Gravações desmentiram versão de que homem admitiu participação em sequestro e registrou policiais pedindo para suposto gerente do tráfico de drogas para localizar vítima em cativeiro em SP; caso aconteceu em 2022
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) absolveu um homem acusado por roubo e extorsão após câmeras nas fardas de policiais militares que o prenderam desmentirem a versão de que ele admitiu participação no crime quando foi abordado na Favela do Vietnã, na zona sul da capital paulista, em 10 de agosto de 2022.
De acordo com o inquérito obtido pela Ponte, uma equipe de policiais militares foi à comunidade a fim de localizar um homem que havia sido vítima de extorsão mediante sequestro naquele dia, após terem recebido uma denúncia anônima de que a vítima foi vista sendo levada para aquela comunidade e o carro dela teria sido abandonado na Rua Conselheiro Elias de Carvalho.
No local, o veículo foi encontrado e o sargento Javson Bitencourt Nascimento declarou que, durante buscas nas imediações, viu “um indivíduo desconhecido, em atitudes suspeitas, o qual, ao perceber a aproximação policial, de posse de um aparelho de telefonia móvel, passou a dialogar com alguém, aparentemente avisando da presença da Polícia na comunidade” na Rua Atos Damasceno, que fica a cerca de 500 metros de onde o carro da vítima foi encontrado.
Ao ser abordado, o homem, que vamos chamar de Michel, não tinha nenhum objeto ilícito e declarou que atuava como olheiro do tráfico de drogas. O celular que ele estava portando tocou, Michel atendeu e disse para a outra pessoa da linha para falar com os PMs. Nos depoimentos, o sargento e o capitão Mauricio Bijarta Ferraioli declararam que a pessoa na outra linha passaria informações sobre o cativeiro onde estaria a vítima se os policiais saíssem da comunidade e liberassem Michel.
Depois que uma mulher ligou para o Centro de Operações da Polícia Militar (Copom) dizendo onde a vítima estava, a pessoa na linha do telefone teria ameaçado os policiais de morte por não terem cumprido o acordo. A vítima foi localizada na Rua Simão Rocha, que fica aproximadamente a 400 metros de onde aconteceu a abordagem. Durante as audiências no tribunal, os policiais ainda disseram que Michel assumiu informalmente participação no crime e teria indicado a localização do cativeiro.
Porém, essa versão não se sustentou depois que a Defensoria Pública pediu as gravações das câmeras nas fardas dos policiais. Nos autos obtidos pela Ponte, os arquivos dos vídeos fornecidos pela PM não estão completos e são partes de filmagens de equipamentos de três policiais diferentes. A qualidade das imagens também não está boa.
No ofício em resposta à determinação do TJSP sobre as imagens, o major Claudio Augusto Marques Biaggio, disse quem nem todos os policiais usavam câmeras por estarem trabalhando em horário de folga, ou seja, recebendo Diária Especial por Jornada Extraordinária de Trabalho Policial Militar (Dejem). Também declarou que parte dos registros não estavam mais na “nuvem” de armazenamento pelo “lapso temporal”. Esses vídeos foram entregues quatro meses depois da prisão de Michel. Não há menção se os policiais indicaram toda a abordagem como ocorrência de interesse quando subiram os vídeos para a “nuvem”, cujo armazenamento é de até um ano, ou de “rotina”, que são descartadas em 60 dias, já que a filmagem ininterrupta de 12 horas tem modos de gravação diferentes.
Contudo, nos vídeos disponíveis, é possível ouvir e ver que os policiais ameaçaram prender Michel pelo caso de sequestro, que nega envolvimento com o crime a todo o momento e não foi responsável por apontar o local do cativeiro. Os PMs pediram, via celular de Michel, a uma pessoa que parece ser responsável pelo tráfico de drogas na região para localizar a vítima do crime:
Do minuto 00:00 até o minuto 00:15 da gravação do PM indicado como aspirante a oficial Daniel de Oliveira Barbosa:
– (Michel) Sou só o campana [olheiro], senhor.
– (PM) Você faz campana e não sabe onde é o bagulho?
– (outro PM) Vamo fazer o seguinte: você vai cair nesse sequestro.
Do minuto 00:29 até o minuto 00:50 da mesma gravação:
– (PM) Você sabe onde tá o cara.
– (Michel) Não sei, só fico olhando a rua mesmo.
– (PM) Ô irmão, presta atenção aqui, o cara não vai fazer um corre dentro da favela aqui sem a anuência dos caras, certo? Então os caras sabe qual é que é, certo? Então se ele sabe qual é que é, você sabe qual é que é e você tá dentro também.
– (Michel) Não, não.
Do minuto 02:38 até o minuto 05:46 da gravação do PM indicado como aspirante a oficial Daniel de Oliveira Barbosa:
– (Voz masculina do outro lado da linha) Que que tá acontecendo aí, senhor? Fala aí que nois consegue dar uma solução (…).
– (PM) Ó, o cara do Compass [veículo da vítima] tá sequestrado. O Compass tá lá na Silva Rocha, certo? Você vai liberar o cara em 10 minutos e a gente vai ficar de boa. Se não liberar o cara, a gente vai dar um mês de prejuízo aí pra vocês, certo? Um mês a gente vai ficar dentro da favela, certo?
– (Voz masculina do outro lado da linha) (…) Ajuda nois, que nois vai ver o que pode fazer pra ajudar vocês também e deixar nois na paz, senhor.
– (PM) Vai mano, faz seu corre aí, começa a ligar aí mano.
– (Voz masculina do outro lado da linha) Não é de telefone que nois vive não, nós temos nossos meios de comunicação.
– (PM) Demorou, então a gente vai dar um tempo aí pra vocês e em 10 minutos vocês desenrolam essa fita aí?
– (Voz masculina do outro lado da linha) (…) Daqui 10 minutos nois vai voltar na linha aqui com vocês.
– (PM) Demorou, beleza. A gente vai sair fora, você faz o corre e liga pra gente. (…) 10 minutos então você vai ligar. Vou ficar com esse celular aqui, certo? (…) Agora papo reto viu mano, eu tô dando a transparência pra você. A gente vai sair da favela, vocês vão liberar o maluco. Se não liberar o maluco, vamos ficar um mês na favela e dar um prejuízo pra vocês de mais de uma milha, certo?
– (Voz masculina do outro lado da linha) Tamo no papo. Já tira todas as viaturas alojada aí senhor, que o que o senhor quer nois vai concretizar, e vai soltar o nosso (inaudível), entendeu senhor? Mas tem que tirar todas as viaturas, porque todos os cantos nois tá de olho também, igual vocês tá de olho.
Do minuto 27:17 até o minuto 27:42 da gravação do sargento Javson Nascimento:.
– (PM) Então dá os bandido pra nois, dá o sequestrador pra nois.
– (Voz masculina do outro lado da linha) Que bandido? Vocês que têm que ir atrás. (…) com o maior respeito do mundo, o senhor tá de brincadeira com a nossa cara, tio? Tá falando com o Primeiro Comando da Capital, tá de palhaçada?
– (PM) (…) Desliga essa porra e leva o cara [referindo-se a Michel].
Do minuto 27:50 até o minuto 29:00 da gravação do sargento Javson Nascimento:
– (PM) Bom, o cara é do “movimento”, os caras sabiam onde tava o sequestro, partícipe, veio passar o recado pra falar onde não tava, o cara vai entrar no sequestro também, foda-se. O cara sabia onde tava e veio dar o recado, não sabia? É da organização criminosa, vai ser preso, acabou.
– (outro PM) Chefe, posso dar minha opinião? O tráfico não tem nada a ver com o roubo. Quem fez o cara [vítima] aparecer foi o tráfico. Pra não atrapalhar o tráfico, eles deram o cara [vítima].
– (PM) Que que é isso aqui? Vamo perder essa favela pro crime organizado? O tráfico manda, o tráfico não manda no sequestro. Que que é isso? Vai levar o cara preso por organização criminosa. O cara veio dar o recado, o cara veio como porta-voz do tráfico. Que absurdo é esse? Acabou.
No 16º DP (Vila Clementino), Michel foi colocado para ser reconhecido pela vítima, que não o reconheceu pois passou a maior parte do tempo encapuzada e só viu um homem negro que o abordou no veículo. Ela disse que eram ao menos três pessoas e que foi agredida e ameaçada de morte. Além de bens, como celular e notebook, os criminosos ainda fizeram transferências bancárias de R$ 12.100,00 da vítima.
No boletim de ocorrência não há menção de que delegada Eliane Tomé Lima B. Bellagamb teve acesso às imagens das câmeras das fardas dos PMs nem consta solicitação expressa. Ela indiciou e pediu a prisão de Michel pelos crimes citando, como fundamentação, uma investigação de 2019 sobre um outro caso de sequestro, cárcere privado e estupro em que ele teria sido reconhecido pela vítima como suposto participante e que não tem relação com o caso de 2022.
O Ministério Público acusou Michel por roubo majorado (agravado por ter sido cometido com violência, grave ameaça, participação de mais de duas pessoas e por cercear a liberdade da vítima) e extorsão e também não requisitou as imagens das câmeras nas fardas. Mesmo após a PM ter concedido o acesso após solicitação da Defensoria, o que aconteceu durante as audiências, o promotor Eduardo Lopes Barbosa de Souza manteve o pedido de condenação.
Durante o processo, Michel disse que não tinha família, era morador de rua e recebia R$ 100 para ser olheiro do tráfico das 7 da manhã às 7 da noite, sendo que usava o dinheiro que ganhava para consumir drogas. Disse também que estudou até a 7ª série, o que seria o 8º ano atualmente, e não concluiu a escola porque a irmã faleceu e teve contato com drogas depois.
A juíza Fernanda Galizia Norieg decidiu absolver Michel por entender que não existiam provas de que ele participou dos crimes. Ela argumentou que “os relatos dos policiais militares trouxeram mais incertezas do que certezas quando analisados conjuntamente com as gravações das câmeras acopladas nos seus uniformes”.
De acordo com ela, como o processo não tratava de acusação de tráfico de drogas, Michel deveria ser absolvido pelas acusações de roubo e extorsão pelo princípio in dubio pro reo, que em latim significa “na dúvida, a favor do réu”.
Michel foi solto no ano passado, a sentença já transitou em julgado, ou seja, não há mais possibilidade de recurso, e o processo foi extinto.
O programa de câmeras nas fardas da PM, que passou a ser implementado de fato em 2020, tem sido alvo de ataques da gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite, que assumiram em 2023. Como a Ponte mostrou, o governo estadual deixou de investir R$ 57 milhões no projeto e não destinou verba específica para as câmeras na Lei Orçamentária Anual para 2024.
Entre idas e vindas de declarações contra o programa, tanto Tarcísio quanto Derrite já sinalizaram que não vão adquirir mais equipamentos além das 10.125 que estão em funcionamento desde 2022. Entidades de direitos humanos, pesquisadores e ativistas denunciam que o programa tem sofrido um desmonte e as ações tomadas pelo governador representam um retrocesso no combate à violência policial.
O que diz a polícia
A Ponte procurou a Secretaria de Segurança Pública sobre a conduta dos PMs, se a Corregedoria tomou alguma medida e questionou o motivo de a delegada não ter solicitado as gravações das câmeras. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, não respondeu as perguntas e mandou a seguinte nota:
O caso foi registrado como extorsão, associação criminosa e roubo pelo 16º Distrito Policial (Vila Clementino). Na ocasião, um homem de 27 anos foi abordado por policiais militares que atendiam uma ocorrência de sequestro. Durante a abordagem, o homem passou o celular aos PMs para que seus comparsas negociassem sua soltura, bem como a libertação da vítima de sequestro. Ele foi levado à delegacia, onde a autoridade decretou sua prisão seguindo todos os critérios legais. Vale destacar que, no distrito, também foi verificado que o indiciado era investigado por outros crimes (sequestro, cárcere privado e estupro), ocorridos em 2019, também na Capital. Diante dos fatos, todas as apurações necessárias foram realizadas pela autoridade policial e o relatório encaminhado, dentro do prazo legal, à Justiça.