Da perda de funkeiros pioneiros à conquista do Dia do Funk, produtora atende dezenas de jovens e colabora na redução da violência no litoral paulista
Em mais um dia de show, fãs gritavam por Cristiano Carlos Martins, vulgo MC Careca, um dos pioneiros do funk na Baixada Santista, no litoral paulista. Nos bastidores, Careca perguntava a Hugo Bento, que segurava no colo Tiago Vinicius, filho do artista então com quase três anos, sobre qual música deveria apresentar na gravação do seu segundo DVD.
O DVD Volume II foi gravado em 2007, um momento de afeto que Hugo Bento, articulador cultural e cofundador da ZNO MUSIC, organização que movimenta a política institucional, ocupando a Câmara de Santos com as juventudes e a cultura da Baixada com foco no funk, e que já atendeu cerca de 40 jovens, e que também contribui com a memorialização das histórias do funk da Baixada com suas redes sociais no endereço @znomusic_.
Hugo nasceu e foi criado na Zona Noroeste (daí o nome “ZNO”), um território composto por 16 quebradas em Santos, a maior favela sobre palafitas da América Latina, e também é ex-DJ de grandes nomes que deixaram sua marca na história do funk.
Aos 33 anos, Hugo Bento continua encontrando Tiago Vinicius, que hoje com 19 anos segue o caminho de MC, assim como foi seu pai — inspiração que ele destaca em sua bio do instagram, “Filho do eterno porta voz”.
Careca conciliava sua carreira na música com o ofício de cabeleireiro, alternando entre cortes e apresentações musicais. Ele foi assassinado aos 33 anos, em 28 de abril de 2012, enquanto trabalhava em seu salão.
MC Careca iniciou a carreira nos palcos no final dos 90, quando o funk carioca chegou a Santos. Nessa época, a Baixada Santista estava cultivando o gênero, moldando-o em uma identidade única conhecida como ‘funk consciente”. Esse estilo de música se destaca por suas letras que retratam a vida nas periferias, indo das denúncias de violência por parte do Estado até papos sobre amizades e confiança.
Hugo Bento defende que, embora algumas pessoas rotulem o estilo como “proibidão” e apologia ao tráfico de drogas, elas são relatos das áreas onde o Estado não atua, exceto através da violência que atinge a periferia e os corpos periféricos. “O funkeiro é mal rotulado por uma minoria que quer ditar o ritmo da sociedade, esses mesmos nos enquadram como bandidos. Denunciar o Estado não significa que estou apoiando o crime”, afirma ele
Hugo conheceu Careca em 2001 através de seu irmão, que no tempo em que atuou como MC participou com Careca de um coletânea em CD do Tribunal Funk, que nos anos 90 e 2000 era promovido pela Rádio Laser FM, mas foi só em 2005, quando passou a morar no mesmo conjunto habitacional, o Dale Coutinho, no bairro Castelo, que Hugo começou a amizade com Careca.
Com vontade de participar mais da cena musical, conheceu Leonardo Tadeu, o DJ Baphafinha, um dos pioneiros do funk santista. Foi com ele que Hugo desenvolveu suas habilidades. Em 2005, Hugo começou a tocar para artistas como MC Careca, Felipe Boladão, Neguinho do Kaxeta, MC Claudio, Ratinho e outros, em shows que atraíam públicos de até quinze mil pessoas.
No entanto, uma série de cinco assassinatos de artistas, em abril, abalou a comunidade da Baixada. O primeiro caso foi o de Felipe Wellington da Silva Cruz, conhecido como Felipe Boladão, que perdeu a vida aos 20 anos em 10 de abril de 2010, na Praia Grande. Ele estava junto com seu DJ, Felipe da Silva Gomes, se preparando para uma apresentação em Guarulhos.
Felipe Boladão começou a compor e cantar entre os 15 e 16 anos, recorda o pai Wellington Cruz, 55 anos, e morador da Dale Coutinho. O pai do ícone rememora a relação com o filho que era de amor e amizade, “Lembro quando ele falou que queria cantar, e eu falei: você nem canta, mas tudo bem, vamos lá, até porque a gente não destrói sonho de filho, a gente apoia”, comenta.
Foi em uma audição com 23 MCs em Santos que Boladão começou a alavancar sua carreira, com a música Bola da Vez ele conquistou o primeiro lugar na competição, ganhou uma gravação e a partir disso começou a ser visto no território.
Suas músicas seguiam o estilo do “funk consciente”, compartilhando suas experiências de vida. “Meu filho gostava de ajudar as pessoas. Essa música salvou a vida desse rapaz e da mãe, né. A música feita com amor e empatia pode mudar os rumos”, afirma Wellington.
Casos semelhantes ao de Boladão pipocaram por alguns anos pela Baixada, como foi com Duda do Marapé, assassinado em 12 de abril de 2011 aos 27 anos, e MC Primo, que perdeu a vida aos 28 anos em 19 de abril de 2012.
Hugo ressalta que a violência policial sempre foi uma presença constante na comunidade, dado o complexo de favelas em que estão situados. Além disso, é nessas favelas que o funk nasceu e se desenvolveu. ” Os funkeiros assassinados pela mão da polícia foi como calar a voz do povo”, diz Hugo.
Dos cinco assassinatos, somente o de MC Primo levou o autor, um policial militar, à prisão em 2022. As outras investigações foram arquivadas. Dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) levantados pela reportagem mostram que 71 homicídios foram registrados no total em Santos entre 2010 e 2012, enquanto no ano de 2022 foram 19.
Responsabilidade no funk
Com as mortes de seus parceiros, Hugo Bento e Jonatan Nascimento, 32 anos, moradores da Dale Coutinho se viram inquietos com todo histórico de violações em seu território. Juntos, fundaram a ZNO Music para envolver os jovens na música, no funk e nas artes urbanas, buscando afastá-los das ruas. Para Hugo, o funk é uma responsabilidade social, uma herança dos pioneiros que ele conheceu.
“Os meus padrinhos, Baphafinha e Careca, foram pessoas que me ajudaram a entender e enxergar o funk como uma pessoa que eu tenho que cuidar muito bem, com responsabilidade social, porque muita gente teve que sofrer, dar as caras para construir essa história, inclusive esses dois pioneiros”, afirma Hugo. Já Jonatan comenta que esse trabalho tem o foco de correr atrás de recursos e abrir os caminhos para os artistas da Baixada.
A ZNO Music, ativa há três anos, já beneficiou cerca de quarenta jovens, encaminhando-os para estúdios com estrutura para gravação, consultas com fonoaudiólogos, workshops com jornalistas para desenvolver narrativas e orientação profissional na área de distribuição de música.
Um dos jovens que passou a ser atendido foi Tiago Vinicius, que há um ano procurou Hugo em busca de ajuda para realizar seu sonho de ser MC, “A ZNO acolheu meu sonho, me proporcionando oportunidades e sou muito agradecido por isso”, comenta Tiago.
Para Hugo, a criação de uma organização para apoiar jovens está relacionada ao amor e à ação de reduzir as desigualdades. Ele comenta: “Quando o Tiago chegou dizendo que queria fazer música, eu não pensei duas vezes. Todo sofrimento que o pai dele passou, as injustiças, eu acredito que o trabalho da ZNO está centrado em cuidar e retribuir tudo o que o pai dele fez por mim”.
Hugo compartilha que MC Careca dedicou muito tempo a ele, , dando direção, sabedoria, acolhimento e ensinamento sobre amar o movimento do funk, que une as pessoas e fortalece as relações, “Sou apaixonado pelo funk, pela minha quebrada, que é o mesmo lugar do Careca, do Felipe. Isso porque eu sou apaixonado pela história deles, porque tive o prazer de conviver com eles.”
Além do suporte aos jovens artistas, a ZNO Music promoveu o Festival Funk ZNO com o apoio de emendas parlamentares de três vereadores de Santos: Débora Camilo (PSOL), João Neri (PSD) e Francisco José Nogueira da Silva (PT). Essas emendas totalizaram R$ 30 mil em recursos para a realização das atividades do festival. Além disso, Hugo teve que envolver o poder público na reforma do Centro de Artes e Esportes Unificados, o CEU das Artes, um espaço público então abandonado. “É um direito nosso usufruir desses espaços e da grana que é para cultura, para nossas crianças e jovens, ” argumenta Hugo.
O festival foi promovido em 14 de agosto de 2022, das 11h até às 22h, com uma média de duzentas pessoas presentes no espaço durante qualquer momento. O encontro contou com palestras sobre profissões no meio artístico para além do cantar (vídeo, marketing, financeiro), além de papos com MCs das antigas, como Danilo Boladão, Bó da Catarina, MC Pikeno do Saboó, que compartilharam suas vivências no mundo do funk.
“Tem muita molecada que ainda tá entrando no funk, mas não tem a ciência do quanto o funk sofreu e de quanto esses MCs lutaram pra poder hoje ter o status que tem, por isso essa troca de ideia foi importante”, afirma Hugo.
No evento, cem MCs competiram em uma audição com a chance de ganhar uma produção artística de uma faixa e um videoclipe. Quatro deles foram selecionados para colaborar com Caio Passos, Silas Groove e DJ Matheus. “Este evento representa um marco significativo para a ZNO Music por ter movimentado jovens artistas. O sonho deste ano é fazer a Virada Cultural de Santos pela quebrada e para a quebrada”, promete Hugo.
ZNO Music na luta da política institucional
No decorrer da atuação com os jovens, a ZNO percebeu a necessidade de se envolver na política institucional, e essa articulação se concretizou ao lado da vereadora Débora Camilo.
Advogada, mãe e avó, Débora é natural do bairro do Macuco, em Santos. Em 2016, ela se tornou a primeira mulher negra candidata à prefeitura de Santos, e em 2021 iniciou seu mandato, sendo a terceira mulher negra a ocupar uma cadeira na Câmara Municipal de Santos desde a sua criação em 1547.
Débora tornou-se uma grande aliada da ZNO Music no apoio de emendas parlamentares e no projeto de lei que conquistou o Dia do Funk, comemorado em 10 de abril, data da morte de Felipe Boladão. Ela comenta que a cultura periférica sempre foi uma prioridade, mesmo antes de seu mandato, devido ao fato de que artistas locais frequentemente ficam à margem. “Quando conheci o Hugo e o trabalho que estava sendo desenvolvido, percebi que, de alguma forma, precisávamos apoiar institucionalmente. Anualmente, temos verbas parlamentares, e elas podem e devem ser destinadas a projetos como o da ZNO”, afirma
Com a proximidade entre eles, a proposta do Dia do Funk foi apresentada na Câmara, e levou cerca de seis meses de análise até ser aceita. No dia 7 de fevereiro a aprovação foi alcançada, aos gritos de alegria de 50 jovens presentes no parlamento. Débora Camilo diz que se surpreendeu com a maioria dos votos a favor do funk, mas ainda teve que rebater o vereador Fábio Duarte (PSD), que alegou que as letras das músicas de MC Careca faziam apologia ao tráfico e que aquilo não se tratava de poesia.
Débora Camilo enfatiza que o projeto de lei visa combater o preconceito e a falta de conhecimento sobre as culturas urbanas perseguidas, assim como já foram o samba, a capoeira, o hip hop, e agora acontece (ainda) com o funk.
“Um dos motivos da gente ter feito esse Dia do Funk é para reconhecer o que já é uma realidade na vida das pessoas, em suas subjetividade e sobretudo na cultura periférica. É uma forma de afirmarmos esse protagonismo.”
*A pauta desta reportagem foi selecionada para o programa de microbolsas de reportagem Comunidades Vivas, desenvolvido por Ponte e Jornalismo e Instituto Sou da Paz para incentivar a produção de reportagens sobre práticas e soluções que melhoram a segurança pública em territórios vulnerabilizados.