Jaqueline Evangelista Rodrigues foi transferida de cargo oito vezes após denunciar um colega. “Eu estou totalmente isolada na instituição desde 2020”, diz
AVISO: esta reportagem contém descrições de violência sexual e pode ter gatilhos.
A investigadora da Polícia Civil de Minas Gerais (PC-MG) Jaqueline Evangelista Rodrigues, 49 anos, voltava do Presídio de Vespasiano, em Minas Gerais, quando aconteceu. Em uma viatura, ela conta que um colega de trabalho pediu um beijo e depois, com a negativa, insistiu. Se não fosse o beijo, ela poderia dar outra coisa. No dia seguinte, na delegacia, o mesmo colega a teria agarrado. A denúncia, feita após meses de silêncio, resultou na condenação em primeira instância do também investigador, mas não ao fim do sofrimento de Jaqueline. Em função da queixa, ela diz estar sendo perseguida e alvo de assédio moral na instituição.
Leia também: Especial Assédios na PM: Mulheres são vítimas todos os dias
Jaqueline entrou na PC-MG em 2018. Foi alocada inicialmente para atuar no interior de Minas Gerais, onde ficou por um ano e três meses. O desejo sempre foi de voltar para a capital. Na época, ela estudava Filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com campus em Belo Horizonte, e a conclusão do curso era um dos fatores que a influenciava a querer voltar. A estudante arriscava ser jubilada.
Quando contou sobre o desejo de voltar para Belo Horizonte ao delegado da unidade em que trabalhava, os problemas começaram. Segundo ela, quando finalmente conseguiu a realocação, a investigadora estava trabalhando em uma salinha onde na unidade funcionava o Departamento Estadual de Trânsito (Detran). Não era permitido a ela investigar, nem atender telefones, relata. “Ali eu já comecei a me sentir assediada”, diz.
Em novembro de 2019, ela conseguiu ser transferida. Passou a trabalhar na Delegacia de Homicídios de Belo Horizonte. Lá, diz, foi muito recebida pelos colegas e passou a apreender o ofício. Contudo, a experiência positiva não durou muito. Quatro meses após chegar, conta que foi assediada sexualmente por duas vezes pelo mesmo investigador e colega de trabalho.
Assediada duas vezes
A primeira delas ocorreu em fevereiro de 2020. Na data, a equipe da delegacia de homicídios fez uma grande prisão. A equipe de investigadores, formada por quatro pessoas, foi dividida em dois grupos para transportar os presos até unidades prisionais. Com Geraldo Modesto Brum, Jaqueline foi entregar uma presa ao presídio que ficava em uma região mais afastada no município de Vespasiano — distante cerca de 30 quilômetros da capital, segundo estimativa do Google Maps.
Na ida até o presídio, Jaqueline diz que o colega estava estranho. “Ele ficava dando risada”, conta. Ele pediu para beijá-la enquanto voltavam para a delegacia. “Cheguei em casa arrasada. Não tive coragem de contar nem o que me acontecia no interior, como conto um assédio sexual?”, pensava.
Leia também: ‘Desespero grande’: família luta por justiça para escrivã que tirou a própria vida em MG
No dia seguinte, ela diz ter sido agarrada pelo mesmo colega na delegacia. A investigadora estava na cozinha da unidade, fazendo café, quando foi alvo do assédio. Ela diz ter ficado tão nervosa que derrubou o líquido no chão.
Os colegas de trabalho notaram que Jaqueline mudou após o assédio. Apesar de não saberem o que havia ocorrido, perceberam uma alteração no comportamento. Ela só contou o que aconteceu depois de um tempo e apenas ao chefe da equipe em que trabalhava. Implorou que ele não deixasse que ela ficasse sozinha com o investigador. Também pediu que o caso fosse um segredo, já que temia não ser levado a sério. “A polícia é machista. Ninguém vai acreditar em mim”, pensou.
Dias depois, o chefe de Jaqueline morreu. O luto se misturou com um desespero. A possibilidade de a posição de liderança ser ocupada pelo colega assombrou a investigadora.
Os colegas estranharam que ela não quis voltar ao serviço. Insistiram para saber o que aconteceu. A polícia disse apenas que não trabalharia com o investigador. Mesmo sem saber do caso, um sinal de alerta acendeu na delegacia.
Leia também: ‘A Polícia Militar te adoece até que você se mate ou mate seu comandante’
Quando retornou ao trabalho, ela contou sobre as duas situações de assédio e diz ter sido acolhida pelos colegas e pelo delegado titular, Alexandre Oliveira de Fonseca. A investigadora destaca que o caso dela foi diferente da escrivã Rafaela Drumond, 31.
Rafaela trabalhava na delegacia de Carandaí, também em Minas Gerais, e depois da sua morte, uma série de denúncias feitas por ela de assédio sexual, moral e sobrecarga de trabalho foram reveladas.
Importunação sexual
Em depoimento prestado em juízo, o investigador Geraldo negou que tivesse cometido o crime. Disse que se afastou do Departamento de Homicídio e se dispôs a entregar o seu celular.
Para o juiz Milton Lívio Lemos Salles, da 4ª Vara Criminal da Comarca de Belo Horizonte, Geraldo não explicou os fatos e nem o porquê de Jaqueline o acusar. “Diante disso e por estar isolada nos autos, a narrativa do réu se demonstrou inverossímil frente às provas firmes e coesas carreadas”, escreveu.
Jaqueline contou que, na primeira situação de assédio, por estar distante da delegacia e em um local de mata, passou a segurar a própria arma. O investigador teria passado o resto do trajeto sorrindo e, em determinado momento, teria dito que ela iria com ele para onde quer que ele quisesse.
Na delegacia, no segundo caso de assédio, o investigador teria puxado pela cintura e a cheirado. Desvencilhando-se do policial, Jaqueline deixou o café cair e demonstrou nervosismo. “Se tá nervosa é porque gostou”, teria dito Geraldo.
O delegado responsável pela Delegacia de Homicídios, Alexandre Oliveira de Fonseca, chefe de ambos, disse que, ao questionar Geraldo, o policial teria dito que pediu um abraço para Jaqueline e, na situação do café, teria esbarrado.
Leia também: Investigador denuncia perseguição na polícia após se manifestar contra Bolsonaro
Na sentença, o juiz pontua que Jaqueline trouxe testemunhas que também contaram terem sido vítimas de assédio por parte do policial Geraldo.
Em 15 de maio, o investigador foi condenado em primeira instância pelo crime de importunação sexual a um ano e dois meses de prisão em regime aberto. A decisão cabe recurso.
Assédio moral
Após denunciar o assédio, Jaqueline afirma que passou a ser perseguida internamente por superiores na Polícia Civil. “O pior não foi o assédio sexual que sofri, mas a sucessão de assédios morais que venho sofrendo”, diz.
A investigadora conta que a então chefe do departamento de Homicídios, Letícia Gamboge Reis (e atual delegada-geral da Polícia Civil de Minas Gerais), teria dito que a policial passaria a fazer trabalho administrativo sob justificativa de proteção. “Isso para mim é uma punição”, afirma.
Ela acusa Letícia de sobrecarga de trabalho. Segundo Jaqueline, ela passou a ser trocada de setor com frequência. A sensação era de que a investigadora não estava sendo protegida, mas sim alvo de punição pela denúncia que fez. “Eu estou totalmente isolada na instituição desde 2020”.
Leia também: Sob Tarcísio, suicídio de PMs bate recorde em SP e faz duas vezes mais vítimas do que homicídios
Quando denunciou o assédio, Jaqueline trabalhava na 2ª Delegacia de Investigação de Homicídios (DEH) no bairro Barreiro, em Belo Horizonte. A unidade faz parte do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). Após denunciar, foi colocada no setor de Estatística e depois passou a auxiliar a escrivã com os inquéritos que estavam parados. Jaqueline foi realocada mais uma vez para o setor de Protocolo. Depois, mais uma troca: ela passou a trabalhar na delegacia de Venda Nova.
As mudanças continuaram. A investigadora também foi realocada a trabalhar na 1ª Delegacia Centro, onde passou a trabalhar na Superintendência de Informações e Inteligência Policial (SIIP). Com a mudança na gestão, foi mudada mais uma vez para a delegacia virtual. Ao todo, foram oito setores. “Eu estou rodando a instituição inteira desde que denunciei o assédio sexual”, diz.
Resolução da policia
A resolução 8.169/2021 da Polícia Civil de Minas Gerais institui uma Política de Prevenção e Combate ao Assédio. Nela é descrito que assédio é todo tipo de “conduta de agente público de conotação sexual praticada contra a vontade de alguém, sob forma verbal, não verbal ou física, manifestada por palavras, gestos, contatos físicos ou outros meios, com o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”.
A resolução fala também sobre a realocação de servidores alvo de assédio. No artigo 17, é dito que a realocação pode ser prescrita pela Diretoria de Recursos Humanos e pelo Hospital da PCMG à Chefia da PCMG, mas deve contar com a anuência da pessoa alvo do assédio.
Abalada com a situação, ela conta ter tido seu pedido de atendimento psicológico negado pela Polícia Civil. Jaqueline diz que, por meios próprios, já não tinha mais condição de arcar com os custos desse atendimento.
Jaqueline tem 19 avisos entre sindicâncias, diligências e inquéritos tratando do caso registrados na Corregedoria da Polícia Civil. Alguns tratam da situação do assédio diretamente e outros sobre o assédio moral que ela vem sofrendo. Em uma das diligências preliminares (280.597), ela reportou constrangimento e exposição que atribuiu à chefe da polícia.
Ciclo de violência
Andrea Carvalho, pesquisadora da Human Rights Watch Brasil, afirma que quando vítimas de abusos não recebem apoio social e institucional adequados, elas podem enfrentar estigma, constrangimento e questionamentos indevidos.
Além do impacto na vida dessas vítimas, há também repercussão no enfrentamento da violência de gênero de forma mais ampla, defende Andrea. Isso porque as vítimas podem sentir-se desencorajadas a buscar ajuda e denunciar agressões, contribuindo para a subnotificação dos casos.
“Sem denúncia e sem a resposta institucional adequada, cria-se uma atmosfera de impunidade e perde-se a chance de interromper o ciclo de violência”, diz.
Assine a Newsletter da Ponte! É de graça
A pesquisadora diz ainda que casos como o de Jaqueline prejudicam a imagem da Polícia Civil. Quando há uma falha em investigar e prevenir casos como esse na instituição, há uma quebra de confiança que pode afastar quem queira denunciar.
“Em um país com problemas graves relacionados à saúde mental de policiais, inclusive índices alarmantes de suicídio, isso é muito preocupante”, afirma.
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou a Secretaria da Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais, a Polícia Civil do mesmo estado e os agentes públicos citados no texto. Não houve retorno até a publicação. O espaço segue aberto.
No caso do investigador Geraldo Modesto Brum, a reportagem acionou o advogado Thiago Felício Ferreira Sellera. O defensor foi quem advogou pelo investigador no caso de importunação sexual. Não houve retorno.