Guilherme Pereira diz que saiu para comprar maconha, mas acabou detido ’em flagrante’ quando policiais baixaram no local; análise em celular e carro que estavam com o artista não encontraram nada ilícito. ‘Meu filho fuma maconha, como muitos jovens, mas a visão em relação ao jovem periférico e negro é sempre de condenação’, diz mãe
“Eu estou presa também”. A orientadora social Luciana Santana, 46 anos, resume assim como tem sido os dias após a prisão do filho Guilherme Matheus de Santana Pereira, 28, há dois meses, por tráfico de drogas. Para seus pais, o artista estava “na hora errada, no lugar errado” já que uma análise no celular e uma perícia no carro que estava com Guilherme não encontraram nada ilegal e o único indício apresentado pela polícia foi o fato de o artista ter sido detido em um ponto de venda de drogas localizado na rua onde ele mora, em Cidade Tiradentes, na zona leste da cidade de São Paulo.
Guilherme foi preso “em flagrante” em 3 de agosto, junto com outros seis homens. Entre eles, estava outro músico, o MC Dedê, que conseguiu na Justiça a concessão de liberdade provisória após análise detalhada no celular feita pela polícia, o que não ocorreu com Guilherme. A família pede que os dois tenham o mesmo tratamento judicial.
No dia da prisão, policiais civis do Cerco (Corpo Especial de Repressão ao Crime Organizado), da 8ª Delegacia Seccional (São Mateus), foram até Cidade Tiradentes para cumprir três mandados de busca e apreensão por tráfico de drogas em dois condomínios.
A operação tinha como base uma investigação que tramita na 1ª Vara de Crimes Tributários, Organização Criminosa e Lavagem de Bens e Valores da Capital, que investiga uma organização criminosa voltada para o tráfico de drogas que atuaria em um dos condomínios.
Divididos em quatro equipes, os policiais entraram em um dos condomínios pela portaria e pelos fundos, no que disseram terem identificado como rota de fuga. Eles contam que viram um grupo de homens na parte externa do condomínio que, ao notarem a presença da polícia, correram. Sem conseguir pegá-los, os policiais prosseguiram com a missão de revistar o local.
Ocorre que, ao entrarem no apartamento alvo da busca, os policiais encontraram sete homens, os mesmos que haviam corrido ao verem a aproximação anterior. O grupo teriam fingido que estava dormindo, para não obedecer à ordem de permitir a entrada dos policiais, que, em seguida, arrombaram a porta. Atrás de um sofá, foram encontrados, segundo a polícia, anotações que seriam de contabilidade da venda de drogas e porções de maconha, cocaína, crack, haxixe, lança-perfume, MD e LSD — nenhuma delas atribuídas ao DJ.
Guilherme, que mora na mesma rua do ponto de venda de drogas, contou em depoimento que estava no condomínio para comprar drogas para uso pessoal. Assustado com a aproximação dos policiais, ele correu para o apartamento.
“Meu filho fuma maconha, como muitos jovens tanto da periferia como de classe alta, mas a visão em relação ao jovem periférico e negro é sempre de condenação”, lamenta Luciana.
Com o músico, a polícia encontrou apenas um celular e um carro. Ambos foram apreendidos, mas o boletim de ocorrência registra que a vistoria feita no veículo não encontrou nada ilícito.
Ainda em depoimento, Guilherme contou conhecer o dono do apartamento, alvo do mandado de busca. A mãe diz que o filho morou no condomínio em 2018, com a esposa da época e o filho, que hoje tem seis anos, e que por isso conhecia os demais presos.
A senha do celular do jovem foi repassada de forma voluntária aos policiais. Uma análise no aparelho, assinada pelo investigador da polícia Fábio Lima de Souza e pelo agente policial Adilson Tadeu S. de Santis, não encontrou nenhuma ligação do jovem com o tráfico. O documento foi finalizado no dia 6 de agosto. “É usuário de entorpecentes, mas em seu aparelho não foi localizado conversas ou conteúdos de interesse da investigação, ou envolvimento com tráfico de drogas”, escreveram.
O carro que estava com Guilherme também passou por perícia. No laudo, o perito criminal Francisco Carlos Sena descreveu que não havia no veículo sinal de adulteração e nem de falta de partes ou de acessórios. O relatório do inquérito policial também destaca que nada ilícito foi encontrado.
Mesmo assim, o delegado Lawrence Luiz Fernandes Ribeiro, responsável pelo inquérito, escreveu que os celulares passariam por uma nova análise para verificar “dados que possam ter sido apagados”.
Na denúncia que apresentou contra o músico por tráfico de drogas, o promotor Rafael Morais de Oliveira, do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), afirma que o inquérito do qual partiu o mandado de busca e apreensão “encontra-se instruído com elementos de convicção mais sólidos para eventual oferecimento de denúncia em desfavor dos autores”. Ele destaca também que “a análise do conteúdo dos aparelhos celulares apreendidos em posse dos denunciados ainda está pendente de realização”.
A denúncia por tráfico foi aceita pela juíza Maria Domitila Prado Manssur, da 16ª Vara Criminal de São Paulo. Na mesma decisão e sem explicitar os motivos, Manssur negou que o caso de Guilherme se assemelhe ao de MC Dedé.
O funkeiro tem mais de 2 milhões de seguidores nas redes sociais. Na época da prisão, uma nota postada pelo escritório de advocacia Silveiro & Rufino, que representa o músico, negou envolvimento dele com o crime. “No que tange a operação desencadeada pela Polícia Civil de São Paulo, que tinha como alvo terceiros investigados, entretanto, e, infelizmente, ocasionou a prisão de JOESLEY CAIO FARIA – MC DEDÊ, cabe, esclarecer que o senhor Joesley nega veementemente as acusações que lhe são atribuídos, pois, se encontrava no lugar errado na hora errada”, afirma a nota.
Dedê foi preso com Guilherme e também teve o carro e celular apreendidos. A perícia e análise também não localizaram nada ilícito. Ocorre que, além da análise preliminar feita pelos peritos no dia 6 de agosto, consta no inquérito outra checagem no dia 9.
A análise não detalha o conteúdo das mensagens encontradas no celular de Dedê. “As conversas no aplicativo WhatsApp, em sua grande parte são relacionadas a sua atividade profissional como cantor de rap, conhecido no meio ‘Funk Ostentação’ como MC Dedê, relativas a shows, mensagens de seguidores e fãs” escrevem os investigadores Fábio Lima de Souza e Adilson Tadeu S. de Santis.
A pedido da Ponte, a advogada criminalista Débora Roque analisou o processo judicial. Ela avalia que a situação de Guilherme é parecida com a de MC Dedê. O fato de a perícia mais minuciosa ter sido feita no celular do músico ajudou na revogação da prisão, acredita Débora. “O Guilherme também disponibilizou a senha do celular, mas esse relatório não aparece em relação ao celular de propriedade dele”, afirma.
“Na mesma condição que estava o MC Dedé, está o meu filho. Por que um pôde sair e o outro não?”, questiona a mãe de Guilherme.
Trajetória artística
A ausência de Guilherme fez a mãe adoecer. “Eu não consigo me ver em casa sem meu filho. Eu emagreci muito com essa situação. No começo, enquanto ainda não tinha visto ele para saber se estava bem, eu não conseguia dormir, não me alimentava, só chorava”, conta.
A primeira visita ao filho ocorreu 40 dias após a prisão, enquanto o jovem ainda estava preso no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, na zona oeste da capital. Guilherme agora aguarda o julgamento no CDP de São Bernardo do Campo. Se for condenado, pode pegar até 15 anos de reclusão. Luciana conta que o filho tem problemas respiratórios, o que a deixa aflita sobre os cuidados que ele vem recebendo.
A mãe conta que ela e o ex-marido, Gildean Silva Panik, 50 anos, o MC Panikinho, pai de Guilherme, sempre inseriram o filho na luta dos movimentos sociais. Nos anos de 2011 e 2012, Guilherme participou ativamente das campanhas “Eu africanizo São Paulo” e “Eu pareço suspeito?”. O último propôs debate sobre o racismo institucional e como a violência racial torna negros e pobres suspeitos potenciais em abordagens policiais.
O DJ também atuou em projetos de arte educação como o Escola de Hip-Hop Itinerante, que promoveu aulas em escolas públicas de Guarulhos e em unidades do Sesc São Paulo. Contemplado com o edital do Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais, Guilherme criou o desenvolveu o projeto VIBE SOUND (CT 012), voltado à música e que tem vídeos das apresentações disponíveis no Youtube.
“Meu filho teve dois projetos sociais aprovados pela prefeitura de São Paulo. Isso tem um peso. Ele é um jovem de 28 anos que nunca foi envolvido com nada, tem uma história de vida, isso também não comprovada nada? Tem endereço fixo, é réu primário. São vários questionamentos que para mim não têm resposta”, critica Luciana.
MC ligado ao hip-hop há 30 anos e pesquisador cultural, Gildean Silva Panik, também destaca a atuação artística do filho. “Assim como MC Dede, meu filho também sempre esteve envolvido com a com essa dinâmica da arte, por conta dessa relação que eu tenho. Eu sou MC de hip-hop há praticamente 30 anos”, diz.
O MC diz reforça que o filho sempre participou das atividades no bairro em que mora desde os 8 anos. Conta que o jovem tocou em adegas é conhecido pelos moradores. Um abaixo-assinado foi feito pelo pai para mostrar o apoio que o jovem tem. Até a publicação do texto, mais de 900 pessoas já assinaram a petição que exige a liberdade do músico.
“A gente sabe que onde eles moraram, na Cidade Tiradentes, existem pontos de vendas de drogas. Isso é uma coisa muito comum nas quebradas. A relação que a polícia também tem com esses lugares todo mundo sabe como é”, fala Gildean.
O que diz o Estado
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, o Ministério Público do Estado de São Paulo e o Tribunal de Justiça solicitando entrevistas com os responsáveis pelo caso de Guilherme em cada órgão e também apontando os questionamentos apresentados sobre o caso.
Em nota enviada pela assessoria de imprensa, o MPSP respondeu que a atual promotora do caso, Adriana Paiva, não concede entrevistas pelo fato do processo ainda estar em andamento.
“O processo continua em andamento, devido a isso a promotora de Justiça Adriana Paiva que atualmente está no cargo não concede entrevistas sobre o assunto”, escreveu o MPSP via e-mai.
Os demais órgãos não se manifestaram. O espaço segue aberto.
*Matéria atualizada às 17h30min do dia 16 de outubro para incluir a nota do MPSP.
Correções
- A primeira versão do texto dizia que a família de Guilherme sabia que ele estava indo comprar drogas. A informação foi corrigida no dia 16 de outubro de 2023 às 12h.
- O texto original dizia que o pai de Guilherme era DJ. A reportagem foi alterada na quarta-feira (18/10) às 13h30min.