Infestações por insetos, cadeirante com o pé roído por ratos, banho sobre os próprios excrementos: acervo de colaborador da Defensoria Pública documenta condições dos presídios fluminenses entre 2015 e 2019
Foi em meados de 2006 que o então graduando de história na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) João Marcelo Dias da Silva, 39 anos, um homenzarrão branco de cabelos escuros, barba alongada, e uma estética anarquista (botinas, calças largas, blusas escuras com mensagens contra o estado burguês e um coque no cabelo longo), descobriu o obscuro universo das prisões cariocas. Começou por um interesse em fazer uma monografia sobre a gênese do Comando Vermelho (CV) no sistema prisional durante a ditadura militar, mas logo evoluiu para uma reflexão obsessiva sobre o bordão “todo preso é um preso político”. Em 2009, a convite de um professor seu, integrou uma breve pesquisa nas hoje extintas carceragens de delegacias e, na 76ª DP, em Niterói (região metropolitana do Rio), vislumbrou o que havia de pior em imagem, olor e desumanidade num geral.
“Foi numa sexta-feira, eu fiquei sem conseguir me comunicar com ninguém o final de semana inteiro. Eu entrei em uma galeria só, o corredor muito fechado. Sabe, cheiro de cadeia é algo muito real, só existe lá mesmo e foi muito impressionante a quantidade de pessoas que estavam na cela, num calor enorme, uma bafa. A 76ª DP me remeteu imediatamente à imagem da escravidão, ao navio negreiro. Eu lembro da minha sensação enquanto jovem estudante de história (vendo aulas sobre escravidão) pensando ‘que absurdo, que horror’. Naquele dia eu voltei pra casa pensando ‘eu sou um hipócrita, isso tá acontecendo embaixo do meu nariz'”, relembra João.
Dali ele migrou para o curso de direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para conseguir, por meio do bacharelado, uma chance de adentrar de vez nas prisões. Dito e feito: entre 2015 e 2019, como estagiário e colaborador, integrou as equipes de direitos humanos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, sempre como relator e fotógrafo das condições de prisões do estado inteiro. Com um trabalho continuado na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), João conta que visitou todas as instituições de cerceamento de liberdade do estado.
Atualmente afastado do mundo dos presídios por questões pessoais, João carrega consigo um vasto acervo de imagens e relatórios produzidos durante os anos de atuação no cárcere. Parte de seu material foi cedido à Ponte Jornalismo, e servirá agora para expor a dura realidade do que significa ser um acautelado pelo Estado do Rio de Janeiro.
Superlotação; convívio em cela com vermes, baratas, percevejos e ratos, os quais roem pernas de cadeirantes; doenças quase extintas fora das celas, mas comuns nos meandros da população carcerária; feridas que não saram, pioram e se tornam uma situação de vida ou morte; as imagens são nauseantes, mas correspondem ao que ocorre no interior das galerias cuidadas pela Secretaria de Estado de Administração Penitenciária.
Superlotação
A superlotação é o primeiro problema estrutural das prisões do Rio e do Brasil num todo. Nos relatórios cedidos por João, pode-se encontrar locais como a Cadeia Pública Cotrim Neto, no município de Japeri, na Baixada Fluminense — uma das áreas mais pobres do estado do Rio de Janeiro. Lá, as celas se encontravam, em 2017, quando foi feita a visita da Defensoria, com uma superlotação de 252% acima do acomodável. Eram 750 vagas para 1.892 internos, considerando, ainda, que o critério para definir o que configura uma vaga era por si só duvidoso, como explica João Marcelo:
“O critério utilizado para estabelecer a capacidade total, segundo a direção, é o número de comarcas (camas) existentes. Cabe ressaltar que originalmente a unidade possuía 500 vagas e sua ampliação para o número atual se deu meramente com a instalação de mais um ‘andar’ de comarcas, fazendo com que a unidade agora conte com ‘triliches’ (camas de três andares), permanecendo inalteradas as estruturas elétricas e hidráulicas assim como o espaço físico disponível para cada interno.”
Algumas das imagens são fortes e por isso foram borradas; clique nelas para visualizá-las
Na prática, a superlotação no Cotrim Neto significa situações como a da imagem a seguir, em que homens se apinham em um chão frio e sujo, apoiando-se, quando muito, na parede descascada e mofada:
Vale ressaltar que a imagem acima é referente a uma cela de “seguro”, voltada para presos ameaçados de morte por outros detentos. Ou seja, até mesmo os locais onde o número deveria ser o mais reduzido possível sofrem com o acúmulo de pessoas se sobrepondo em chão, camas e paredes.
“A lotação destas celas atingiu níveis inaceitáveis. No espaço destinado ao Isolamento, por exemplo, havia seis internos e apenas uma comarca e nenhum colchão. A cela identificada como ‘SEG.1’ não possui nenhuma comarca e contava no momento com 18 internos, com um espaço de circulação de 9,39 m², o que significa uma área de circulação de aproximadamente 0,52 m² para cada preso. Só estava sendo possível todos os internos permanecerem nesse espaço em razão da improvisação de redes com lençóis amarrados nas grades. A cela identificada como ‘SEG.2 contava com quatro comarcas em péssimo estado de conservação. O espaço era dividido por 17 internos”, descreve o relatório.
Nas celas normais, o Cotrim ficava assim:
A situação se repete em quase todos os presídios visitados por João e a equipe da Defensoria na época. Na Cadeia João Carlos da Silva, também em Japeri, numa visita de 2016, foi constatado que a população carcerária ultrapassava o limite em 222,3%, fazendo com que as pessoas tivessem que dormir em duas nas camas, na posição cabeça-pé.
A superlotação cria, por consequência, condições propícias para todos os outros problemas que serão mostrados. Todavia, adverte a antropóloga Luana Martins, pesquisadora sobre sistema prisional na Universidade Federal Fluminense (UFF): “Pensando em um recorte mais amplo e ligado às políticas públicas, é interessante observar os impactos que a qualificação de unidades prisionais como ‘superlotadas’ gera. Um debate comum entre pesquisadores é pensar em que medida a ‘superlotação’, ao mesmo tempo em que opera como uma ‘denúncia’ das condições dos presídios, também incentiva a construção permanente de mais unidades prisionais. Se as taxas de encarceramento são superiores à construção de novas unidades, uma nova prisão já será inaugurada como ‘superlotada’.”
Falta de higiene
Com o excesso de pessoas por metro quadrado, fica quase impossível organizar o espaço para uma boa faxina, isso supondo que exista material de limpeza ou água limpa. A verdade é que os presídios visitados na época eram todos um acervo de lixo, mofo, infiltração, fezes e insetos.
O problema começa no ponto mais básico: as privadas, ou bois, como são chamados os buracos no chão feitos para defecar e urinar. A maioria observada por João e sua equipe seguia entupida, como ilustrado pela imagem feita em 2015 no Presídio Ary Franco, localizado no bairro Água Santa, na região limítrofe entre as zonas norte e oeste da capital fluminense:
Isso por si só já seria um problema, ao se considerar que os bois se encontram no interior das celas, mas a situação piora em casos como o da Penitenciária Alfredo Trajan, que compõe o complexo de Gericinó (antigo complexo de Bangu), na zona oeste da capital. Lá, os vasos sanitários ficam diretamente abaixo dos chuveiros, forçando o detento a banhar-se sobre suas próprias excreções, como fica nítido na imagem produzida na visita da equipe da defensoria em 2017:
A arquitetura carece de boa vontade, mas o problema do entupimento seria, de fato, de menor intensidade se houvesse uma população carcerária do tamanho correto para as condições do local, como fica explícito no relatório da visita de 2017 sobre a Cadeia Pública Jorge Santana, também no Complexo de Gericinó: “Cada cela tem um banheiro coletivo, com apenas 3 ‘bois’ em cada. Essa quantidade já seria insuficiente para atender 50 pessoas (capacidade inicialmente projetada para as celas) e se mostra ainda mais deficiente considerando que a capacidade foi ‘aumentada’ com a construção de mais um andar de comarcas e a lotação atual em torno de 180 homens por cela. E agravando mais ainda todo este cenário, muito ‘bois’ estão entupidos, danificados ou inutilizados”.
O entupimento dos bois se soma ao fato de que, segundo os relatórios da época, o Estado basicamente não concede material de limpeza para as celas e, muitas vezes, sequer permite que visitantes possam entregar as detentos esse tipo de material. Isso sustenta um mau cheiro que é potencializado pelo acúmulo de lixo por todos os lugares. Vê-se, nessas visitas da Defensoria, que o lixo (orgânico ou não) é acumulado em três lugares possíveis:
- Nos cantos das celas:
- Em cilindros no pátio da prisão:
- Ou em lixeiras dentro das galerias:
A consequência desse excesso de material de despejo orgânico, somado ao entupimento de privadas com dejetos, é muito mais do que mero mau cheiro: leva à atração de baratas, larvas de moscas, ratos, percevejos, etc. A ONG EuSouEu — A Ferrugem, que trabalha diretamente com ingressos e egressos do sistema penal (com membros que foram internos de inúmeros presídios, tais como Talavera Bruce, Alfredo Tranjan, Plácido de Sá Carvalho, Benjamin Moraes Filho, Evaristo de Moraes), explica: “O contato com os dejetos humanos e de roedores é inevitável e, por isso, as infecções cutâneas são recorrentes. Sarna, erisipela, escamações de pele são comuns nesses ambientes”.
Em 2017, para ilustrar o tamanho da população de insetos e pragas em suas celas, os detentos do Presídio Evaristo de Moraes, localizado em São Cristóvão, bairro central da zona norte da Capital, fizeram armadilhas de captura em garrafas pet:
“O aspecto das celas é precário. Pisos esburacados, repletos de poças de água, fiações elétricas expostas e quase nenhuma luminosidade. Há muita sujeira, proliferando baratas, ratos, vermes e percevejos. O Estado não fornece material de limpeza o que dificulta a salubridade do ambiente. Para amenizar o sofrimento, presos elaboraram ‘armadilhas’ com garrafas PET para capturar insetos.”, descreve o relatório de 2017.
As criaturas invadem as celas de todas as prisões, segundo os relatórios. Seja pelo próprio boi, seja pelos buracos nas paredes ou frestas de luz no teto e no chão, o controle de pragas é basicamente impossível, fazendo com que a saúde dos detentos se deteriore ao máximo, com problemas de pele e ataques de bichos durante a madrugada.
Pragas e doenças
A foto acima foi feita em 2016, na Penitenciária Jonas Lopes de Carvalho, pertencente ao Complexo de Gericinó, e ilustra uma armadilha para ratos feita na porta da cela usando tampas de alumínio de quentinhas conectadas à fiação do prédio, formando assim uma minicerca elétrica. O improviso se fez necessário pois consta no relatório: “Os relatos nos levam a imaginar um verdadeiro cenário de guerra dos presos contra os ratos. Muitos casos de internos mordidos por ratos e inclusive um relato de um preso cadeirante que ao acordar percebeu que um rato estava literalmente comendo o seu pé.”
Em outras instituições prisionais do estado vê-se o aumento de doenças de pele causadas pelos insetos ou outras pragas urbanas que fazem a festa nas celas. Uma visita ao Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, também no Gericinó, em 2017, constatou:
“O primeiro ponto com relação à saúde dos internos é percebido a olhos nus: um aparente surto de dermatoses manifesta-se nos maltratados corpos vistos em todas as celas e espaços visitados. Sem receber qualquer atendimento, medicamento, tratamento ou assistência, um altíssimo número de presos sofre com feridas purulentas que coçam incessantemente e não cicatrizam. Ao longo das entrevistas, muitos presos narraram que acreditam que tais patologias dermatológicas estejam relacionadas com o grande número de gatos e pombos presentes em todos os ambientes. As aves circulam ao redor do lixo e da grande quantidade de comida jogada fora e os felinos se reproduzem de maneira descontrolada e são encontrados em todo o estabelecimento prisional. Tal suspeita possui fundamentos sólidos e é digna de nota, especialmente se levarmos em consideração a doença conhecida como criptococose, que é uma micose causada por um fungo que se manifesta em seres humanos e gatos e pode também ser encontrada nas fezes de pombos.”
Algumas imagens das doenças de pele no Plácido de Sá Carvalho:
Situações similares se repetem em todos os presídios, tendo casos mais drásticos em locais como o Cotrim Neto, onde as inflamações nunca saram e os insetos nunca param de picar, conforme registros de 2017:
“Irmão, desculpa, mas você vai morrer“
Mais do que gerar problemas onde antes não tinha, os presídios perpetuam o prolongamento de dores crônicas e problemas de saúde graves pré-existentes a ponto de provocarem a morte ou quase. Nesse quesito, duas unidades prisionais do Complexo Gericinó se destacaram dentre os relatórios e relatos como as que geraram os casos mais grotescos: Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho e a Cadeia Pública Jorge Santana.
No primeiro, os detentos relataram à Defensoria o definhamento contínuo por doenças tratáveis, mas que se tornam mortais e causadoras de profundas dores pela falta de acesso à saúde pública. Dentre os presos, um dos que mais chamou atenção foi um homem negro com um raríssimo caso de hérnia escrotal gigante, ou seja, uma hérnia escrotal que ultrapassasse o ponto médio interno da coxa, algo que só ocorrera porque ele ficou seis anos esperando um tratamento que nunca chegava. “Isso é quando parte do intestino desce para o escroto”, explica João Marcelo Dias. “Doía muito, tinha dificuldade de achar posição para sentar, ficar em pé, dormir e tudo mais. Ele só conseguiu ir para a UPA [Unidade de Pronto Atendimento] pautar uma cirurgia depois da nossa visita.”
Ainda no Plácido, uma das situações mais tocantes para João e seus colegas foi a de Leonardo Vieira da Silva, um homem que, acometido por tuberculose e pneumonia, duas doenças facilmente tratáveis, viu a vida passar numa comarca de cela prisional. “O interno contou que no dia em que recebeu alta se sentia tão mal que, depois de levado para o Plácido de Sá Carvalho, precisou voltar para a Unidade de Pronto Atendimento, mas não conseguiu ser atendido porque a profissional de plantão ainda era a mesma médica que o havia liberado mais cedo. O membro da equipe que conversou com o interno precisou fazê-lo ajoelhado à beira de sua comarca por ele se encontrar tão enfraquecido que levantar ou até mesmo falar um pouco mais alto seriam tarefas pesarosas. Leonardo ainda contou depender dos companheiros de cela para a limpeza e troca de curativos do acesso feito para inserir o dreno em seu pulmão”, descreve o relatório.
Durante a visita da Defensoria, Leonardo pediu para que João o ajudasse e o levassem para algum hospital bom, que conseguisse, por fim, salvá-lo. Com o coração doendo, João optou por ser sincero, no lugar de contar uma mentira fácil, e disse: “Irmão, desculpa, mas você vai morrer. Se eu te levar daqui pro Copa D’or, vai ser muito difícil você sobreviver.”
Já a situação do Jorge de Santana envereda para as consequências reais das operações policiais do Rio de Janeiro. Na cela B ficavam os internos com problemas de saúde e dificuldade de locomoção, a grande maioria por consequência de ferimentos causados pela polícia, pois, após o pronto atendimento de um baleado em operação, as vítimas da violência policial que são classificadas como bandido costumam ser mandadas diretamente para o presídio, sem tempo de recuperar das cirurgias. A consequência é que celas inteiras ficam lotadas de homens com feridas causadas pelo Estado que nunca sararam.
“Muitos presos que lá se encontram foram baleados durante a prisão e estão com incapacidade temporária ou permanente de locomoção e precisam de cadeira de rodas ou muletas para se locomover. Há apenas uma cadeira de rodas no presídio e no momento da visita não estava dentro da cela. Não há acessibilidade para pessoas com deficiência e estes presos dependem da ajuda e boa vontade dos demais para sobreviver (comer, tomar banho, necessidades fisiológicas, cuidar dos ferimentos, etc). Vários internos dessa cela narraram ter tido alta hospitalar recente sem estar com seus problemas de saúde resolvidos ou conseguindo dar continuidade a seus tratamentos”, discorre o relatório.
Sem fim
Colega de João durante as visitas, o hoje advogado e professor e pesquisador da UFF Fernando Henrique Cardoso Neves, que se posiciona como um abolicionista penal, explica que não existe país no mundo que cumpra todos os requisitos humanos básicos de uma prisão. “Eu desafio qualquer jurista de qualquer idade de qualquer lugar do mundo a me provar o contrário. Não existe um aspecto da vida em prisão que siga o mínimo parâmetro legal para a sua existência. ‘Ah, Fernando, mas e Europa, e Dinamarca? Eles são tão evoluídos.’ Não vai na prisão que prende norueguês, vai no centro de detenção que prende imigrante. E foi fazendo as incursões nesses presídios que me dei conta disso, de que não existe prisão legal no Brasil, e se não existe prisão legal no Brasil, todo mundo deveria ser posto para fora. E isso não é ser um anarquista, um radical, isso é só cumprir a lei.”
Fernando lembra que o próprio STF já reconheceu oficialmente que as prisões no Brasil não respeitam a legalidade, ao mesmo tempo que a Corte “não libertou uma vivalma de nenhum presídio”. Ou seja, para ele: “Falar do descumprimento de dispositivos legais no sistema penitenciário pode ser duas coisas: primeiro uma grande hipocrisia e a segunda é perceber que a própria discussão acerca do descumprimento desse tipo de legislação dentro desses presídios faz parte de todo um circuito de continuidade desse aprisionamento de pessoas”.