Série documental produzida pelo coletivo Kalifa LXXI mostra como os circuitos de oralidades improvisadas contribuem para a ascensão de novos nomes no cenário musical e desenvolvem o letramento social
A série documental “Todos Os Olhos Em Mim”, produzida por Kalifa LXXI junto com apoio do Instuto FALA!, lança luz sobre a influência profunda dos circuitos de rimas improvisadas e da cultura hip hop na vida dos jovens negros e periféricos de Salvador, a cidade com a maior concentração negra fora da África.
A série revela a realidade dessa juventude, que, embora seja uma força cultural poderosa, ainda enfrenta graves desafios relacionados ao racismo e à violência estatal que gera apagamento das suas subjetividades. As ações do circuito atuam, restaurando o protagonismo e autoestima desses atores, assim como abrindo um novo leque de possibilidades, aquecendo o sonho de novos futuros possíveis na juventude que infelizmente lidera o ranking de maiores vítimas de genocidio do país.
Do surgimento de nomes como Baco Exú do Blues à influência direta da DJ Nai Kiese na cena da discotecagem soteropolitana, a série documental visa mostrar como os circuitos de oralidades improvisadas contribuem para a ascensão de novos nomes no cenário musical, assim como desenvolve o letramento social construindo microrrevoluções na estrutura da sociedade, estimulando a reverberação da criatividade e diversidade de corpos e vozes às margens capazes de criar novas rotas de emancipação e protagonismo.
Além dos recortes raciais, as falas caminham para um olhar sobre a pluralidade dos corpos dos atores desse movimento e como ações que visam a equidade, respeito, diversidade tem remodelado o cenário da cultura hip hop baiana, temas como sexualidade, identidade de gênero, profissionalização, acessibilidade, cultura de país, são tratados com frequência entre os episódios.
O Nascimento do Circuito — Rimas Como Alforria
No primeiro episódio, intitulado “O Nascimento do Circuito – Rimas Como Alforria”, os espectadores são conduzidos ao universo do Circuito de Oralidade Urbana – o 3º Round – o catalisador desse movimento na Bahia. O episódio explora as origens do movimento e seu papel vital na vida dos jovens negros e periféricos em uma cidade marcada pelo racismo estrutural. Os espectadores testemunham histórias inspiradoras de superação, criatividade e transformação, onde a palavra se torna o instrumento de emancipação.
“O 3º Round antes de tudo é um novo movimento, um movimento contemporâneo de juventude negra periférica de Salvador, e esse movimento já tem conseguido ecoar em outras cidades da Bahia, fora da Bahia… Mas também ter essa responsabilidade social então quando a gente fala, protagonismo negro e periferico, tá muito atrelado a onde a pessoa negra tá impressa ali dentro de toda essa historia, quando a gente pensa o 3º Round, a gente pensa também em fazer um diáspora reversa”, afirma Cosca, fundador do 3º Round.
Cosas também traz as influências de movimentos negros estruturantes da cultura de Salvador, como Olodum, Ilê Ayê, Muzenza, para a construção da concepção do Circuito de Rima e como o mesmo atua em um formato de diáspora reversa, captando jovens às margens da cidade e os trazendo ao centro para uma celebração coletiva da sua negritude e existência.
“Os elementos-chave que compõem o Circuito de Rima em Salvador, não tem pra onde a gente correr, estão muito atrelados à questão da negritude, ela é muito pulsante em Salvador”, afirma Cosca. O episódio traz depoimentos de artistas como Ravi Lobo, Senpai, Elton Obcecado, DJ Nai Kiese, MC Bl4ck, falando sobre o circuito como espaço de construção de suas carreiras e o seu poder de descentralização de acesso à cultura e a produção.
Protagonismo Negro e Periférico
No segundo episódio, a série adentra o mundo do protagonismo negro e periférico, destacando os desafios enfrentados devido ao embranquecimento do hip hop e à apropriação cultural. Os espectadores acompanham jovens artistas em sua luta para preservar a autenticidade e a identidade do movimento. Este episódio revela o poder transformador do protagonismo negro e periférico na resistência às adversidades.
“As batalhas e as rodas culturais dentro das periferias quebram muito isso, o ciclo de violência, porque a galera sabe que as pessoas que estão indo mesmo de outro bairro vão prestigiar a cultura, tá indo para ser uma voz ativa da sua comunidade e através dessa voz, do protagonismo que as batalhas geram, gera identificação também, trazendo a reflexão que sofremos as mesmas opressões, então atrás da arte, por meio de puxar esse pensamento, vamos quebrando essa estrutura da violência” – diz Shaft MC.
Nesse episódio, a temática da tendência ao embranquecimento da cultura hip hop e apagamento dos seus fazedores negros ganha recortes de interccionalidade, como raça, genero e classe social imbuídos nesse fenômeno. São abordados temas como indústria da música, apagamento histórico e retomada do protagonismo:
“O embranquecimento do hip hop está muito ligado à ascensão do hip hop no mercado da música”, afirma Pyedra Barbosa, produtora do 3º Round. “Como todas as coisas que a gente vai observando que vão ganhando uma notoriedade monetária, elas vão sendo agregadas à burguesia, e como não temos um espaço de financiamento, de contemplação de pessoas pretas para continuar investindo nos seus sonhos, essa cultura vai se embranquecendo. Eu acho que a grande resistência ao embranquecimento na cultura hip hop está nas batalhas de rima, é o lugar que dá espaço para que jovens negros consigam viver a sua arte. Esses movimentos de base, que são nossos pequenos mocambos para criar esse grande quilombo que é a cultura hip hop vão conseguindo movimentar o protagonismo desses jovens negros, para que a gente não perca a essência do hip hop, que é uma cultura negra de luta.”
“O 3º Round combate o embranquecimento trazendo em todas as suas edições o protagonismo ao jovem negro”, afirma Evê. “Ano passado eu participei de uma grande temporada do 3º Round e toda edição eu via que era homenageado uma pessoa preta – trazia para nós essa parada de enxergar em nós mesmos essa representatividade: ‘aquele cara ali foi foda, um cara preto, eu quero ser igual a ele’”.
“Essa falta de representatividade pelo embranquecimento da nossa cultura, da nossa arte preta, ela é afetada negativamente, porque a gente precisa se ver, a gente não se vê, a gente não vê pessoas pretas sendo reconhecidas pela arte que elas fazem e que historicamente foram manifestações criadas por pessoas pretas”, considera DJ Nai Kiese.
Legado e diversidade — pluralidade como unidade
No terceiro episódio, a série explora o legado deixado pelo 3º Round, um movimento afrocultural que promove a diversidade de corpos e rostos no cenário das rimas improvisadas na Bahia. O episódio destaca como esse movimento deixou sua marca na história do hip hop e na cultura local. Os espectadores conhecerão os protagonistas dessa trajetória e a transformação que eles trouxeram consigo.
Neste episódio são narradas as pequenas revoluções e marcos dentro do circuito, tendo como protagonistas as mulheres, pessoas PcD’s e comunidade LGTBQIA+, a mudança de comportamento baseada em uma construção de um manual de condutas, eliminação para rimas machistas, sexistas e discursos de ódio dentro do circuito e como essa ações causam letramento e conscientização entre a juventude negra e participantes do circuito em geral.
“O 3º Round cria isso, esse rolê de acolhimento, nenhum MC que passou pelo 3º Round, que você encontra ele desde a entrada do evento e você não aprende alguma coisa’, Larício Gonzaga.
“A questão da diversidade do hip hop é uma questão tão importante a ser trabalhada”, diz Pyedra Barbosa, “porque o gueto é matriarcal, a periferia é principalmente gerida por mulheres e essa cultura, que é uma contracultura periférica. Precisa espelhar o gueto de alguma forma e como essas mulheres que são a base do movimento tem seu protagonismo. Nesse momento que começamos a trabalhar política de conscientização com os homens que já estavam ali no fronte do hip hop, colocando algumas regras nas batalhas, não pode ser machista, sexista, homofóbico, isso vai agregando mais pessoas, vamos tendo um senso de comunidade maior”.
Sementes e frutos
No último episódio, “Sementes e Frutos”, a série mergulha nas raízes profundas da cultura hip hop em Salvador e mostra como essas sementes cresceram e floresceram nas batalhas de MCs. Os espectadores descobrirão como essas batalhas se tornaram uma estratégia poderosa para a visibilidade dos artistas periféricos e como o 3º Round moldou um DNA de superação e abriu caminhos para futuras gerações. Este episódio encerra a série com uma reflexão sobre o legado deixado para as gerações futuras.
“Todos Os Olhos Em Mim” é uma série que não apenas narra a história do hip hop em Salvador, mas também celebra a resiliência, a criatividade e o poder de transformação dessa comunidade. Não perca a oportunidade de acompanhar essa jornada única que nos leva aos bastidores do movimento hip hop na capital baiana.
Esta reportagem recebeu o apoio do edital de bolsas de reportagem para coletivos de Salvador e região metropolitana do Instituto Fala.