para que massacres como esse não aconteçam. As polícias militares precisam ter um fim. A polícia trabalha com uma lógica de morte, de perseguição às pessoas, sobretudo aquelas que estão na periferia, os negros. Para esse massacre não se repetir, a polícia precisa ser erradicada. Nós precisamos de uma política de segurança de verdade para as pessoas, mas que a cultura da periferia seja valorizada”, fala Danylo.
Ivorina Aparecida, 55 anos, mãe de Eduardo Silva, morto aos 21 anos, também esteve no Fórum para a manifestação que antecedeu a audiência. Vestindo uma blusa com os rostos das vítimas, ela ouviu atentamente as falas, prestou solidariedade e gritou junto em coro “justiça” com os demais presentes toda vez que alguém iniciava o clamor.
“Tem quase quatro anos que nós estamos nessa luta e a gente precisa que tenha justiça para ver se ameniza um pouco essa dor. Uma mãe nunca esquece um filho, mas se souber que eles vão pagar, talvez deixe um pouco amenizada a dor”, fala Ivonira.
Na análise de Dimitri Sales, do Condepe, os policiais descumpriram protocolos e assumiram riscos que culminaram nas mortes. “A nossa expectativa é que ao final desse processo eles sejam levados a júri popular para serem julgados por homicídio com dolo eventual, por terem assumido os riscos pelas mortes. A gente insiste em dizer que não foi uma mera operação da polícia, foi uma ação previamente orquestrada, arquitetada. A polícia agiu para coibir o baile funk em Paraisópolis sabendo dos riscos e portanto assumiu esses riscos”, disse Salles.
A manifestação foi encerrada com a leitura de um manifesto elaborado pelos familiares e lido por Dimitri. O texto narra os momentos que antecederam as mortes e reitera o pedido por responsabilização dos policiais militares. O último ato antes das famílias se encaminharem ao Fórum foi marcado pela simbologia da fumaça que saiu de sinalizadores. Parte deles trazia fumaça branca, em analogia ao ar que os nove mortos não tiveram naquele 1º de dezembro. Já a preta, representava o luto.
Versão da PM foi contestada
Todos os 12 policiais militares denunciados pelas mortes e o agente que responde por explosão são do 16º Batalhão Metropolitano (BPM/M). Todos respondem ao processo em liberdade
Em 2021, o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (Caaf/Unifesp) publicou um estudo sobre o inquérito policial a pedido da Defensoria Pública. O resultado inclui o projeto Paraisópolis: 3 atos, 9 vidas, série de vídeos que desconstrói a versão apresentada pelos policiais de que houve resistência, pisoteamento e socorro. Foram reunidos áudios da comunicação entre os PMs, laudos e a reprodução simulada da dinâmica dos fatos feita a partir dos relatos dos envolvidos.
Entre as conclusões do estudo, está o fato de que os nove jovens chegaram mortos ao hospital e que o resgate demorou 34 minutos. Outros pontos demonstrados pelo Caaf é que os policiais mentiram estarem cercados (o que teria impedido o atendimento de emergência) e que as vítimas pediam socorro, já que naquele ponto já estavam sem vida.
O Caaf apontou ainda que os policiais militares encurralaram as pessoas, agredindo e lançando spray de pimenta e bomba de gás. Os laudos dos corpos mostraram que oito das nove vítimas morreram por asfixia por sufocação indireta, justamente por essa compressão entre as pessoas, que impediu que elas pudessem respirar, já que não tinham para onde correr.
Apenas o laudo de Mateus dos Santos Costa indicou morte por traumatismo raquimedular, que poderia ter sido causado por compressão ou uma pancada, o que afasta de todas as mortes a versão de pisoteamento. Disponíveis no YouTube, os nove vídeos também contam as histórias das vítimas.
Em 2020, a Corregedoria da Polícia Militar entendeu que não houve irregularidades na ação e que os policiais envolvidos agiram em legítima defesa ao dispersar com bombas o baile funk.
Outro lado
A Ponte não conseguiu contato com a defesa dos policiais militares denunciados pelo massacre de Paraisópolis.