Douglas de Souza Andrade, 34, foi condenado apesar de testemunha negar participação dele em crime. “Meu filho foi condenado pelo passado”, diz mãe
A vendedora Raimunda Guedes de Souza, 60 anos, luta para provar que o filho mais velho foi condenado por um crime que não cometeu. Em fevereiro deste ano, o entregador negro Douglas de Souza Andrade, 34, foi sentenciado a 18 anos de prisão por homicídio ocorrido em 2019 em Cafelândia, interior de São Paulo. O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) pediu a impronúncia de Douglas por falta de provas, o que acabou rejeitado pela Justiça.
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“Meu filho foi condenado pelo passado”, afirma Raimunda. Douglas já havia sido condenado por tráfico de drogas. Em 2021, foi preso para cumprir uma condenação de seis anos pelo crime. A ficha criminal do entregador chegou a ser citada pelo juiz na sentença.
A mãe diz que o filho não estava mais traficando quando foi detido. Douglas trabalhava como entregador e pedreiro para sustentar o filho de 11 anos junto da esposa. A família vivia em Bauru, também no interior de São Paulo.
A condenação por homicídio ocorreu com Douglas já preso. Ele foi acusado de ter participado da morte de um jovem de 19 anos. A vítima teria sido atraída até uma área de mata na cidade de Cafelândia, onde foi agredida com pauladas. A motivação do crime, segundo investigação do delegado Cláudio Padovani Filho, da delegacia do município, foi o sumiço de uma quantidade de cocaína.
Douglas se tornou suspeito por meio do testemunho de uma pessoa na fase de inquérito que, em juízo, negou saber qualquer coisa sobre o caso.
Mudança de versão
Em juízo, o delegado Cláudio Padovani Filho contou que já tinha uma linha de investigação sobre Douglas, sem detalhar qual seria ela. O entregador passou a ser citado por meio da testemunha protegida, que negou, em juízo, ter prestado depoimento sobre o caso. Apesar da negativa da testemunha, o delegado deu uma versão em que essa pessoa era amiga da mãe da vítima e foi tirar satisfação com Douglas após a morte. O entregador teria confessado o crime a ela e dito que a motivação foi a vítima ter roubado drogas que eram suas.
O delegado contou ainda ter sido abordado quando entrava na delegacia por uma pessoa recém-saída da penitenciária. Ela teria dito que na unidade ouviu um amigo de Douglas contar que o entregador cometeu o crime. Essa pessoa teria se recusado a prestar depoimento. Posteriormente, a testemunha protegida teria confirmado os fatos.
Ainda na versão do delegado, a testemunha, que estava sendo presa por outro delito, teria confessado que já foi membro da organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) e que “as pessoas lhe deviam obediência”. O delegado afirmou ao juiz que não prendeu a testemunha por isso, porque ela já estava sendo presa por outros motivos e o fato dependia de investigação. Não foram ouvidas outras pessoas que confirmassem essa versão.
Negão da Cohab
Já a testemunha protegida, em juízo, disse que não era do PCC e que, se fosse, deveria estar presa. Afirmou ainda que não tinha conhecimento algum sobre o crime, sabendo apenas o que ouviu de comentários que diziam que mataram um rapaz devido à droga. Quando foi levada à delegacia, não contou nada sobre isso, disse.
A testemunha completou contando que, no dia em que esteve na delegacia, os policiais o xingaram e disseram que ele apodreceria na cadeia. Ela também contou que não prestou depoimento perante o delegado e que não conhecia Douglas.
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Além do depoimento, foi anexado ao inquérito um áudio em que supostamente a testemunha protegida fala sobre o caso. A mensagem teria sido gravada antes do depoimento formal.
No áudio, ela não cita Douglas pelo nome ou pelo apelido Dodi, forma como ele é conhecido e citado no inquérito policial. Ela se refere à pessoa que teria ligação com a morte apenas como “Negão”. “Isso é coisa lá da Cohab lá, do Negão”, diz na mensagem.
Impronúncia
O promotor Thiago Rodrigo Cardin pediu a impronúncia de Douglas — ou seja, que ele não fosse levado a júri popular. Na manifestação, Cardin lembrou do artigo 414 do Código de Processo Penal (CPP) que dispõe sobre a impronúncia em caso de falta de indícios de autoria. Ele afirmou ser o que ocorreu no caso de Douglas: não há indícios de autoria ou participação.
Cardin destacou que a testemunha protegida negou que tivesse prestado o depoimento que incriminaria o entregador, e disse que não sabia nada sobre os fatos. O promotor complementou afirmando que nem mesmo no áudio apresentado pela Polícia Civil em que essa mesma testemunha apresenta uma versão sobre o crime, Douglas é citado.
Os depoimentos das demais testemunhas também não trouxeram elementos que atestassem a participação de Douglas no crime. “Deve-se refutar acusações infundadas ou hesitantes, sob pena de sujeitar um cidadão a julgamento por seus pares e, eventualmente, condená-lo, à míngua de qualquer amparo probatório judicial”, escreveu o promotor.
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Contudo, para o juiz Octavio Santos Antunes, a testemunha protegida deu uma versão verdadeira em solo policial, mas mudou a narração porque talvez “veio a encontrar resistência no meio criminoso” e decidiu desmentir em juízo o que disse anteriormente.
O juiz diz que Douglas é citado no áudio quando a testemunha o chama de Negão da Cohab, região onde, segundo o magistrado, o entregador comandava o tráfico de drogas.
Antunes cita na sentença condenações anteriores de Douglas por tráfico para dizer que a negativa de autoria dele deve ser tomada com ressalvas. Ele cita que, em 2018, o entregador foi preso transportando drogas de Bauru para Cafelândia e posteriormente condenado por isso a seis anos de prisão.
Antunes cita inclusive a sentença desta condenação como argumento. Um trecho que teria sido extraído do celular de uma das pessoas julgadas na ocasião dizia: “os verme acabo de descer a rua do clube de rodeio”. O juiz destacou que vermes seria uma referência para policiais e que clube de rodeio era uma região da Cafelândia.
Reforço de estigmas
A pedido da Ponte, o advogado criminalista e mestrando em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Dezidério de Luca analisou o caso. Para ele, houve uma violação do princípio da correlação, o que significa que se deve ter correlação entre o fato descrito na denúncia e o fato pelo qual o réu é acusado. “Foi justamente o que não foi obedecido neste caso”, diz.
Dezidério de Luca destaca que a mudança de versão da testemunha dá a entender que houve falsa acusação na delegacia. A retratação tirou Douglas do local do crime, aponta o criminalista.
A sentença, analisa o advogado, destaca crimes anteriores aos quais Douglas foi acusado. Para o criminalista, isso pode ter pesado na pronúncia mais efetivamente do que o que foi apurado no inquérito. Isso desloca o direito penal com enfoque nos fatos e traz para um julgamento pessoal com reforço a estigmas e rótulos.
Mãe acredita na inocência
Durante o julgamento que o condenou aos 18 anos por homicídio, Raimunda conta que o passado do filho foi exposto. Sem provas, o histórico dele serviu para auxiliar a acusação. “Eu fiquei sem chão”, disse.
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Douglas cumpre pena na Penitenciária II “Sargento PM Antônio Luiz de Souza” de Reginópolis, também no interior de São Paulo. A mãe sempre visita o primogênito. “Eu não abandono ele de jeito nenhum”, diz.
Douglas está arrasado, conta Raimunda. O filho sempre negou que tivesse participado do crime. “‘Mãe, eu juro por tudo que é de mais sagrado. Eu não tive nada a ver com isso'”, falou.
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou a a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) solicitando entrevista com os agentes públicos citados no texto. Também foi requerido um posicionamento sobre o caso para cada um dos órgãos.
O MP-SP respondeu que se manifesta nos autos. Em nota, a SSP-SP informou que:
“A Delegacia de Cafelândia investigou o caso e coletou elementos que subsidiaram o pedido de prisão preventiva do indiciado. O inquérito policial foi relatado em 26 de outubro de 2021 e enviado para apreciação do Poder Judiciário, não retornando à unidade até o momento. Outros detalhes devem ser solicitados ao órgão judicial.“
Já o TJ-SP afirmou, também por meio de nota, que:
“O Tribunal de Justiça não emite nota sobre questões jurisdicionais. Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente. O processo em questão tramita em segredo de justiça.
Esclarecemos, ainda, que os magistrados não podem se manifestar sobre processos em andamento, pois são impedidos pela Lei Orgânica da Magistratura (Loman):
‘Art. 36 (Loman) – É vedado ao magistrado:
III – manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério.’“
*Matéria atualizada às 13h46 do dia 26 de junho de 2024 para incluir a manifestação do MP-SP.