Jovem negro é morto pela PM e Defensoria denuncia mau uso de câmeras nas fardas

David Marinho foi morto em uma abordagem quando passava virada de ano em baile funk na zona leste da capital paulista; equipamento de parte dos policiais estava desligada ou registrava apenas o pé de um deles

David Marciano Marinho tinha 23 anos | Foto: arquivo pessoal

Em menos de um ano, a cabeleireira e manicure Luciane Aparecida Marciano, 48 anos, foi vítima duas vezes da pior dor do mundo. No ano passado, um de seus filhos foi morto pelo padrasto durante uma discussão. Já o outro de seus três filhos, David Marciano Marinho, 23, morreu na primeira madrugada de 2024, baleado durante uma abordagem da Polícia Militar no bairro de Cidade Tiradentes, na zona leste da cidade de São Paulo.

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David era considerado foragido da Justiça por ter deixado de comparecer ao fórum criminal enquanto cumpria pena, em regime aberto, por roubo e receptação. Para a mãe, ele foi vítima de uma injustiça. “Meu filho tinha que ter sido preso, não morto”, lamenta.

A Defensoria Pública vê sinais de possível manipulação das câmeras corporais dos policiais, já que o equipamento estava desligado ou apenas filmava o pé dos envolvidos.

Última vez

A última vez em que Luciane e David estiveram juntos foi durante as celebrações de Natal do ano passado. Na época, pediu que o filho regularizasse sua situação no Foro de Poá, na Grande São Paulo, onde deveria comparecer a cada três meses. Após cumprir parte da sentença atrás das grades, em 2022, o jovem conseguiu progredir para o regime aberto, mas desde março de 2023 havia deixado de ir ao fórum.

“Teve um dia que ele foi até o fórum de bermuda e não autorizaram ele a entrar. Ele foi para casa trocar de roupa, mas não deu tempo de voltar”, afirma a mãe. “Desde então, ele não quis mais ir, com medo de ser preso”.

David morava com a mãe e outros dois irmãos, mas também frequentava casas de amigos no bairro de Cidade Tiradentes. “Na maioria das vezes, ele ficava por lá”, lembra Luciane.

Ameaça

Em outubro do ano passado, a juíza da execução penal expediu mandado de prisão contra David após não terem conseguido intimá-lo para justificar as ausências no fórum.

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A cabeleireira denuncia que soube por moradores do bairro que David teria sido abordado num quiosque pela PM em 30 de dezembro de 2023, dois dias antes de ser morto, e ameaçado de morte. “Levantaram o boné dele e um deles perguntou pro outro: ‘é esse aí, Steve [gíria de policiais militares para se referir a um colega]?’ E o outro disse que sim. Daí esse policial falou ‘aproveita que você vai ver só até os fogos porque eu vou voltar e te matar'”, relata.

Foto de suposta abordagem contra David e outros rapazes dois dias antes de ele ser morto e frame de câmera de segurança com identificação da viatura | Fotos: reprodução

Luciane conseguiu trechos de uma câmera de segurança na Rua Moisés de Coreana em que aparece uma viatura que, segundo ela, teria feito a abordagem. O carro de polícia traz a inscrição M-28003, que significa que são policiais do 28º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M). Segundo ela, David é o que usa blusa preta entre os rapazes enquadrados que aparecem de costas. “Se eles abordaram meu filho nesse dia, por que não prenderam?”, questiona a mãe. O quiosque fica a 350 metros de onde David foi baleado.

Câmera na farda filmando pé

David passou virada do ano em um baile funk da Cidade Tiradentes. Dois jovens, de 19 e 20 anos, que foram ouvidos como testemunhas, disseram que passaram na Rua Apóstolo Simão Pedro, próxima ao baile, quando viram um rapaz desconhecido urinando na rua e que resolveram questioná-lo por considerarem uma falta de respeito com os frequentadores.

De acordo com as testemunhas, o amigo desse rapaz, que seria David, teria colocado a mão em uma bolsa que levava a tiracolo e segurou uma arma, sem sacá-la. Em seguida, passaram a discutir até que David teria sacado o revólver. Os dois jovens afirmaram que neste momento apareceu uma viatura da PM e ouviram os policiais gritarem “larga a arma” e dispararem em sequência. O rapaz que estaria com David teria fugido.

No 49º DP (São Mateus), da Polícia Civil, quem deu a versão da Polícia Militar foi o Guilherme Inacio Neris do Carmo, que não participou da abordagem. Ele disse que o soldado Emerson Venturim da Silva, o cabo Ronaldo Baltes Serafim da Paz e o tenente Rene Kedis Dias da Silva, do 28º BPM/M, estavam em patrulhamento quando viram o momento da discussão, saíram da viatura e ordenaram que David largasse a arma. David não teria obedecido e ainda teria apontado a arma em direção aos policiais, que atiraram. Cada PM teria disparado três vezes.

Leia o que a Ponte já publicou sobre câmeras nas fardas

Eles estavam na viatura M-28004, da mesma companhia e batalhão da viatura que teria abordado David naquela semana.

Tanto as armas dos PMs quanto o revólver atribuído a David, de numeração raspada, foram apresentadas na delegacia pelos próprios policiais, em vez de serem sido recolhidas pela Polícia Civil no local. Os PMs alegaram que tiveram de recolher a arma do local devido a “tumulto na região”, por causa do baile funk.

Segundo o laudo necroscópico, a vítima recebeu quatro tiros por trás: um na nuca, dois nas costas e um no cotovelo direito.

A defensora pública Andrea Castilho Nami Haddad Barreto, que representa a mãe de David, teve acesso às câmeras das fardas usadas pelos PMs. Ela descreveu no inquérito que houve mau uso dos equipamentos pelos policiais, já que a câmera do tenente Renê estava desligada por falta de bateria no momento da abordagem, a câmera do cabo Ronaldo não estava com o áudio acionado e a do soldado Emerson estava filmando os pés do policial.

Andrea Barreto ainda chamou a atenção para o relatório do funcionamento da câmera do tenente Renê, o qual indicaria que a câmera estava com carga na bateria antes e depois da abordagem, mas não no momento da ação.

Reprodução do laudo necroscópico de David, em que OE significa “orifício de entrada” e OS “orifício de saída” | Foto: Polícia Técnico-Científica

Andrea acredita na possibilidade de abuso e por isso pediu uma série de diligências, como perícia nas filmagens das câmeras corporais. “De qualquer forma, pelas imagens analisadas é possível verificar que provavelmente os disparos continuaram com a vítima já caída no chão, o que também demonstra uso irregular da força pela polícia”, escreveu.

A defensora também solicitou cópia da comunicação dos policiais à rede rádio, a apuração sobre a denúncia de ameaça contra David e atuação da Corregedoria da PM, entre outros pedidos.

O delegado titular do 49º DP, Bruno Ricardo Cyrilo P. M. Cogan, também tinha solicitado as imagens das câmeras nas fardas, que ainda não foram incluídas no inquérito, e informações sobre pesquisa dos dados pessoais de David no sistema da polícia no dia 30 de dezembro de 2023. Os familiares de David e uma amiga dele que estava no baile funk, mas não viu a abordagem, já foram ouvidos. Os PMs ainda não prestaram depoimento.

O que dizem as autoridades

A Ponte pediu entrevista com os PMs envolvidos e fez questionamentos sobre a investigação e a denúncia de abordagem contra David dois dias antes da morte dele. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, não concedeu a entrevista e enviou a seguinte nota:

Um inquérito policial está em andamento pelo Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), que realiza as diligências necessárias para a conclusão das investigações. A Polícia Militar também apura todos fatos relacionados ao caso.

Vale ressaltar que todos os casos envolvendo morte decorrente de intervenção policial são rigorosamente investigados  pelas polícias Civil e Militar, com acompanhamento das corregedorias, do Ministério Público e do Poder Judiciário.

Também procuramos o Tribunal de Justiça de São Paulo sobre a mãe de David ter dito que ele foi impedido de entrar no fórum por usar bermuda. A assessoria informou em nota que “nenhuma pessoa é impedida de adentrar nas dependências do Fórum de Poá em virtude de suas vestimentas. Essa postura sempre foi adotada para não constranger o cidadão”.

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