Artista indígena diz que o grande público não entende a conexão entre colonialismo e crise climática e defende que o colapso ambiental não é problema restrito aos povos originários
Grávida de sete meses, Brisa de la Cordillera, 36 anos, conversou com a Ponte no dia em que São Paulo registrou 37,7°C, o segundo dia mais quente da história até a data. A elevação da temperatura é resultado de uma onda de calor extremo que atinge o estado, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Ao mesmo tempo, moradores da região metropolitana e de bairros da zona sul e oeste da capital paulista chegaram ao quarto dia sem água na segunda-feira (13/11). Brisa é uma das afetadas.
Enquanto tomava água buscando algum conforto térmico, ela contava que teve de explicar ao filho de 10 anos o porquê da situação. A falta de água não é incomum onde vivem, mas costuma acontecer à noite. Brisa explicou ao menino que 2023 deve ser o ano mais quente da história — dado divulgado pelo Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus da União Europeia —, que o mundo vive uma crise climática e a proteção da água não é feita por todos.
“Ninguém vai fazer nada? Vamos continuar vivendo, trabalhando, indo para escola?”, perguntou indignada a criança. O questionamento soa quase como provocação, mas não restrita à cantora. Indígena, ela defende que a crise climática não pode ser entendida como um problema restrito a pequenos grupos, mas, sim, como uma questão que deveria estar na boca do povo.
“Cresci ouvindo que os rios iam secar e eu vi um rio secar perto da minha casa. Nós sabíamos que isso iria acontecer, povos indígenas ou não”, diz Brisa.
A cantora cresceu em Minas Gerais, mas mora em São Paulo há alguns anos. Neste meio tempo viu a carreira crescer e o número de seguidores chegar aos patamares de 50 mil. Em março deste ano, foi a primeira indígena a tocar no festival Lollapalooza. Diz gostar da agitação da cidade e se classifica como hipster. “Gosto de cafeterias”, conta aos risos.
Imersa na cultura pop, Brisa diz que a imagem dos indígenas ainda é muito atrelada à visão colonialista. A ideia de uma população aldeada “infeliz e ignorante” está no imaginário popular.
“As pessoas pensam que indígena é mato, gente pelada, sem acesso à tecnologia e que vão ter que abrir FreeFire para defender a natureza. As pessoas jogam FreeFire na aldeia, mas elas não têm saneamento básico. Muitas aldeias que visitei não tem coleta de lixo e estão rodeadas pela cidade. Isso é intencional”, diz.
A visão colonialista é agravada quando atrelada a informações falsas, diz a cantora. Brisa dá exemplo da discussão em torno do marco temporal. Conta que, no período em que o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda debatia sobre a constitucionalidade ou não do tema, seu celular dela pipocava com fake news. A maioria semeava o medo ao falar que os indígenas queriam a destruição.
“Nós já estamos perdendo casas para enchentes, já tem gente morrendo por causa de veneno e câncer. Os povos indígenas não têm intenção de matar vocês, de tirar vocês de suas casas. A gente quer justamente cuidar da nossa água”, fala Brisa.
Ela elabora sobre o ciclo de consequências terríveis em não dar acesso à terra aos povos indígenas. A cadeia de consequência afeta não só os povos agrários, mas a população toda.
“Não ter acesso à terra inclui não ter uma saúde adequada. Eu não posso plantar a minha própria comida, como comida com veneno, pago caro por ela. A gente entra em subempregos. Há toda uma cadeia que nos faz participar da consequência que vai alterar literalmente o nosso clima. Você vira a máquina da cidade onde não pode plantar sua comida, não tem acesso à terra, o concreto não deixa a água ir para terra, se ela não escoa vira enchente e derruba casas”, diz a cantora.
Cultura pop
É muito difícil destruir o impalpável, concorda Brisa, que argumenta que diante disso existem meios para dar forma aos problemas, entre eles os do meio ambiente. Tornar pop a causa é um dos caminhos.
Brisa defende que cada vez mais sejam abertos espaços para músicos indígenas e que esses possam tocar o ritmo e letras que desejarem. Ocupar lugares, estar presente em prêmios, na televisão, no TikTok, é essencial, defende a cantora.
Ela chama de trabalho de formiguinha tentar entrar nessa estrutura de mídia de massas, mas vê que o impacto é importante. Contudo, Brisa alerta sobre a visão permanente de indígenas como “atração de zoologico”, o que deve ser evitado e combatido. O uso da imagem e de figuras muitas vezes mascara discursos de manutenção das estruturas atuais que segregam.
“Essa sustentabilidade, ela realmente quer a nossa participação? Ela quer nos ouvir? Ou ela quer só falar que defende um ambiente imediatista, sendo que está poluindo de alguma outra forma e vai resolver hoje que é hype falar de meio ambiente, e amanhã, se for hype falar de outra coisa, esquece-se à terra de novo”
Mulher de fé, como se define, Birsa vê como injusto deixar que o problema climático seja resolvido pelas futuras gerações. Para os filhos, quer seguir com o ensinamento que recebeu dos pais, de ver o presente como uma dádiva.
Brisa conta que não imaginava chegar aos 36 anos. Fala sobre a sobrevivência quando é questionada sobre o envelhecimento e diz que estar é mudar o curso de um plano de extermínio em andamento.
“As pessoas não veem que nós também fomos prejudicados com a colonização, nós estamos sobrevivendo. Eu preciso sobreviver diante do mundo acabando desde 1500.”
*Este conteúdo faz parte da campanha Planeta Território, uma iniciativa do Território da Notícia com apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS)