Exibição aconteceu neste domingo (24/3), na zona sul da capital paulista, e faz parte de projeto que contou com rodas terapêuticas e formação para familiares de vítimas do Estado
Sob forte emoção, troca de abraços e afeto, diversos familiares de vítimas da violência policial se reuniram neste domingo (24/3) para acompanhar o resultado de pelo menos um ano de trabalho: o lançamento do documentário e a distribuição de 500 cartilhas “Escute as Mães de Maio: vamos parir um novo Brasil”, na sede da Associação Cultural Recreativa Esportiva Bloco do Beco, na zona sul da cidade de São Paulo.
O filme conta com gravações feitas em diversos momentos, desde a ida de Débora Silva, uma das fundadoras do Movimento Independente Mães de Maio, ao túmulo do filho em Santos, no litoral paulista, a passeatas em Salvador (BA), trechos de audiências e eventos em que familiares discursaram e entrevistas em que contavam suas dores e dilemas. Já a cartilha é descrita como um “oráculo da luta” a fim de orientar parentes que possam vir a sofrer a perda de um ente querido pelo Estado e que não sabem por onde começar e a quem recorrer.
“Se não fossem as minhas companheiras segurando as nossas mãos, a gente talvez não existisse mais porque o Estado deixa a gente agonizando e essa força vem delas, mas muito mais dos nossos filhos, porque nossos filhos são plurais”, declarou Débora. “Quando eles passam a ser plural, as mães têm o dever de serem plural também. E a gente não pode ser mães individualistas porque nossos filhos não podem ser únicos. Eles têm que ser plurais. A gente não passa a ser uma ativista, nós não queremos ser uma militante. Nós queremos ser a transformação dessa sociedade racista, classista, homofóbica que tem no nosso país.”
“Já que falam tanto de nós, que a gente agora fale de nós também por nós mesmas”, enfatizou Rute Fiuza, do Movimento Mães de Maio do Nordeste. Seu filho, Davi Fiuza, tinha 14 anos em 2014 quando foi capturado por policiais militares em Salvador e nunca mais foi visto. “A gente acaba sabendo como lidar com a outra, como é a dor da outra e nós sabemos que qualquer recurso que vem através de qualquer projeto, nós sabemos para quem vai utilizar, que são as mães. São elas que são protagonistas.”
O projeto que foi desenhado pelas mães se deu por meio de uma emenda parlamentar aprovada em 2021 de quando o deputado estadual Eduardo Suplicy (PT) era vereador, já que o projeto de lei (PL) 734/2020 a fim de criar um Programa de Enfrentamento aos Impactos da Violência Estatal está parado na Câmara Municipal de São Paulo.
Na equipe técnica, três psicólogas e uma advogada fizeram rodas terapêuticas e oficinas de formação com as mães, sendo que o documentário e a cartilha foram o produto final desse processo.
A psicóloga Andréa Arruda Paula, que integrou o time, aponta que foram aproximadamente 12 encontros, individuais e em grupo, que aconteceram na zona leste da capital e em Santos. “A ideia era construir um espaço de apoio, um espaço seguro de fala e escuta, onde elas pudessem se sentir à vontade para dizer e também se sentir convidadas a escutar o que as outras tinham a dizer”, explica.”A gente trabalhou muito nesse lugar e a gente fazia atendimento individual também, a escuta, o clínico individual, mas pra elas o que foi determinante no projeto foi esse lugar do encontro coletivo mesmo”.
A parte da capacitação para produções em audiovisual começou na última sexta-feira (22), no lançamento do projeto “Fortalecendo o alcance e o impacto dos movimentos de direitos humanos no Brasil”, uma parceria das Mães de Maio com a ONG Conectas Direitos Humanos e o Centro Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Com duração de dois anos, as formações vão atender 100 mães e familiares de vítimas de violência, além de encontros regionais e nacionais com a participação de mães-ativistas de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Ceará, além de membros do Conectas e pesquisadores da universidade.
Edna Cavalcante, do Movimento Mães do Curió, destacou que, além das próprias narrativas, saber como produzir vídeos auxilia nas denúncias. Para ela, o projeto de escutar as mães na parte psicológica também poderia ter o mesmo formato no Ceará, já que o atendimento pleiteado pelos familiares das vítimas da Chacina do Curió, ocorrida em 2015 na periferia de Fortaleza, não atendeu às demandas.
“É uma mãe puxar a outra, né? Enquanto o Estado mata, as mães se unem para se ajudarem. Na verdade, as nossas ajudas terapêuticas sempre vêm dos coletivos, nunca do Estado. Então é uma luta muito grande. O medo e o perigo de mães se suicidarem é gigante”, alerta. “Tem um movimento Mães da Periferia que eu fundei para acolher outras mães, então o aprendizado que eu tive aqui vai agregar muito com o que eu já tenho dentro do estado do Ceará e assim sucessivamente com outras mães”.
O evento contou com uma performance do coletivo Periferia Segue Sangrando, com canções e uso de sinalizadores de fumaça vermelha representando o sangue das vítimas, e uma apresentação de maracatu do Bloco do Beco.