Relação entre milícias e jogo do bicho é explorada em livro inédito; leia trecho

Dissertação de Matheus de Moura traz a história da família Castor, de Bangu, e da milícia de Rio das Pedras; Do Bicho à Milícia está em pré-venda e quem comprar ajuda edição do livro físico

Capa do livro "Do Bicho à Mílicia", de Matheus de Moura | Foto: Reprodução

Matheus de Moura, colaborador frequente da Ponte e autor do livro O Coronel Que Raptava Infâncias (Intrínseca, 2021) , sobre o coronel reformado Pedro Chavarry Duarte, condenado por estupro de vulnerável em 2017, está de livro novo na praça. Dessa vez, o alvo é a relação, na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, entre as milícias e o jogo do bicho. Em Do Bicho à Milícia, fruto de dissertação de mestrado no Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é uma certa “continuação” do livro sobre o coronel Chavarry, explica o autor: “quando fui fazer o primeiro livro, desenterrei uma lista de PMs que recebiam propina do jogo do bicho dos anos 80 e 90. O Chavarry recebeu propina do Castor de Andrade nos anos 1990. Foi um dos muitos do 14º BPM, que cuida de Bangu, a receber mensalmente uma graninha para sabotar ou fabricar operações de ‘repressão ao bicho’. No caso, o bicho trabalhava na construção de falsas apreensões, que tinham por objetivo forjar a ideia de que eles não eram privilegiados pelas autoridades”. 

Mateus chegou, nessa lista, a três nomes que estariam entre os pioneiros das milícias no Rio de Janeiro. Enquanto trabalha em uma biografia sobre Castor de Andrade, um dos maiores nomes da história do bicho carioca, o jornalista encontrou diversas histórias e paralelos entre os dois grupos /  tipos criminosos. “O jogo do bicho é muito próximo do início das milícias. As milícias surgem por inúmeros fatores, como o fim da ditadura militar, que faz com que esses militares, sejam policiais ou oficiais das forças, se relocalizem num jogo de poder que os desmoraliza diante da sociedade civil. Também há uma busca dos próprios policiais que já estavam em esquema de corrupção por uma renda estável e própria, e há uma troca de know how muito intensa de milicianos e bicheiros, até porque esses milícias já eram envolvidos no bicho, trabalhavam como seguranças, etc.”

Do Bicho à Milícia está em pré-venda pela editora Urutau, e a ideia é que quem compre já ajude a publicar o livro de forma mais ampla. Clique aqui para encomendar um exemplar e leia abaixo um trecho do livro:

4 – As esferas de disputas 

A favela de Rio das Pedras sempre esteve longe de ser um lugar com estabilidade — pelo contrário, até hoje carrega a fama como a terra da milícia mais desorganizada do estado, como me disse um homem que convive com milicianos de diferentes territórios do Rio: “Lá é bagunça, ninguém leva como exemplo”. Os conflitos no miolo da rede ocorrem em três instâncias: (1) externa ao território; (2) interna entre participantes; (3) interna entre participantes e moradores. 

Na primeira, vê-se atritos que escalam para a violência entre diferentes facções, conflitos com o Estado, quando este tenta reprimir os membros da rede, e problemas com ex-membros ou pessoas que já foram afiliadas indiretamente. Por exemplo: Félix foi morto por conflito de duas naturezas: uma sendo o racha interno com Nadinho, seu amigo e companheiro de negócios, portador do que eu chamaria de síndrome da ganância, e a outra sendo o investimento da facção rival, a Liga da Justiça, que comandava o território vizinho, Campo Grande, e buscava, junto ao colega traíra unificar as duas milícias em uma grande rede criminal com governança sobre uma parcela significativa da Zona Oeste e, por consequência, do Rio de Janeiro num todo. Assim, Félix morrera por consequência de um conflito externo ao território e interno entre participantes ao mesmo tempo. Mas há exemplos menos óbvios desse tipo de conflito e que demonstram mais da ganância entre participantes da rede. A viúva do inspetor deveria, segundo seu depoimento à polícia civil, receber uma parcela dos lucros, mas acabou sendo posta para escanteio pela nova cúpula, como explicou no processo judicial 0044092-22.2009.8.19.0203: 

que a declarante, por direito, teria outros bens imóveis, porém foram tomados por um grupo que a declarante se insurgiu contra a cobrança de R$ 3.000,00 que deveriam ser pagos mensalmente a “Maurição” e a “Paulo Barraco”; que, com a morte de seu marido, “Dalmir” passou a tomar conta da Associação de Moradores do Rio das Pedras e, com isso, deixou de fazer o pagamento que a declarante teria direito, ou seja, R$ 10.000,00 (dez mil reais); que Dalcemir, irmão de “Dalmir”, se apropriou do terreno da estrada de Jacarepaguá, próximo ao nº 4748, que gerou o inquérito policial na 32ª DP (p. 2007)

Não obstante o golpe financeiro que, em seu depoimento e todos os outros recolhidos, passou como injustificado e motivado por pura e simples ganância, a viúva sofreu um atentado que a deixou acamada num hospital, após receber três tiros: dois no braço e um no abdômen. Motivada por raiva e rancor, a viúva decidiu, após a quase morte, contar tudo que sabia sobre a rede que seu marido comandara enquanto em vida. Sua versão se manteve a mesma por três depoimentos seguidos, detalhando o funcionamento da milícia, até que, perante o juíz, ela disse que não se lembrava do que havia dito, pois se encontrava em estado de choque e dopada por remédios. Promotores e juíz desconfiaram que ela precisou mudar o discurso após receber ameaças. Todavia, sabe-se, por meio de outros depoentes, que a versão inicial dela condizia com a percepção geral de vítimas daquela rede. Esse conflito externo ao território custou aos membros principais da milícia a paz perante a justiça, com a qual nutriam atritos, mas nunca algo tão direto quanto um processo judicial bem embasado e que serviria, na fase inquisitorial, como base para acusações da CPI das milícias, presidida por Marcelo Freixo na Alerj em 2008. A tentativa de assassinado à viúva foi também confirmada por um dos matadores, que, acuado pela possível repercussão penal, assumiu agir a mando do patronato criminal da favela.

O segundo tipo de conflito é também bem representado pela morte de Félix. Nadinho, sem conseguir apoio entre integrantes da rede que integrava, buscou patrocínio nos inimigos, mas, ainda assim, a iniciativa partiu dele, enquanto um dos chefes locais. Ele continuou a se eleger com apoio dos ex-colegas, mas passou a ser um ser irrelevante no tabuleiro local, relegado a uma concessão na existência, além de ter sofrido um atentado à vida supostamente a mando de seus ex-colegas. O amargor de uma jogada mal sucedida o levou a desabafar sobre a milícia para a CPI, cristalizando em suas palavras a icônica frase: “Toda criança de 10, 12 anos em Rio das Pedras, se você perguntar, vai responder que existe milícia” (CPI, 2008, p. 90)

O terceiro tipo de conflito é um dos mais complicados. Uma governança criminal pressupõe uso da força para instaurar parcialmente respeito e temor, o que, por sua vez, deve ser apoiado por ações comunitárias de cunho positivo (fim de assaltos, asfaltamento, festas populares etc.) para estabelecer legitimidade. A ideologia das milícias, novamente, precisa ser reproduzida pela população explorada e expropriada, para que não haja uma eventual revolta interna, seguindo, como dito capítulos atrás, uma lógica já descrita por Althusser. O uso da força, todavia, precisa ser, em território conflagrado, ainda mais intenso do que pelo próprio estado, pois este se faz um competidor com maior grau de legitimidade perante residentes do bairro, que querem ser reconhecidos enquanto cidadãos com direitos e, consequentemente, deveres. Em Rio das Pedras, o desvio de conduta poderia ser cobrado com a morte. Um caso descrito em processo ilustra perfeitamente não só essa modalidade de conflito, como a intersecção para com a primeira. Na construção do argumento acusatório, surge o depoimento de Adelmo, o irmão de Adeildo, uma vítima de homicídio da milícia. Por meio do ‘disse que’, fica transcrito que Adeildo teria contraído uma dívida com Beto Bomba dois anos antes do transcorrido no processo, e que o que começou como mil reais se transformou num problema de 30 mil em decorrência dos juros abusivos impostos pelo Major Dilo, que coordenava a agiotagem por meio da empresa de factoring que servia de fachada. Adeildo sumiu do bairro por dois anos. Tal como com bancos, o irmão do declarante conseguiu renegociar a dívida para 5 mil, mas acabou se complicando e, mesmo com a diminuição, não conseguiu liquidar o que devia. Até aqui o conflito segue num cunho de participantes versus moradores, servindo como exemplo para os que não pagarem as dívidas adquiridas com eles, mas a verdade é que há um complicador revelado na CPI das Milícias. Adelmo, o irmão do falecido devedor, era assessor parlamentar de Nadinho na câmara de vereadores. Logo, o conflito passa a envolver brigas internas, externas e com os moradores, mostrando a instabilidade da organização.

Enquanto bicheiros mantém seus acordos mesmo quando em guerra interna, como é o caso de Rogério, que cedia uma parcela dos lucros para a prima, filha de Castor e esposa de Fernando, contra o qual ele seguia batalhando, milicianos sabotaram uns aos outros e não cumpriam com os acordos estabelecidos previamente, fragilizando o laço de modo que nem mesmo a mais intensa das ameaças conseguia calar a boca de seus inimigos. Bicheiros aprenderam cedo que se deve pagar bem os afiliados e talvez melhor ainda os dissidentes. O Estado permanece fora de conflitos quando o mínimo é cumprido. Um entrevistado próximo aos bicheiros da cúpula explicou que “Rogério mantém os pagamentos porque não quer desagradar a cúpula; precisa deles para atuar em paz, eles cobram que o cara faça o básico”. É como problemas familiares normais. Enquanto o dinheiro flui na mão de todos, irmãos podem se xingar, trocar soco e talaricar uns aos outros, mas isso dificilmente os levará a abrir um processo cível. A justiça é chamada para mediar quando o bolso seca e o conflito se torna majoritariamente financeiro. Entre criminosos é similar, só muda que eles migram suas reclamações para a área criminal.

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