Revelada em reportagem da Ponte, história de Jacinta será contada em peça de teatro em SP

Mulher negra teve o corpo embalsamado e violado por 30 anos dentro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP); Cia do Pássaro estreia espetáculo em setembro

Espetáculo será apresentado entre setembro e outubro em São Paulo e tem entrada gratuitos | Foto: Bob Souza

Em abril de 2021 o repórter Daniel Salomão Roque contou na Ponte a história de Jacinta Maria de Santana, mulher negra que teve o corpo embalsamado e violado por 30 anos na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). A reportagem inspirou a Cia do Pássaro — Voo e Teatro a criar um espetáculo JACINTA – Você só morre quando dizem seu nome pela última vez sobre Jacinta com estreia prevista para 14 de setembro. 

A identidade de Jacinta foi tema pesquisa por Suzane Jardim, historiadora e mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do ABC. Ao analisar jornais publicados por entidades negras no século XX, Suzane deparou-se com um texto de 1929 que noticiava o enterro de uma múmia. 

Dali partiu uma busca pela identidade daquele corpo paraa saber quem era a pessoa embalsamada. Suzane chegou ao nome e as informações sobre a morte ocorrida em 1900 no bairro da Luz, em São Paulo. Detalhes sobre a vida de Jacinta não foram recuperados, mas a pesquisadora revelou o responsável pelo corpo ter ficado armazenado na USP por três décadas. 

Amâncio de Carvalho (1850-1928), que foi professor de medicina legal da FDUSP e presidente emérito da Sociedade Brasileira de Eugenia, recebeu o corpo de Jacinta no dia em que ela morreu. Após fazer o procedimento que evitou a decomposição, Carvalho o manteve em um armário que ficava na sala onde ele lecionava. 

A pesquisa de Suzane revelou ainda que o corpo de Jacinta foi usado em trotes estudantis, onde os calouros teriam que beijá-la na boca, por exemplo. Ela também foi jogada por uma janela em outra ação de estudantes, conforme noticiou o jornal Correio Paulistano. 

O corpo de Jacinta só foi enterrado em 1929, após a morte de Amâncio no ano anterior. A viúva do professor, Emília da Silva Carvalho, solicitou que os restos mortais fossem entregues pela USP por pertencer ao acervo pessoal do pesquisador e para a feitura de um “enterro cristão”. 

O corpo foi enterrado em um jazigo perpétuo no cemitério São Paulo, mas com o nome de Raimunda, um dos apelidos dado ao corpo pelos estudantes. A lápide, no entanto, não é mais localizada na unidade, possivelmente em função de uma remoção feita pela prefeitura como dar espaço a mausoléus familiares.

A repercussão do caso após a reportagem da Ponte levou a troca do nome de uma sala dentro da USP que homenageava Amâncio. A mudança ocorreu em março deste ano por decisão da congregação da entidade e após forte mobilização de estudantes da universidade.

Em maio, uma intervenção artística no campus São Francisco também lembrou a história de Jacinta. Promovido por membros da Coletiva Preta Performance, o ato JACINTA atraiu olhares de alunos, professores e quem mais passou pelo pátio da universidade. Seis membros do coletivo repetiram em coro “Você me vê?”, enquanto parte do grupo tinha corpo coberto por fita em alusão ao embalsamento de Jacinto. 

Cartazes também foram colados em vários espaços da universidade questionando se os presentes conheciam Jacinta. Os papéis tinham um QR Code que levava a reportagem da Ponte.

Na Câmara de Vereadores de São Paulo, o projeto de lei 01-161/2023 da vereadora Luana Alves (Psol) propõe a alteração no nome da rua Amâncio de Carvalho na Vila Marianaum dos cinco bairros mais brancos de São Paulo, para Jacinta Maria de Santana.

O PL apresentado em março, está parado na Comissão de Constituição, Justiça e Legislação Participativa (CCJ) da Câmara desde abril. 

Peça sobre Jacinta

No teatro, a história de Jacinta será contada em peça escrita e dirigida pelo dramaturgo Dawton Abranches. A peça compõe a Trilogia do Resgate, projeto da Cia do Pássaro que visa “tirar do apagamento o nome de figuras emblemáticas pretas que foram apagadas”. 

O projeto teve início em 2016 com o espetáculo BAQUAQUADocumento Dramático Extraordinário, sobre Mahommah Baquaqua, um africano que foi escravizado e passou pelo Brasil, encenado pelo menos uma vez por ano pela companhia de lá para cá. A peça sobre Jacinta será o segundo ato da Trilogia. 

Quando levaram a apresentação sobre Baquaqua até o Teatro da USP, os membros da Cia souberam da história de Jacinta. “Nós ficamos sabendo da história da Jacinta e fomos atrás. E aí, soubemos da reportagem da Ponte”, comenta Abranches. 

“Nós construímos uma dramaturgia inspirada tanto na história da Jacinta quanto na reportagem da Ponte, porque como nós mesmo vemos, pouco se sabe sobre a história dela. Ela foi uma mulher preta em situação de rua, mas nós não temos uma história pregressa dela. A dramaturgia foi construída no sentido de falar um pouco também sobre o universo que a cercava. Eu costumo dizer que é uma dramaturgia sobretudo sobre a branquitude e o que foi feito com ela”, diz o diretor. 

Montagem e pesquisa para o espetáculo duraram cerca de um ano. A peça será encenada pelos artistas Gislaine Nascimento e Alessandro Marba, Jacinta e Tata, respectivamente. A última figura é inspirada no Exu Tata Caveira, uma espécie de guardião que conduz as almas dos falecidos para o plano espiritual.

O universo que será levado aos palcos usa a metalinguagem para simular um encontro entre a atriz e Jacinta. Espaços como a Faculdade de Direito e a sala onde o corpo embalsamado ficou na instituição serão representados na peça. 

Artistas Gislaine Nascimento e Alessandro Marba compõem elenco do espetáculo Jacinta | Foto: Bob Souza

“A Jacinta fica durante todo o espetáculo fazendo perguntas para o público: o que se sabe sobre a Jacinta? Nada ou quase nada. E, no final, ela pergunta o que se sabe sobre a Jacinta? Muita coisa que era preciso saber. O que se sabe sobre a Jacinta é o que ela revela sobre nós”, diz Abranches. 

A peça será apresentada entre 14 de setembro a 8 de outubro no Espaço Cia do Pássaro — sempre às quintas, sextas e sábados às 20h e domingos às 19h. Nas sextas, sábados e domingos haverá acessibilidade em libras. 

JACINTA – Você só morre quando dizem seu nome pela última vez é produzido com o Prêmio Zé Renato de fomento ao teatro para a cidade de São Paulo. Haverá também apresentações em Centros Educacionais Unificados (CEUs) em quatro regiões de São Paulo (zonas norte, sul, leste e oeste). 

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Além da apresentação teatral, serão realizadas oficinas e conversas públicas com nomes como Suzane Jardim e Letícia Chagas, a primeira mulher negra a presidir o centro acadêmico da FDUSP. Em novembro o espetáculo será apresentado na Faculdade de Medicina da USP. 

O espetáculo contará com trilha da musicista Camila Silva, direção musical de Alexandre Guilherme; direção de movimento de Verônica Santos; iluminação por Alice Nascimento; figurinos de Pedro de Alcântara e Erika Bordin; cenário por Pedro de Alcântara e Cia do Pássaro; produção de Fernando Gimenes e Plataforma — Estúdio de Produção Cultural e assessoria de imprensa feita por Canal Aberto. 

Serviço

O quê: Espetáculo JACINTA – Você só morre quando dizem seu nome pela última vez
Quando: 14 de setembro a 8 de outubro (quintas, sextas e sábados às 20h e domingos às 19h)
Onde: Espaço Cia do Pássaro, R. Álvaro de Carvalho, 177 – Anhangabaú
Quanto: Gratuito
Classificação: 14 anos 
Duração: 80 minutos 
Mais informações: (11) 94151-3055

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