Operação Escudo transformou vingança policial em política de governo

Com respaldo do governador Tarcísio de Freitas e do secretário Guilherme Derrite, policiais se sentiram à vontade para cometer crimes sem capuz, afirma a socióloga Camila Vedovello

O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite em evento na Rota | Foto: Reprodução/Facebook

As vinganças policiais não são uma novidade na história do Brasil. Após o assassinato de um policial, a chance de um civil ser morto pela polícia no mesmo dia é de 1.150%, segundo uma pesquisa da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). No dia seguinte, 350%. Porém, se antes a formação de grupos de extermínio — como os esquadrões da morte da ditadura militar ou os Highlanders do início dos anos 2000 —, se dava pela atuação de determinados grupos de policiais, com a Operação Escudo, que agora completa um ano, os agentes ganharam apoio explícito do governo.

A avaliação é da professora e doutora em sociologia Camila Vedovello. “Antes a gente pode dizer que tinha uma vingança dos agentes. Agora é uma vingança legitimada pela própria instituição, de uma forma muito mais pública”, analisa. Para a socióloga, quando uma operação policial deixa tantas mortes como a Escudo e os governantes manifestam apoio explícito a essas práticas, se trata de uma “chacina institucionalizada”.

Leia a cobertura da Ponte sobre a Operação Escudo

Vedovello é autora de uma tese de doutorado em que analisa as chacinas ocorridas na capital e na região metropolitana de São Paulo, de 1980 a 2020, e esmiúça a construção social dos chamados homicídios múltiplos e as mobilizações de familiares de vítimas, jornalistas, agentes de segurança pública e movimentos de familiares sobre os sentidos atribuídos ao que se considera ou não enquanto chacina.

Para a socióloga, não basta apenas a contagem numérica de três assassinatos ou mais num mesmo local para configurar o termo, mas a conotação política. É o caso, por exemplo, da denominação de “chacinas policiais” no lugar de “operações policiais”. “A ideia da operação vem meio para dar um verniz de legitimidade para determinadas formas de produção de morte”, explica.

Vingança como política

A Operação Escudo foi lançada na Baixada Santista, em 28 de julho do ano passado, pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e pelo secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, a Operação Escudo, como uma reação ao assassinato de um soldado da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), força especial da PM paulista, ocorrido um dia antes. Ao longo de 40 dias, a operação matou 28 moradores de bairros pobres da região. Seis meses depois, em fevereiro deste ano, o governo lançou uma segunda edição desta ação, conhecida como Operação Verão, que se mostrou ainda mais sangrento, com 56 mortes. Tudo isso em meio a inúmeras denúncias de execuções, torturas e outras violações de direitos humanos.

Ao longo de todo o massacre, Tarcísio e Derrite nunca deixaram de apoiar publicamente os crimes cometidos por suas polícias. Seus discursos afirmavam que as mortes na operação eram “efeito colateral” e que “não houve excesso”, alegando que denúncias de violações de direitos humanos eram “narrativas”. Durante a Operação Verão, Tarcísio demonstrou menosprezo pelas denúncias ao dizer que o “pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”.

O apoio oficial, na visão de Vedovello, deu um novo cara para os crimes cometidos pelos policiais, que até então procuravam se mascarar ao cometer abusos, ainda que expondo sinais de ação policial para mandar um recado. “Era quase como um jogo de ‘mostra e esconde’. Os agentes de segurança pública utilizavam capuz, mas deixavam mostrar o coturno. Utilizavam carros que não tinham identificação, mas, ao chegar nos locais, gritavam ‘é a polícia’, perguntavam quem tinha passagem”, elenca.

Com a Escudo, os abusos estatais passam por um processo de “desencapuzamento”, como se a partir de agora a PM se sentisse à vontade para cometer crimes de cara limpa.

Exemplos de chacinas encapuzadas foram os Crimes de Maio de 2006, quando policiais e grupos de extermínio paramilitares — que testemunhas e outros indícios apontam serem formados também por policiais — mataram 505 pessoas e foram responsáveis pelo desaparecimento de outras quatro. As mortes foram uma vingança contra os ataques da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), que mataram 59 agentes públicos, entre policiais, guardas civis e policiais penais.

Leia também: O que é uma chacina?

Outro exemplo é a Chacina de Osasco e Barueri, a maior do estado de São Paulo, que deixou 23 mortos em 2015. Segundo as investigações, os assassinatos foram praticados para vingar a morte do PM Admilson Pereira de Oliveira, em 8 de agosto de 2015, e do GCM de Barueri Jeferson Luiz Rodrigues da Silva, no dia 13 do mesmo mês.

Para Vedovello, a morte como capital político, associada à falta de responsabilização, escalou esse cenário em que as operações Escudo e Verão aconteceram, num intervalo tão curto e tão letais. “Essa perspectiva vem desde a ideia racista de ‘bandido bom é bandido morto’ a um ganho político a partir dessas ações de morte. Se a gente for remontar desde o Carandiru, quando o Coronel Ubiratan se candidatou com o número 111, a gente já via essa politização das mortes para um ganho eleitoral. Mas eu acho que as polícias, nos últimos tempos, têm levado isso muito mais profissionalmente a sério e essa ideia da vingança enquanto uma prática. Passa da ação policial para uma ação talvez mais de Estado”, avalia.

A especialista se refere ao coronel Ubiratan Guimarães, que no dia 2 de outubro de 1992, liderou a tropa que invadiu a Casa de Detenção de São Paulo, onde 111 presos foram mortos pela Polícia Militar. Em 1997, o oficial da PM paulista se candidatou a uma vaga na Assembleia Legislativa de São Paulo pelo PPB (hoje PP). Ubiratan utilizou o número 111 em sua campanha, mas afirmava que não fazia alusão a quantidade de pessoas mortas no Carandiru e sim à numeração do cavalo que utilizava quando foi da cavalaria da PM. Naquela eleição, ele não conquistou a vaga de deputado estadual e ficou como suplente. Em 2006, ele foi assassinado no mesmo ano em que tinha sido absolvido das acusações.

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O Massacre do Carandiru e a Operação Castelinho, em 2002 com 12 mortos, tinham sido, até então as únicas operações oficiais da PM que poderiam se configurar como chacinas, segundo Vedovello.

A socióloga considera que, enquanto não houver responsabilização dos criminosos fardados, essas chacinas ficarão cada vez mais corriqueiras. “Esse tipo de operação teria que ser colocada na ilegalidade. Na verdade, ela não pode acontecer. Antes, quando era mais velado, os agentes se antecipavam e conseguiam driblar as investigações. Então, o esclarecimento de todas as mortes é um caminho imprescindível. É extremamente complicado no sentido de que, se isso vira uma política de Estado, a gente vai ver isso no nosso cotidiano, com conflitos que podem aparecer aí em qualquer outro lugar do estado de São Paulo”, diz.

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