Sindicatos da Polícia Civil falam em desprestígio de Tarcísio e Derrite com a categoria; PL apresentado por secretário quando era parlamentar propõe ainda mais poder para as policiais militares
A permissão de Tarcísio de Freitas (Republicanos) para que policiais militares de São Paulo registrem termos circunstanciados gera tensão e preocupação. Sindicatos ligados à Polícia Civil paulista falam em usurpação da função. O grupo se sente desprestigiado pelo governador e pelo secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite. A intenção é mais uma prova do menosprezo, defendem. Para além da rixa interna, a decisão aumenta a militarização da segurança pública, o que é grave, alerta especialista ouvido pela Ponte.
A decisão foi revelada pelo Metrópoles. Segundo o portal de notícias, uma ordem preparatória prevê que praças e oficiais façam o registro. Os termos circunstanciados são destinados a ocorrências de menor gravidade – como contravenções penais e crimes com penas de até dois anos. Hoje, a atribuição de protocolar esse tipo de ocorrência cabe à Polícia Civil.
A preocupação dos sindicatos ligados à Polícia Civil é que, a partir dos termos circunstanciados, os policiais militares passem a fazer diligências, requisitar exames e apreender provas, à margem da análise de um delegado. Diferente dos boletins de ocorrência, os termos são encaminhados ao juizado especial.
“A PM não é para isso”, diz João Batista Rebouças da Silva Neto, presidente do Sindicato dos Investigadores da Polícia Civil de São Paulo (Sipesp). “O trabalho da PM é ostensivo. Quem ficará na rua no lugar deles?”, acrescenta.
João Batista chama a medida de inconstitucional. Ele defende que o artigo 114 deixa claro que é função da Polícia Civil a apuração de infrações penais. O presidente do Sipesp vê na ação e, nas falas de Guilherme Derrite, a criação de um problema entre as duas polícias. Os militares recebem um tratamento melhor, diz.
Em evento na terça-feira (16/4), Guilherme Derrite exaltou o trabalho da Polícia Militar. O secretário destacou a cooperação entre o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) e a PM na Operação Fim da Linha.
“A gente não vai só assumir, junto com o Ministério Público, o protagonismo no combate ao crime organizado, como a gente vai falar que existe um serviço de inteligência da Polícia Militar, existe um Centro de Inteligência, que produz muita análise no combate ao crime organizado”, disse Derrite.
O coronel da reserva da Polícia Militar e sociólogo Sugar Ray Robson Gomes defende a medida. Ele diz que este é um pleito antigo da corporação. O resultado, defende, será um maior dinamismo no policiamento ostensivo.
Sugar Rey usa como exemplo ocorrências de perturbação de sossego, que podem ser resolvidas de maneira mais rápida. Pela lei atual, é necessário que os envolvidos sejam encaminhados até uma delegacia. “Chega lá na delegacia, a equipe está toda empenhada em fazer o flagrante de tráfico de drogas e na fila tem um roubo. Como é que você vai fazer essa ocorrência?”, diz.
Em nota, o Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Sindpesp) diz que a fala “não foi bem digerida pela Polícia Judiciária”. O texto fala ainda em usurpação de funções da Polícia Civil, o que pode comprometer “a segurança da população”.
Sobre os termos circunstanciados, a entidade diz que recebeu a notícia com “preocupação”. A presidente do Sindpesp, Jacqueline Valadares, diz que a justificativa de que os PMs ficam muito tempo aguardando em delegacias é culpa do próprio Estado. “Essa demora, quando acontece, não é atribuída à Polícia Civil. Ela tem que ser atribuída ao próprio governo que não contrata policiais civis”, diz.
Jacqueline fala que o estado tem déficit de mais 17 mil profissionais da Polícia Civil. Isso representa 40% menos de pessoal. “Há alguns anos o plantão policial tinha equipe completa: delegado, três escrivães. investigadores. Agora tem delegacia que não tem delegado”, fala.
Militarização da segurança pública
A decisão em relação ao termo circunstanciado é um ensaio para um alvo muito maior, diz Almir Felitte, autor de A História da Polícia no Brasil: Estado de exceção permanente? (Autonomia Literária, 2023), advogado e pesquisador.
Felitte lembra do projeto de lei 2.310/2022, apresentado por Guilherme Derrite, quando deputado federal. Nele, as polícias militares, rodoviárias e penais ganham poder para investigar. Derrite chama de “ações de inteligência” a coleta e tratamento de dados por PMs. Para Felitte, isso nada mais é do que investigação.
“Eles chamam de ‘inteligência’ como um modo de disfarçar que eles estão usurpando um poder que constitucionalmente não é deles”, afirma.
A justificativa do PL cita a chacina em Varginha, em Minas Gerais, como exemplo positivo para que as PMs possam investigar. Na ocasião, 26 pessoas foram mortas em uma ação da Polícia Militar de Minas Gerais e da Polícia Militar Rodoviária. Os agentes agiram sob pretexto de desmantelar um grupo que supostamente se preparava para roubar um banco no município.
Em fevereiro, a Polícia Federal indiciou 39 policiais por crimes como homicídio qualificado, tortura e fraude processual. A Ponte revelou que uma “rifa” com indícios de irregularidades foi feita para apoiar financeiramente parte dos denunciados. Após repercussão do caso, o sorteio foi retirado do ar.
O PL encabeçado por Derrite está parado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados desde novembro do ano passado. Ele chegou a ser aprovado pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado.
Para Felitte, o projeto demonstra que a ideia de usurpar a investigação da Polícia Civil pela Polícia Militar já era plano antigo de Guilherme Derrite. O fato em questão agora são os termos circunstanciados, mas no PL, Derrite já ia além. “Isso é preocupante”, alerta o pesquisador, e caminha para uma militarização total da segurança pública.
“O Derrite, com Tarcísio, está fazendo um ensaio de uma completa fagocitose da Polícia Civil de São Paulo pela Polícia Militar”, diz Almir. No futuro, avalia, podemos ter uma Polícia Militar com maior caráter investigativo, o que deixa Almir ressabiado. “Será que nós vamos ver a volta do uso irrestrito de inquéritos policiais militares?”, questiona.
STF reconhece legalidade
Esse tipo de poder dado à PM não é alvo novo. Em 2016, sob gestão de Fernando Pimentel (PT), Minas Gerais passou a permitir que policiais militares e bombeiros elaborassem termos circunstanciados. A decisão consta na lei n.º 22.257/2016, que estabeleceu a estrutura orgânica da administração pública.
Questionado sobre a constitucionalidade pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol), o Supremo Tribunal Federal (STF) se posicionou favorável à lei de Minas Gerais. Em 2022, o ministro Edson Fachin entendeu que os Estados têm competência de dar essa permissão às polícias. Ele foi acompanhado pelos demais magistrados.
O que diz a Secretaria da Segurança Pública
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP-SP) questionando a decisão de Tarcísio e solicitando mais informações sobre o vigor da medida. Não houve retorno.