Relatório do IDDD analisou 55 casos entre 2013 e 2023 em São Paulo e aponta que cerco a ativistas envolve criminalização judicial e intimidação; delegada indiciou por associação criminiosa manifestantes que lutava contra privatização da Sabesp
Os movimentos sociais são alvo de uma forma “refinada de perseguição” que passa pela criminalização por vias judiciais, mas também pela intimidação dos ativistas. Esse cenário é apontado pelo relatório Ativismo cercado: um diagnóstico da criminalização das lutas sociais em São Paulo, publicado no último mês pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).
Foram mapeados 55 casos entre 2013 e 2023 na capital e na região metropolitana de São Paulo. Em 19 deles, os ativistas foram criminalizados por tipos penais como furto, incitação ao uso de drogas, desacato e associação criminosa.
O último chama a atenção porque foi a tipificação penal atribuída aos quatro presos em um protesto contra a privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). O grupo estava dentro da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) durante a votação de projeto que pavimenta a concessão da companhia estatal à iniciativa privada. Vídeos mostram a Polícia Militar agindo com gás de pimenta e promovendo agressões com uso de cassetete para retirada dos manifestantes do local.
Dois deles, o professor Lucas Carvente e o estudante Hendryll Luiz, foram acusados de lesão corporal contra policiais por supostamente os terem agredido. A dupla foi liberada via habeas corpus na última terça-feira (12/12) após passar seis dias presa. Os demais manifestantes já haviam sido liberados em audiência de custódia.
A delegada Fabíola Miyashiro Lee, que registrou o caso no 27º Distrito Policial (Campo Belo), acusou os envolvidos de associação criminosa pela conduta. Em entrevista coletiva concedida na quarta-feira (13/12), o grupo rechaçou a criminalização. “Essa é uma forma escancarada de mostrar o quão política foram não só as nossas prisões, mas todo esse processo”, disse Vivian Mendes, líder partidária do Unidade Popular (UP), uma das presas na manifestação.
Responsáveis pelo estudo do IDDD, Vivian Peres e Ana Lia Galvão, coordenadora de programas e assessora da equipe de programas, respectivamente, veem uma perseguição aos movimentos sociais que encontra novas formas de sufocamento.
“Vivemos no Brasil a passagem da ditadura militar para um período democrático, que tira a luta social formalmente como um crime. A luta social passa a ser autorizada pela Constituição Federal, mas vemos uma espécie de continuidade muito refinada de perseguição às lutas”, diz Vivian.
Ana diz que a criminalização afeta a vida das pessoas não só na forma de responsabilização criminal. Ela diz haver diversas formas de assediar os ativistas, seja por vias administrativas ou extrajudiciais.
“Não é crime lutar, mas é possível enquadrar lutadores e lutadoras em outros tipos de crime que não são militância e ativismo, mas que dão conta da mesma forma, da mesma intenção de desmobilização que existe por parte do Estado”, diz Ana.
As pesquisadoras não enxergam com espanto a tentativa de enquadrar movimentos sociais no crime de associação criminosa. Previsto no artigo 288 do Código Penal, o crime é definido pela associação de três ou mais pessoas para cometer crimes. A pena prevista é de um a três anos de prisão.
“É um tipo penal aberto. Ele não define exatamente qual é a conduta especificamente [criminal]. É muito fácil de colocar isso como mais um crime, mais um penduricalho no momento em que essa repressão está acontecendo”, fala Vivian.
Ana defende que a característica do trabalho dos movimentos sociais é de grupo e que isso é aproveitado para estabelecer paralelo com esse crime.
“É muito raro você ver alguém construindo alguma luta sozinho. É um tipo penal facilmente associado porque as pessoas realmente estão em ações em grupo. Existe uma identificação com uma pauta comum e muitas vezes se aproveita dessa atuação coletiva para dar essa característica”, coloca.
Mulheres e negros criminalizados
A pesquisa também identificou que as mulheres (67,3%) e os negros (61,8%) são a maioria entre os defensores que já sofreram ameaças ou criminailização formal. Outro ponto é que a Polícia Militar é a principal personagem na perseguição. Em 56,4% dos casos, a PM foi apontada como executora e a abordagem policial foi o principal meio de constrangimento identificado.
O estudo aponta que as abordagens policiais atendem a uma função de controle social. Esse instrumento legal concede ao policial um poder de eleger alvos para busca pessoal mesmo na ausência de decisão judicial. A ação acaba justificada por uma brecha na lei que permite o uso da “fundada suspeita”.
“O Código de Processo Penal traz uma brecha muito grande na possibilidade de revistas pessoais, que é dizer que uma pessoa pode ser abordada se o policial entender que existe ali uma fundada suspeita da prática de algum crime, de que a pessoa esteja portando algum objeto ilícito e tudo mais. Só que o Código não define o que é a fundada suspeita e isso abre uma discricionariedade muito grande para o agente policial que vai fazer a abordagem. Ele classifica essa fundada suspeita da forma que ele quiser. Os tribunais têm um papel muito importante na validação da palavra desse policial, e normalmente fazem”, diz Vivian.
O perfil dos abordados se conecta de quem são os ativistas perseguidos. O relatório Por que eu? Como o racismo faz com que as pessoas negras sejam o perfil alvo das abordagens policiais, publicado pelo IDDD em 2022, mostrou que pretos têm risco 4,5 vezes maior de sofrer uma abordagem policial, em comparação com uma pessoa branca.
Há ainda outro aspecto sobre as abordagens. Ana diz que em muitos casos elas não foram sucedidas por encaminhamento à delegacia, mas sim como forma de intimidação.
“Uma coisa interessante também que a gente identifica aqui nos casos do mapeamento em que o relato passava por abordagens policiais, fomos notando que elas foram usadas não necessariamente para submeter uma pessoa a um processo criminal ou a uma investigação, mas como forma de intimidação muito explícita dos defensores de direitos humanos. Recebemos relatos nesse mapeamento de policiais que no momento da abordagem falaram coisas do tipo ‘eu sei onde você trabalha, eu sei onde você mora’, entre outras coisas que demonstravam que o objetivo era exatamente esse”, diz Ana.
Em setembro, a Ponte contou que o filho de uma ativista do movimento de mães denunciou ter sido abordado e intimidado pela Polícia Militar quando saiu de um evento que discutia a violência na Baixada Santista. O jovem foi enquadrado nas proximidades da Avenida Paulista. “Ele chegou e disse ‘eu sei onde você estava, você estava na Defensoria, né? Qual seu nome?” e também perguntou pelo nome da mãe do jovem.