PMs são indiciados por matar e forjar confronto contra quatro jovens em Goiás

Sete policiais foram indiciados por homicídio qualificado consumado e fraude processual; investigação aponta que PMs levaram vítimas já mortas para UPA e destruíram celulares delas

Na ordem: Alex, 31, Tiago, 30, Eduardo, 25 e Acineto, 17 | Foto: Arquivo pessoal

Sete policiais militares de Goiás foram indiciados pelas mortes do adolescente Acineto Alves da Silva, 17 anos, Alex Aparecido Gomes dos Santos, 31, Eduardo Rodrigues, 25 e Tiago de Medeiros Brandão, 30. O crime ocorreu em maio de 2022 em Goiás e o inquérito foi concluído na última semana. Para o delegado Adelson Candeo Junior, os PMs apresentaram uma narrativa mentirosa de confronto. O rastreamento de uma das viaturas e do carro das vítimas apontou para uma possível execução. Os agentes também teriam “socorrido mortos”, os levando sem vida até uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), o que, para o delegado, foi feito para dificultar a perícia no local onde de fato o crime ocorreu. 

Foram indiciados por homicídio qualificado consumado e fraude processual os policiais militares Regis Moraes de Almeida, Robson Peixoto de Oliveira, Chesley Rodrigues das Chagas, Manoel Araújo da Silva, Marcos Felipe Rodrigues dos Santos, Camila Mendes dos Reis e Ricardo da Silva Souza. 

Regis, Robson, Chesley, Marcos Felipe e Ricardo também foram indiciados por coação por terem, segundo a investigação, pressionado o médico da UPA a emitir um relatório dizendo que os jovens estavam vivos ao darem entrada na unidade.

Naquela noite, segundo Ronimar Ferreira, 51, pai de Eduardo, os jovens iriam para uma festa. Em entrevista à Ponte, o publicitário celebrou o indiciamento. “Estou muito aliviado”, fala. Pai e filho trabalhavam juntos e eram muito próximos. Além da profissão, conta Ronimar, a dupla chegava a dividir peças de roupa. “Ele não era só um filho, era meu amigo”, completa. 

Os policiais militares envolvidos integram o Comando de Operações de Divisas (COD). Em depoimento, os agentes disseram que o carro das vítimas foi perseguido após ter furado um bloqueio em alta velocidade. Os jovens teriam atirado contra os PMs, que revidaram. Os quatro teriam sido atingidos por tiros de fuzil e carabina e levados com vida até a unidade de saúde. Para a investigação, nada disso aconteceu.

O relatório policial mostrou que na manhã de 21 de maio, dia das mortes, Eduardo e Acineto tiveram os nomes pesquisados pelo policial Marcos Felipe Rodrigues Santos após uma abordagem por volta das 6h da manhã próxima à cidade de Mineiros, em Goiás. Marcos Felipe é um dos PMs indiciados nas mortes. Essa abordagem não foi mencionada pela policial em depoimento. Segundo o delegado, a perícia entendeu que os PMs passaram a monitorar as vítimas pela sequência dos eventos. 

Eduardo contou ao pai e para um amigo ouvido pela Ponte que na abordagem os policiais tomaram o seu celular e mexeram no aparelho. Em depoimento à Polícia Civil, o mesmo amigo que conversou com a reportagem contou que Eduardo teria dito que achou que seria morto naquele momento.

Segundo o relatório da polícia, quando os jovens saíram de casa, os agentes do COD deixaram a base e passaram a se deslocar no mesmo sentido em que o carro onde estava o quarteto estava. Apenas uma das duas viaturas usadas na ocorrência tinha rastreador. A localização mostrou que ela chegou no suposto local de confronto, uma estrada vicinal às margens da GO-210, antes mesmo do carro dos jovens. 

Depois, quando o carro já estava no local, a viatura faz quatro viagens entre o suposto local de confronto e um ponto próximo da rodovia. Nas três primeiras vezes, o veículo permaneceu poucos minutos — sete, quatro e dois — e retomou até a estrada vicinal. Na última vez, ficou por quase 27 minutos e sai de lá em direção à UPA de Rio Verde. 

“Quatro viagens, quatro pessoas mortas e a completa impossibilidade desta dinâmica se enquadrar em um confronto armado”, escreveu o delegado no relatório.

Ação durou três horas

O carro onde os jovens estavam era da família de Eduardo. Ronimar conta que, ao saber da morte, procurou pelos dados de geolocalização do veículo. Tudo foi apresentado à Polícia Civil que, comparando os dados com os de rastreio de uma das viaturas, conseguiu remontar a dinâmica do crime.

Segundo o relatório, a linha do tempo de se deu da seguinte forma:

  • 21h: Acineto, Alex, Eduardo e Tiago saem de casa em Mineiros em direção a Rio Verde, ambos municípios de Goiás. No mesmo momento, ao menos duas viaturas do COD deixam a base e passam a se deslocar no mesmo sentido em que o carro do quarteto.
  • 22h14: o carro onde os jovens estavam, um Fiat/Palio, é desligado às margens da GO-210, “provavelmente abordado por outra equipe de policiais militares”, escreve o delegado no relatório. 
  • 22h30: a viatura rastreada chega à estrada vicinal que dá acesso ao local do confronto e, neste momento, o veículo transportado pelas vítimas se deslocava sem escolta “obviamente quem dirigia o carro deles, nesse momento, eram policiais”, disse o delegado à Ponte. Nessa altura, o veículo já tinha sido abordado pelos PMs.
  • 23h16: os dois veículos estão no local onde os policiais afirmaram ter havido confronto com os jovens.
  • 23h23: A viatura deixa o local e vai até um ponto próximo da GO-210. Sete minutos depois, ela retorna.
  • 23h37: mais uma vez, a viatura deixa o local e retorna depois de quatro minutos. 
  • 23h47: por dois minutos, a viatura policial de desloca mais uma vez.
  • Por volta da 0h10: a viatura deixa o suposto local de confronto pela última vez após permanecer ali por 27 minutos. De lá, vai em direção à UPA.

Socorridos mortos

Outro ponto contraditório em relação à versão dos PMs é o socorro às vítimas. O bombeiro militar que recebeu a ligação dos policiais contou em depoimento que recebeu uma ligação contando sobre um confronto policial. O agente que ligou pediu que o bombeiro acionasse a UPA, informando que os agentes levariam algumas pessoas baleadas ao local. Segundo o bombeiro, não houve solicitação para os socorristas se dirigirem ao local para atender a ocorrência. Ele contou ainda que não teve sucesso em falar por telefone com a sala vermelha da unidade de saúde. 

Em depoimento, três profissionais de saúde da UPA confirmaram que os jovens chegaram mortos ao local. Eles disseram que não foram realizados protocolos de reanimação e um deles afirmou que uma das vítimas foi levada direto ao necrotério. 

O médico plantonista corroborou a versão dos colegas. O profissional disse que preencheu um único relatório médico para as quatro vítimas a pedido dos policiais do COD. O procedimento comum, disse em depoimento, é a emissão individual do formulário. Os PMs também teriam pedido que o médico mencionasse que os quatro jovens chegaram com vida ao local, o que não foi questionado pelo médico.

As imagens da câmera de segurança da sala vermelha da UPA foram analisadas pela Polícia Civil. Nelas, segundo o relatório, é possível perceber o susto dos profissionais com a chegada dos PMs e dos corpos. A análise do material concluiu que não houve nenhum procedimento de emergência “após evidente ausência de sinais vitais”.

As imagens mostram ainda os policiais se aproximando do médico e o chamando para fora da sala. Ao retornar, ele passa a fazer o laudo. Esse laudo diz que os quatro estavam com pulso e que morreram na sequência por parada cardíaca e pela perda de uma grande quantidade de sangue. 

Em depoimento complementar, o médico contou que recebeu o pedido dos policiais sem conseguir analisar naquela ocasião qualquer possibilidade de se negar a atender, “ainda que soubesse que aquela informação não condizia com a realidade”.

O médico disse ainda que não sabia que o documento seria usado seria usado para qualquer procedimento ou mesmo boletim de ocorrência. Para o delegado, a estratégia de “socorrer mortos” foi usada para dificultar a realização de exame pericial no local das mortes. 

Provas destruídas 

Os celulares das vítimas não foram apresentados pelos policiais militares no momento do registro da ocorrência. Contudo, como os familiares ouvidos contaram que conversavam com os jovens por mensagem naquela noite, foram feitas buscas pelos aparelhos nos locais onde a viatura com rastreador ficou parada por algum tempo após o confronto. 

Em um dos pontos, explica o delegado à Ponte, a viatura ficou parada por três minutos à margem da rodovia onde há um córrego. Neste local, foram encontradas partes de celulares de duas das quatro vítimas, destruídas. Por meio de perícia, foi possível identificar que um dos aparelhos era o de Tiago e o outro, pelas características, poderia ser o de Acineto.

Foi feita ainda análise dos dados da quebra de sigilo telefônico de linhas nos celulares de três das quatro vítimas. O último registro feito pelos aparelhos indicou que eles estavam com os jovens no momento em que eles foram abordados pelos policiais.

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Para o delegado, não há provas suficientes para afirmar que não houve confronto policial e, consequentemente, da “impossibilidade da existência de causas justificantes para a morte das quatro vítimas pelos policiais”. 

“A morte das vítimas, sob o argumento de terem antecedentes criminais ou mesmo estarem na posse de drogas é absolutamente injustificável e diante da dinâmica apresentada, não deixaram qualquer tipo de recurso ou possibilidade de defesa às vítimas”, escreveu Adelson Candeo Junior no relatório. 

O que dizem as autoridades 

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública do Estado de Goiás (SSP-GO) e a Polícia Militar do Estado de Goiás (PM-GO) solicitando entrevista com os policiais indiciados e com porta-vozes de ambas as instituições. Também foi pedido posicionamento da SSP-GO e da PM-GO sobre o indiciamento. 

A SSP-GO, por meio da assessoria de imprensa, informou que a demanda deveria ser encaminhada para a Polícia Militar. Não houve retorno da PM goiana. O espaço segue aberto.

A defesa dos policiais não foi localizada pela reportagem.

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