Marcha da Consciência Negra completa 20 anos e exige fim da violência policial

Primeiro evento após a data ter se tornado feriado estadual em São Paulo, Marcha percorreu as ruas da capital paulista em meio a homenagens, performances e protestos políticos

Foto de jovens assassinados manchados com tinta vermelha, terra e flor próximo à cordão da PM em ato | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

“Perdi meu sobrinho na manifestação”, me disse um homem em meio à multidão que participava da 20ª edição da Marcha da Consciência Negra, nesta segunda-feira, 20 de novembro, na região central da cidade de São Paulo. Ele carregava um adereço no formato de coração humano em tamanho real, ensanguentado de tinta vermelha, pulando da camisa branca rasgada no peito para fora da roupa. Trazia marcas que simbolizavam tiros nas costas e carregava na mão direita um ramo de flores, quando o abordei pedindo uma entrevista.

Fiquei preocupada. Olhei para os lados, tentando buscar alguém da organização da Marcha para levar aquele homem até o carro de som e avisar no microfone sobre a criança perdida. Mas nem tive tempo de fazer nada, porque naquele instante o homem se deitou no chão, mostrando estar passando mal.

A multidão se aproximou. O homem conseguiu se levantar e foi levado ao carro de som, onde falou: “Perdi meu sobrinho Pedro, de 4 anos, na manifestação. É a primeira manifestação dele e ele estava ao lado da Polícia Militar”, enfatizou, ao menos duas vezes.

Ator Sidney Santiago faz performance durante marcha | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Só quando ele desceu eu entendi que estivera o tempo todo diante de uma performance artística, montada pelo coletivo Selo Homens de Cor. Ao final, o ator com o coração pendurado e um outro, vestido da mesma forma, depositaram no chão da avenida fotos de crianças, adolescentes e jovens mortos, a maior parte pela polícia, seguido de tinta vermelha, flores e terra.

“Estamos demonstrando a luta contra o genocídio negro”, explicou o ator Sidney Santiago Kuanza, que, sem sair do personagem, continuava dizendo que estava procurando pelo sobrinho. O outro ator, Vitor Bassi, se ajoelhou no chão para redigir uma carta, a poucos metros a frente de duas bases móveis da Polícia Militar paulista. Um dos policiais se aproximou e pediu para ele levantar: “O ato está vindo aí”. O ator terminou de escrever, levantou-se e seguiu em silêncio.

Ao mesmo tempo, uma criança negra, que parecia ter 10 anos, aproximou-se de mim e perguntou o que o ator estava fazendo. Respondi que ele estava simbolizando a busca por parentes que haviam sido mortos. O menino olhou, confuso, e questionou: “Ele está fazendo isso na frente da polícia e a polícia não atirou nele?”. Não soube o que responder.

Atores usavam camisetas regatas brancas com buracos nas costas simulando tiros em performance | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

A edição deste ano da Marcha da Consciência Negra, palco de cenas como essa, começou na Avenida Paulista e seguiu até o Theatro Municipal. Antes um feriado municipal da cidade de São Paulo, em homenagem à morte de Zumbi dos Palmares, ocorrida em 20 de novembro de 1695, o Dia da Consciência Negra passou a ser feriado estadual neste ano.

O deputado estadual Teonilio Barba (PT), autor do projeto que criou o feriado estadual, sancionado pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), abriu as falas da marcha apontando que a novidade era uma conquista histórica. “É um projeto de reparação de mais de 300 anos de escravidão contra o nosso povo”, disse.

“Nós temos que celebrar Zumbi, mas também celebrar as pessoas que estão aqui”. Barba, que é primeiro-secretário da Mesa Diretora da Assembleia Legislativa de São Paulo, fez questão de ressaltar a própria negritude ao reclamar da “grande mídia” que noticiou que a Mesa tinha apenas homens brancos.

A programação contou com apresentações feitas pelos blocos Afro É Di Santo, Baqui Atitude, de maracatu, Ilú Obá de Min, com bateria formada exclusivamente por mulheres, além de abertura feita pelos povos de terreiros e de matriz africana para abençoar o trajeto.

Apresentação do Bloco Ilú Obá De Min na Avenida Paulista | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

O tom dado pelas falas na caminhada foi a celebrar a saída da extrema-direita do poder com a derrota de Jair Bolsonaro para Lula, mas alertando para a força da extrema-direita e, pior, para uma violência policial que está disseminada e não reconhece diferenças partidárias.

Coordenadora estadual do Movimento Negro Unificado (MNU) em São Paulo, Regina Santos, 68 anos, explica esse momento. “Naquele período, a gente vivia sob um governo genocida, de um governo racista, e hoje nós estamos a 11 meses do governo que nós nos empenhamos para eleger. E nos empenhamos porque isso significa que, por mais que a dificuldade seja de lidar de frente com um governo que não é de puro partido de esquerda, ainda assim representa para a gente a possibilidade de poder falar, de poder reivindicar nossas pautas”, disse.

Integrantes do Movimento Negro Unificado nas escadarias do Theatro Municipal | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Por outro lado, Regina afirma que ainda é insuficiente. “De lá para cá, a gente ganhou um Ministério de Direitos Humanos, um Ministério de Igualdade Racial, a gente tem alguns negros no poder, mas ainda temos muito a fazer. O governo Lula precisa entender que não podemos compactuar com o superencarceramento, com a privatização das prisões”, diz, em referência ao decreto federal que viabiliza recursos para ações de segurança pública nos estados, dentre elas a privatização de presídios.

“O governo Lula precisa entender que a gente precisa enegrecer o Judiciário brasileiro. A gente tem que conseguir barrar o genocídio da juventude negra e pensar o negro nas mais diferentes esferas: educação, habitação, meio ambiente, quilombolas. A gente tem a esperança de que nos próximos três anos consiga dar conta de colocar essa pauta tão necessária da vida da população negra”, afirma Regina.

O assistente social Renan Andrade com a filha Dandara seguram cartaz “contra o genocídio negro” em marcha | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

O assistente social Renan Andrade, 37, concorda: “As ações são importantes, mas insuficientes. Não tem como lutar contra o racismo com esse sistema político-econômico que nós temos”.

Renan costuma levar para a Marcha a filha Dandara, de 7, cujo nome foi inspirado na personagem Dandara dos Palmares, que teria sido companheira de Zumbi dos Palmares na luta dos quilombolas contra a escravidão no século 17 no Brasil. Ele explicou a necessidade de ser exemplo na busca por direitos. “Trouxe ela tanto pela questão cultural quanto política, para ela não ter só aquela imagem folclórica do feriado e mostrar [que a rua] é um espaço de luta”, contou. “A gente tem que lutar desde cedo porque o racismo bate desde cedo”. Eles seguravam o cartaz com os dizeres “contra o genocídio do povo negro”.

A forma como a violência afeta principalmente a comunidade negra fez a assistente social Lilian Borges, 41, empunhar um cartaz criticando a sexualização das mulheres negras e a violação dos seus corpos: “mata mas consome como fantasia. 7 a cada 10 feminicídios são de mulheres negras”.

A assistente social Lilian Borges mostrava cartazes pela vida das mulheres negras | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

“Nós queremos ter o direito de viver, de existir. Eu como mulher preta já fui vítima de violência doméstica e eu luto contra isso, então significa que nenhuma mulher está livre de passar por isso. As pessoas se escandalizaram muito com o caso da Ana Hickmann [que foi agredida pelo marido], mas ninguém parece prestar atenção com o que acontece com as mulheres negras. Se você não quer ser tratado como as pessoas nos tratam, significa que você sabe o que está acontecendo, então não permita que isso aconteça, pois você está dando espaço para o racismo”, declarou.

Um dos passos importantes dados neste ano, para a professora aposentada Bernadete da Silva, 59, foi atualização da Lei de Cotas, com a inclusão de quilombolas, e prorrogação da política até 2033. “A gente voltou a sonhar porque até então, no outro governo, estava ameaçada a extinção. Estamos lutando para que realmente nossos jovens tenham acesso às universidades públicas”, disse.

A professora aposentada Bernadete da Silva com o cartaz “enegrecer a universidade, enegrecer a ciência” | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Contudo, Bernadete lamentou que muitas escolas ainda não cumprem a Lei 10.639/03, de 2003, que obriga as unidades de ensino fundamental e médio a ensinarem sobre história e cultura afro-brasileira. “Não é porque demos um passo que a gente vai ficar parado. Tudo é conquista, essa caminhada é conquista. Quando essa caminhada começou há muitos anos, muitas pessoas criticaram de ‘não precisa, a consciência não tem cor’, mas o que eu penso é: vista nossa pele por um dia e você vai entender como é temeroso ser negro na sociedade brasileira hoje. E nós estamos também na luta pela continuidade da Lei 10.639/2003 para que todos os educadores trabalhem a questão racial na sala de aula, da pré-escola até as universidades, até nas escolas particulares porque eles não trabalham essa questão. As escolas alegam que a maioria dos alunos são brancos e é aí que está o engano. É preciso discutir o racismo na sociedade porque o problema do racismo não é do negro, é do branco.”

Veja mais fotos da marcha:

Manifestantes empunham faixa “toda prisão é uma prisão política” | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo
Manifestante empunha bandeira com frase “parem de nos matar” em protesto | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo
Bateria de mulheres do Bloco Ilú Obá De Min | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo
Manifestante segura bandeira com dizeres “juventude negra viva” | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo
Ato começou na Avenida Paulista e seguiu até Theatro Municipal | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo
Em bandeiras e cartazes, manifestantes destacaram que a formação do país se deu pelos povos indígenas e negros | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo
Ato marca 20 anos da marcha e primeiro de feriado estadual Z Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

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