Como funciona uma saída temporária de presas em SP

Em vez de presos planejando novos crimes, como pregam políticos que defendem o fim das saídas temporárias, a reportagem foi ver de perto como funciona uma dessas saidinhas e encontrou avós planejando fazer lasanha e estrogonofe para os netos

Penitenciária Feminina da Capital, no bairro Carandiru, em São Paulo | Foto: Catarina Duarte/Ponte Jornalismo

Márcia Regina dos Anjos, 62 anos, estava aflita. Já fazia algumas horas que ela tinha deixado a Penitenciária Feminina da Capital, no bairro do Carandiru, em São Paulo, para aproveitar a saída temporária iniciada na terça-feira (12/3). A cozinheira não conseguiu dormir, tamanha expectativa. Pensou no frango assado, na lasanha e no estrogonofe que faria para agradar aos três filhos e 12 netos, na ida à igreja e em poder dormir na própria cama. Presa há três anos, ela não sabia da trama parlamentar que pode levar ao fim das saídas. Ficou surpresa quando foi informada da situação pela reportagem. Frisou que sempre voltou ao presídio, mas conheceu quem não. “Vai de cada um”, disse. Para ela, a maioria quer curtir a família. “Eu fico com dó dessas pessoas que não saem”. 

Os deputados federais devem votar na próxima semana o PL 2.253/2022, que acaba com as saídas temporárias. Isso ocorre porque o texto sofreu modificações ao ser analisado pelos senadores. No Senado, a proposta, relatada por Flávio Bolsonaro (PL-RJ), foi aprovada em fevereiro sem entraves. Lideranças de movimentos sociais criticaram a atuação de parlamentares governistas, que foram liberados para votar como quisessem, sem oferecer oposição à pauta. 

Líder do PT no Senado, o delegado da Polícia Civil Fabiano Contarato (PT-ES) chegou a discursar em defesa do PL. “Eu não sairia daqui com a minha consciência tranquila, não votando contra a saída temporária”, disse. 

A proposta quer pôr fim às saídas temporárias em feriados e datas comemorativas. A legislação atual prevê que presos no regime semiaberto podem deixar a prisão quatro vezes por ano por um período de sete dias. Se aprovado o PL com o texto do Senado, as saídas passam a ser autorizadas apenas para estudo — caso que já é permitido na lei atual.

O principal argumento dos que pedem o fim das saídas são os presos que não voltam. Contudo, esse percentual é baixo. Em São Paulo, segundo dados da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP-SP), dos 34 mil presos beneficiados no Natal de 2023, 32 mil retornaram. O cenário se repetiu nos demais períodos do ano passado (veja gráfico a seguir).

Presa há sete anos, Valéria Cristina de Oliveira, 51 anos, fica triste com a possibilidade de findarem as saídas. O período gozado por ela pela quarta vez é aproveitado com um ritual parecido: cozinha a própria comida e aproveita para comprar blusinhas, todas pagas com o salário que recebe, frisa Valéria.

“Eu estou saindo e quero fazer um almoço. Estou com meu dinheirinho aqui guardado, do meu suor, do meu trabalho”, fala. 

Valéria se autointitula um exemplo do impacto positivo da ressocialização. Ela conta que teve contato com uma biblioteca pela primeira vez enquanto cumpria pena. Quis aprender o que significam as letras amontoadas naquele bando de livros. Conseguiu concluir o ensino médio, algo que conta com orgulho, como se estivesse com uma medalha pendurada no peito.

No regime semiaberto, quando passou a trabalhar, conseguiu comprar uma televisão e um rádio, pagando no crediário. “Antes eu achava que tinha que roubar para conseguir as coisas, mas se eu posso pagar com meu dinheiro, é tão bom, né?”, conta. 

O canal favorito de Valéria é a TV Senado. Gosta de acompanhar as pílulas educativas que contam um pouco da história do Brasil. Sabe quem é Dom Pedro I, mas desconhece Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Não se lembra de ter assistido à votação sobre as saídas temporárias. 

“Aquela pessoa que saiu, teve um monte de saidinha e voltou, que respeita os guardas. Essa pessoa tinha que ter uma oportunidade”, diz Valéria.

Outra presa em saída, Rebeca Guerra, 24 anos, concorda. “Não deveriam tirar nossa saidinha. Querendo ou não, isso serve para que a gente se adapte à sociedade. Eu sei que há pessoas que não querem, mas há outras que sim. Isso nos ajuda a reabilitar em sociedade”. 

Acompanhada pela mãe, Eliane Guerra, ela se preparava para sair dali e ir buscar a irmã mais nova na escola. O ato banal do cotidiano era extraordinário para a Rebeca, que há quatro anos está presa.

Saída na PFC

A saída temporária, que começou na terça-feira (12), é a primeira do ano pelo calendário de São Paulo. Foram 32.129 pessoas beneficiadas, 737 delas apenas na capital. Outras três estão previstas para os meses de junho, setembro e dezembro. 

Na Penitenciária Feminina da Capital, 669 pessoas cumprem pena, segundo a SAP-SP. A pasta não informou quantas saíram na terça (12).

Diante do portão gradeado com arame, familiares monitoravam com atenção a abertura da porta. “É a Jéssica?”, perguntou uma senhora ao acompanhante, um homem alto que conseguia uma visão privilegiada em meio à multidão. “Meu coração vai explodir”, disse uma jovem que também compunha a aglomeração.

Distribuição gratuita de roupas pelo grupo Por Nós em frente à Penitenciária Feminina da Capital | Foto: Catarina Duarte

Tinha quem deixasse o portão e logo fosse acolhida por um abraço demorado, muitas vezes seguido por um choro que na sequência virava sorriso. Outras corriam para os filhos perguntando: “Você lembra de mim? Lembra da mamãe?”. A frase “como você cresceu!” também foi repetida por diversas vezes dirigida a crianças que, sem saber o que responder, recorriam ao sorriso tímido.

Mas teve quem saiu sem ganhar um abraço. Algumas das mulheres fitavam a multidão na expectativa de reconhecer alguém. Márcia Regina olhou com atenção, se jogou no meio do grupo e chamou Vitória algumas vezes. A filha que viria buscá-la ainda não estava ali. A preocupação e o desespero tomaram conta das feições da cozinheira, que passou a implorar por um telefone. “Alguém pode ligar para minha filha? Eu não tenho dinheiro para pegar uma passagem”. 

Uma explosão de alegria tomou conta de Márcia quando Vitória desceu do carro de aplicativo depois de quatro horas de espera. Com ela, estavam dois netos da cozinheira. O mais novo, um bebê de sete meses, passou a ser exibido pela avó para quem passasse. “Olha como ele é lindo! O meu amor todinho”. Logo que a família se reuniu, tomou rumo para Itapecerica da Serra, onde um almoço especial seria preparado. O cardápio, frango assado, é a especialidade da matriarca. 

Com o passar das horas, a multidão em frente à penitenciária foi se dissipando. Celio, um ambulante, comemora as vendas. Ele, que costuma ficar no Parque da Juventude e faturar cerca de R$ 30 por dia, tinha liquidado o estoque. Foram cerca de R$ 300. 

O ambulante é a favor das saídas. Primeiro, porque gira a economia, segundo, porque é um direito. “Todo mundo merece uma segunda chance, né?”.

Por volta das 12h, quando um pequeno grupo ainda tentava arranjar carona ou algum trocado, Aurora seguia sentada em uma cadeira de plástico. Mãe de cinco filhos, ela nunca recebeu visita nos dez anos em que está presa. A família se comunica por cartas por não ter dinheiro para o deslocamento entre São Paulo e Araraquara. Neste período, ela ganhou um neto que conheceu por foto e perdeu a mãe. As notícias foram lidas pelas colegas de cárcere, já que Aurora não sabe ler. “Foi muito doloroso saber assim”, conta. 

Ela deixou a unidade apenas com a roupa que vestia e o RG. Muitas das detentas saíam com uma sacola transparente carregando alguns poucos objetos pessoais. Para ter mais o que vestir, o grupo recorria a uma banca de doação de peças, montada pela Por Nós, rede integrada e formada por egressas do sistema prisional. Algumas deixaram o local com sacolas rachadas de blusas, calças e vestidos.

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Além de doar roupas e oferecer um espaço para que as mulheres pudessem se trocar, o Por Nós também distribuiu kits com cremes e montou um café com bolos e pães para quem estivesse com fome. Aurora comeu e ficou ali esperando por ajuda. 

Quando as saídas encerraram, Mary Jello, 64 anos, uma das membros do Pór Nós, ajudou quem ainda não sabia para onde ir. Aurora era uma delas. O plano era chegar de surpresa na casa do filho Gabriel em Araraquara. Ela já tinha feito isso no Natal passado, quando teve a primeira saída. “Tá certa, gostoso é assim, surpresa”, incentivou outra detenta ao ouvir os planos. 

Quando finalmente conseguiu dinheiro para a passagem, Aurora passou a sorrir e distribuir abraços. Disse que voltaria para acabar logo com a pena. “Eu amo meus filhos, não vejo a hora de ir embora daqui”.

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