Racionamento de água, superlotação e falta de infraestrutura é realidade dos presídios pelo país, apontam especialistas; decreto do governo federal abre brecha para estados manterem celas sem tomadas
A previsão de temperaturas máximas elevadas que ganha os notíciários a cada novo verão deste século do aquecimento global preocupa familiares e profissionais que defendem direitos básicos aos presos no Brasil. A realidade das prisões é de racionamento de água e superlotação em celas que por vezes não têm eletricidade, o que impede o uso de ventiladores, por exemplo.
São Paulo registrava 35°C quando familiares de pessoas presas entravam no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Pinheiros, na zona oeste da cidade, para o dia de visita em um sábado (18/11). O período, para muitas, é a pior época do ano por conta das altas temperaturas.
“Uma demonstração do que é o verdadeiro inferno”, diz a mãe de um jovem preso há quatro meses para se referir aos problemas enfrentados pelos visitantes na unidade prisional agravados pela onda de calor.
Aquela foi a primeira vez que o tio de um rapaz preso há cerca de três meses no CDP Pinheiros IV pisou em um presídio. Para ele, as condições encontradas foram ainda piores do que imaginava. “Eu sei que quem está aí dentro é porque fez alguma coisa de errado e precisa pagar, mas a quentura que faz lá dentro é difícil para sobreviver”, conta.
Ele afirma que passou todo período de visita sem se hidratar porque se deparou com “uma água ruim demais para tomar”. O tio do preso conta que a água disponível “dá para ver, com certeza, que não é apropriada para tomar. Eles só bebem porque não tem outra opção, e mesmo assim sempre falam que foi cortada”.
As quatro unidades do Complexo Prisional de Pinheiros estão lotadas, assim como outros 27 CDPs em São Paulo. Os números são da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP). No total, 196.727 pessoas estão presas nas 182 unidades prisionais do estado.
A constatação do tio do preso é destacada também pela coordenadora nacional da Pastoral Carcerária, irmã Petra Silvia Pfaller, que recebe informações de familiares de presos de centenas de presídios espalhados pelo país que apontam para o problema em conseguir beber água. “Tem familiares que são proibidos de levar garrafa de água na visita e, dentro do presídio, não têm acesso à água. Quando tem, não é água potável.”
A ativista dos direitos dos encarcerados chama a atenção para esse período de temperaturas muito elevadas. “As pessoas presas já sofrem independentemente do tempo, mas nessas situações extremas é horrível”.
“No show da Taylor Swift, no Rio de Janeiro, a Justiça obrigou o fornecimento de água aos fãs. Quem dera o Estado tivesse esse cuidado com as pessoas presas e seus familiares na fila da visita”, diz Petra, que é alemã e vive desde 1991 no Brasil, onde é formada em Direito com especializações em Direitos Humanos e Direito Penal e Processo Penal pela PUC de Goiás.
O calor expõe gargalos importantes e que trazem riscos à vida dos presos. Estudo publicado em maio deste ano pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), evidenciou que letalidade é uma possibilidade real para pessoas expostas ao ambiente prisional.
A pesquisa Letalidade prisional: uma questão de justiça e saúde pública mostra que a falta de estrutura e de acesso a serviços básicos de saúde em unidades prisionais deixa vulneráveis os que ali estão. A situação é agravada por condições como falta de alimentos, racionamento de água e pela exposição ao calor e ao frio. O risco de morte por fraqueza extrema é 1.350% maior para os presos do que para a população em geral.
A coordenadora do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (Nesc) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Mariana Borgheresi Duarte, relata que as unidades prisionais de São Paulo não oferecem condições adequadas.
“As prisões do Estado de São Paulo não conseguem oferecer condições dignas mínimas de saúde e de sobrevivência para as pessoas presas. A esmagadora maioria das unidades prisionais está superlotada. Além disso, não existe a menor estrutura física. Não há uma ventilação adequada que permita circulação de ar”, diz Mariana.
Ela conta que em visita feita no mês passado pelo Nesc ao CDP Pinheiros IV foi verificado o racionamento de água. Cinco intervalos de horário foram determinados para o uso da água na unidade — sendo o maior deles de 2h30min e o menor de 30 minutos. Em apenas dois deles, chuveiros com água quente eram liberados aos presos.
A situação em Pinheiros não é exceção. Em novembro, a Agência Pública mostrou que mais de 50 prisões em São Paulo tiveram racionamento nas semanas mais quentes deste ano. A reportagem ainda relata que na Penitenciária II de São Vicente, no litoral paulista, os presos diziam ter apenas uma hora de acesso à água por dia.
Mariana fala que, para além da disponibilidade de água no verão, no inverno os presos não têm, em sua maioria, acesso à água quente. Uma ação ajuizada pela defensoria em 2013 cobra que o Estado de São Paulo forneça água quente nas celas. O processo ainda tramita sem uma sentença final, mas em regime de tutela antecipada a SAP teve de instalar pelo menos quatro equipamentos para cada raio (que são alas ou setores) nos pátios das unidades.
Ocorre que os chuveiros, segundo o Nesc, ficam disponíveis apenas no horário de banho de sol, o que inviabiliza que todos os presos possam tomar banho durante o período, que é limitado.
Ainda conforme o Nesc, em unidades como a Penitenciária II de Mirandópolis, no interior de São Paulo, os equipamentos não funcionam e objetos foram depositados embaixo deles, demonstrando que não eram utilizados. Havia, inclusive, chuveiros instalados sobre um vaso sanitário.
“A água tem sido utilizada como instrumento de tortura, tanto no calor quanto no frio. Aquilo que deveria ser uma assistência material no cárcere, pela falta dela, ou pelo uso inapropriado pela administração penitenciária, acaba causando todas essas doenças e impondo mais sofrimento para as pessoas presas do que a pena privativa de liberdade, que já é um sofrimento em si”, diz Mariana.
Presos que menstruam
Além dos problemas que afetam de maneira geral os presos submetidos ao racionamento de água, há uma violência imposta aos que menstruam. Quando foi presa em 2013, a educadora do Núcleo Memória Carandiru, do Instituto Resgata Cidadão, Helen Baum, conta que tinha de improvisar durante os dias de menstruação. “Nós sofríamos no período menstrual porque nós não tínhamos água suficiente para fazer a nossa higiene”, fala.
Ela relata que o kit higiene oferecido não era suficiente para conter o fluxo menstrual. Segundo ela, eram dados dois rolos de papel higiênico e um pacote de absorventes a cada dois meses.
“Como essas mulheres fazem a higiene? Sequer t^êm absorvente íntimo. Elas estão lidando com essa situação usando trapos, pedaço da espuma. Até por isso que algumas ficam sem colchão, porque é uma questão de sobrevivência”, relata.
A falta de água potável já era problema há 10 anos, conta Helen. “Na minha época, em tempo de chuva nós colocávamos o balde embaixo das calhas para captar essa água da chuva, fervíamos e deixávamos esfriar para poder beber.”
Em outubro, Helen participou de uma inspeção do Mecanismo de Combate à Tortura à unidade de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, onde esteve presa por um período. Ela conta ter se assustado com a deterioração da unidade que, segundo o relato, sofre com racionamento e calor “insuportável” nas celas.
Sem luz e tomadas
Em 2021, durante o governo de Jair Bolsonaro, foi editada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária a resolução nº 16, que alterava a arquitetura penal. O texto proibia que tomadas e pontos elétricos fossem instalados dentro ou próximos das celas. Também ficavam restritos chuveiros, registros e tomadas metálicas neste espaço.
Parte da medida só foi revogada em setembro deste ano, já no terceiro mandato de Lula. Por meio da resolução nº 32, voltou a ser prevista a instalação de tomadas e pontos de energia para “servir à realização de direitos fundamentais não atingidos pela sentença condenatória”.
Contudo, o texto dá brecha para que a proibição siga ocorrendo desde que “justificada pela autoridade penitenciária”. A resolução não deixa clara quais alegações são aceitáveis para o impedimento, afirma Camila Antero, coordenadora-geral do Mecanismo Nacional de combate à tortura (MNPCT).
“Com essa restrição o preso não pode ter aquecimento em chuveiro elétrico, ventilador, uma televisão. Nada disso é proibido nas sentenças condenatórias e, se fosse, seria uma violação ao direito humano, porque o direito interditado é o de ir e vir”, diz Camila.
Há ainda outro problema que a resolução acarreta. Sem tomadas ou pontos de elétricos nas celas, muitos detentos tem ficado no breu após o pôr-do-sol. A situação, argumenta Camila, viola a Lei de Execução Penal (LEP), que proibia a cela escura no artigo 44.
“Muitas pessoas estão vivenciando a cela escura. Na maioria dos lugares onde vamos as pessoas não tem mais iluminação depois das 18 horas. Elas ficam no mais completo escuro devido à resolução nº 16, que mesmo alterada jogou para a decisão para as administrações estaduais”, pontua Camila.
Em Minas Gerais, o governo de Romeu Zema (NOVO) aprovou em outubro deste ano a lei 24.496. A legislação determina que as celas não podem ter pontos de luz ou tomadas e dá prazo de um ano para adequação das medidas.
Questionado pela Ponte, o governo Zema negou que violasse a LEP. Em nota, a gestão informou que vai permitir pontos de energia elétrica destinados à iluminação nas celas, desde que envoltos por barreiras físicas.
“Além disso, todas as celas contam com basculantes para entrada de luz solar durante o dia. Durante a noite, haverá iluminação elétrica nos corredores”, informou a nota.
Diante da previsão de calor e da manutenção das condições precárias, a coordenadora do MNPCT diz que as violações aos presos devem se tornar mais cruéis e duras.
“Dizem que esse é o ano mais fresco que vamos ter pelos próximos anos. Infelizmente temos toda a questão do aquecimento global e nenhuma sinalização de que esse processo climático será revertido. A tendência é que essas violações se tornem ainda mais cruéis e mais duras. É necessário que as autoridades penitenciárias, os governos estaduais e federal tenham atenção com relação a isso e se recusem a dar vigência a dispositivos violadores”, fala Camila.
Outro lado
A Ponte procurou a Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) e a Secretaria de Administração Prisional de São Paulo, mas não houve retorno. O espaço segue aberto.
*Este conteúdo faz parte da campanha Planeta Território, uma iniciativa do Território da Notícia com apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS)