Ana Paula Freitas Vilela Leite entrou com recurso, nesta sexta (12), contra decisão que concedeu liberdade a 7 pessoas; especialistas consideram que atribuição de crime de tentativa de abolir Estado Democrático é risco ao direito de protesto
O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) pediu, nesta sexta-feira (12/1), a prisão de sete jovens que participariam do protesto contra o reajuste da tarifa de metrô e trens na capital paulista um dia após o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) ter determinado a liberdade provisória de todos em audiência de custódia mediante cumprimento de medidas cautelares, como uso de tornozeleira eletrônica e proibição de participar de manifestações.
A promotora Ana Paula Freitas Vilela Leite comunicou ao juiz Antonio Balthazar de Matos, responsável pela decisão da soltura, que entrou com um recurso contra a decisão dele e que espera que os sete tenham a prisão preventiva (por tempo indeterminado até o julgamento) decretada.
Segundo a promotora, a Constituição garante o direito à manifestação pacífica e sem armas, mas os sete detidos, incluindo um que portava apenas gazes farmacêuticas, formavam “uma associação criminosa armada, que se dirigiu com muitas armas à manifestação, pondo em risco todos os manifestantes”.
Como a Ponte revelou, 25 jovens, entre adultos e adolescentes, foram detidos por volta das 18h na saída da estação República do Metrô, na quarta-feira (10/1), que fica a aproximadamente 500 metros do Theatro Municipal, onde acontecia a concentração do ato convocado pelo Movimento Passe Livre (MPL) contra o aumento da passagem de R$ 4,40 para R$ 5, que começou a valer no dia 1º de janeiro por determinação do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Dentre os 25, a polícia afirma que 13 deles, sendo sete adultos e seis adolescentes, estavam com objetos como faca, canivete, gaze, porrete, garrafas de álcool, gasolina e vinagre. O delegado Alexandre Henrique A. Dias, do 3º DP (Campos Elíseos), entendeu que os adultos cometeram os crimes tentativa de abolir violentamente o Estado Democrático de Direito, associação criminosa e corrupção de menores.
Com exceção deste último, os adolescentes foram autuados por atos infracionais análogos e o tribunal não deu informações sobre o resultado da audiência deles. A Ponte apurou que eles teriam sido liberados também. O inquérito referente aos adolescentes tramita em segredo de justiça e em fórum diferente, por isso a promotora menciona apenas os sete adultos.
Nesta sexta-feira, o MPL emitiu nota pública em que considerou as detenções como “absurdas” e uma “tentativa de intimidação”. “Antidemocrática é a atuação das forças policiais e do judiciário quando criminalizam quem está em audiências públicas e nas ruas lutando por direitos”, diz trecho do texto.
À Ponte, a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil Seção São Paulo (OAB-SP), que costuma acompanhar protestos, disse que não foi comunicada do ato e entende que foram “excessivas” as detenções. “Há que se utilizar o instituto jurídico com ponderação para não se eliminar outro fundamento da nossa sociedade, que é o consagrado direito à livre manifestação do pensamento, ainda mais em se tratando de atos preparatórios”, declarou em nota.
Já a Defensoria Pública disse que atuou na defesa dos 13 detidos durante as audiências de custódia e que “atua pela garantia do direito à liberdade de expressão e manifestação, assim como do direito à ampla defesa”.
A reportagem teve acesso ao inquérito nesta sexta-feira e consultou duas especialistas sobre o caso: Ana Gabriela Ferreira, que é advogada e professora de direito penal na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), e Bianca Tavolari, que é professora de direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
Ambas entendem que a tipificação dos crimes de associação criminosa e, principalmente, da tentativa de abolir violentamente o Estado Democrático de Direito são formas de cercear o direito ao protesto. Este último crime passou a existir em 2021, quando foi aprovada durante o governo do presidente Jair Bolsonaro uma nova lei, para substituir a Lei de Segurança Nacional que havia sido criada durante a ditadura civil-militar.
As entrevistadas apontam que a situação dos detidos é completamente diferente do caso de 8 de janeiro de 2023, quando houve ataques de vandalismo aos prédios dos Três Poderes por pessoas que pediam golpe e não aceitavam o resultado das eleições de 2022. Dentre 1.354 ações penais instauradas no Supremo Tribunal Federal (STF), ao menos 30 pessoas que participaram dos atos antidemocráticos já foram condenadas por crimes como associação criminosa e tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
Ana Gabriela Ferreira aponta que no caso do 8 de janeiro havia declarações e filmagens dos golpistas dizendo que queriam derrubar o STF, que queriam intervenção militar e, de fato, tentaram destruir o patrimônio público. “As ações deles foram nesse sentido, de criar um temor que justificasse uma tomada de poder militar e de atingir os membros do Supremo e os membros do TSE, o presidente TSE à época. No caso de ir a uma manifestação em que se questiona o preço de passagem e se afirma abertamente isso, a única coisa que os manifestantes fazem é pedir pela baixa dos preços da passagem. Não existe um intuito em nenhum momento associado à abolição do Estado Democrático de Direito. Existe um exercício regular do direito de manifestação e de expressão”, explica.
No boletim de ocorrência, o delegado justificou os indiciamentos ao escrever que mensagem de rede social, não explicitando qual, convocando o protesto que “evolui para um chamado de que se não tiver seus anseios atendidos irão ‘parar a cidade’ alimenta por si só um sentimento de enfrentamento” porque o horário marcado para a caminhada do ato começar coincidia com a saída das pessoas do trabalho, o que motivaria, para ele, “caos e desordem urbana” e causaria “um genuíno atentado contra o Estado Democrático de Direito no seu viés de aplicação de políticas públicas prevista na Constituição Federal, não sendo a violência a forma adequada e legal para solução de lides”.
No inquérito, foram anexadas uma postagem do MPL que traz orientações sobre como se proteger da violência policial; um vídeo de parte da caminhada do protesto, que não se informa a autoria, em que o delegado Alexandre Henrique A. Dias, do 3º DP (Campos Elíseos), destaca se tratar de “imagens dos fatos, com as faixas de “‘antifas’ e ‘Fogo no Pavio'”; um flyer com fotos de manifestações em que aparece em destaque uma faixa escrita “se a tarifa não baixar, a cidade vai parar”, com o logo do perfil Federação das Organizações Sindicalistas Revolucionárias do Brasil (FOB); e uma página em branco com a frase “Coquetel molotov é uma arma química incendiária, que combina diversos líquidos inflamáveis e é, geralmente, utilizada em protestos e guerrilhas urbanas” em que não fica claro se é uma postagem nem de onde foi retirado.
A foto das apreensões dos objetos também é diferente da que foi divulgada pela Polícia Militar pelo X (antigo Twitter), uma vez que têm três facões e três barras de metal a mais.
Bianca Tavolari entende que a interpretação extrapolou a apreensão dos objetos considerados “perigosos” para uma criminalização da manifestação em si com base nesses elementos que foram adicionados, em relação às postagens de redes sociais anexadas. “Eles estão extrapolando a ideia de abolição contra o Estado Democrático de Direito como qualquer questionamento ao Estado e contra políticas específicas. No fundo, se você for entender nessa interpretação extensiva, qualquer manifestação contrária ao Estado pode ser lida como atentado contra o Estado Democrático de Direito. Eles estão ampliando essa categoria de maneira bastante impressionante”, critica.
Para ela, por ser uma tipificação mais genérica é pior que a Lei Antiterrorismo, pois a norma de 2016 ainda descreve que não se aplica a manifestações políticas, por exemplo, o que não ocorre no texto da tentativa de abolir o Estado de Direito. “Eu acho que é muito grave, porque, ainda que seja frágil, que a gente encontre muitos elementos para questionar essa tipificação, me parece que vai ser uma nova abertura para um flanco mais punitivo e mais criminalizador de manifestações”.
Outro ponto é a questão de que a Polícia Militar descreve que decidiu abordar os jovens porque estariam mascarados e que a “Constituição veda o anonimato”. Ana Ferreira explica que usar máscara em manifestações públicas não é inconstitucional, já que após as manifestações de junho de 2013 alguns governos estaduais passaram a criar leis para proibir uso de máscaras em manifestações, como em 2019 em São Paulo, mas a constitucionalidade dessas normas ainda está pendente de julgamento em ação no STF.
Já Tavolari aponta que a Constituição Federal veda o anonimato para liberdade de pensamento e não para participar de protesto, sendo que os policiais da Força Tática flagrados pela reportagem sem identificação na farda e com balaclava no rosto poderiam estar enquadrados nessa intepretação da PM e do delegado. “A Constituição não diz que você não pode se manifestar com panos no rosto e a gente tem essa discrepância que é a PM com exoesqueleto, escudo, sem identificação e com a balaclava. Então, de alguma maneira não tem uma simetria importante quando na verdade a gente está falando de servidores públicos que deveriam estar identificados a todo momento”, afirma.
A professora explica que o protesto entra no direito à liberdade de reunião: a Constituição prevê que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.
Bianca Tavolari, que estava no protesto, também entende que a presença da imprensa no ato no momento em que um rapaz teve um soco inglês improvisado e um nunchaku, que é um tipo de bastão de madeira, apreendidos e liberado no mesmo local, diferentemente dos 13 indiciados, demonstra “muita discricionariedade” de como a polícia age quando está sendo monitorada.
Para as professoras, apesar de considerarem positivo o juiz determinar a liberdade provisória, reconhecer as prisões como flagrante e determinar uso de tornozeleira, proibição de ir em protestos e outras medidas restritivas são graves.
“É comum que o juiz decida na conversão de prisão e outras medidas que a pessoa deixe de praticar o ato que foi o fundamento da prisão. Acontece que se manifestar não é ilícito e não houve nenhum ato lesivo, até onde eu vejo da leitura do inquérito, que justificasse a prisão dentro da manifestação”, analisa Ana Ferreira, da UEFS.
“É muito grave porque se a gente pensar as pessoas não fizeram nada, elas só saíram do metrô República. A gente não sabe se foi plantado ou não o porte desses armamentos, mas a gente está falando de proibição de um direito fundamental que é o direito a manifestação, e não tem um prazo [no processo]”, aponta Bianca Tavolari.
Reportagem atualizada às 16h30 de domingo (14/01), para incluir informações do pedido da promotora para prisão dos sete jovens.