Preso desde abril, soldado Felipe Nunes mudou versão sobre disparo acidental e disse que atirou em legítima defesa contra Tiago Batan, morto em fevereiro em Paraibuna (SP). Câmeras de segurança registraram a abordagem
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) determinou que o soldado Felipe Nunes dos Santos seja levado a júri popular pela morte do ajudante-geral Tiago Henrique de Oliveira Batan, de 27 anos, que foi agredido e baleado em uma abordagem durante as festividades do carnaval de rua de Paraibuna, no interior paulista, em fevereiro.
Na decisão assinada em 14 de agosto, o juiz Pedro Flavio de Britto Costa Junior entendeu que o policial deve ser julgado por um conselho de sentença formado pela sociedade civil por se tratar de um crime doloso (com intenção) contra a vida. No caso de qualquer outro tipo de crime, inclusive homicídio sem intenção de matar, ele seria julgado pela Justiça Militar. O magistrado argumentou que não ficou demonstrado que Nunes agiu em legítima defesa para ser absolvido sumariamente.
Leia aqui a sentença de pronúncia
Contudo, ele não acatou integralmente o pedido do Ministério Público, ao retirar da acusação o agravante de “recurso que dificultou a defesa da vítima”, por compreender que Tiago não foi agredido de “surpresa” por Felipe e seu colega de farda, o cabo Carlos Eduardo Pedroso. Com isso, o soldado responde por homicídio doloso com agravante por emprego de arma de uso restrito, pois o PM utilizou uma pistola de propriedade do Estado. Cada agravante (chamado também de qualificadora) aumenta a pena do crime. No caso do homicídio, quando a pena simples é de seis anos de prisão, ela pode subir para 12 a 30 anos.
À Ponte, Eduardo Camargo, que é advogado dos parentes do ajudante-geral, disse que a família “recebeu com satisfação a notícia sobre a decisão de pronúncia, e confiam que será feita justiça em relação aos fatos que acarretaram a morte de Tiago, estando crentes que a sociedade, através do Tribunal do Júri, considerarão as inequívocas provas sobre os fatos”.
Preso desde abril, Felipe Nunes mudou parte da sua versão durante as audiências. À Polícia Civil, ele declarou que, após as agressões de Tiago contra ele e o cabo Carlos Pedroso, acabou dando um disparo acidental ao dar um golpe no ferrolho da pistola, que é a parte superior da arma, e que não tinha a intenção de puxar o gatilho. Já perante ao juiz e à promotoria, disse que “foi mal orientado por seu defensor para seguir esta tese, mesmo não concordando com ela” e que atirar era o único meio para defender a si e ao colega.
Leia também: PM é preso por matar jovem negro durante carnaval no interior de SP
O advogado Mauro Ribas, um dos que passaram a representar o policial, afirmou que não pretende recorrer da decisão e que vai provar que o cliente atuou em legítima defesa no júri. “A vítima, Tiago Batan, que se colocou nessa situação. Naquele dia, ele assediou mulheres, ele tentou agredir pessoas e, por fim, agrediu os policiais militares, colocando em risco a vida dele e todos que festejavam o carnaval”, declarou.
Já o colega de Felipe Nunes, Carlos Eduardo Pedroso, foi denunciado por violência arbitrária, por ter participado das agressões contra Tiago e responde à acusação em liberdade e em processo separado.
Relembre o caso
Tiago Batan foi morto em 11 de fevereiro após uma abordagem do soldado Felipe Nunes e do cabo Carlos Pedroso durante o carnaval de rua. Segundo a investigação da Polícia Militar, quatro pessoas, sendo três homens e uma mulher, disseram que os policiais foram chamados porque Tiago estaria alcoolizado e teria iniciado uma discussão com o namorado de uma mulher depois de assediá-la e dito “essa eu queria provar”.
Esse momento não consta nos dois vídeos anexados no inquérito da Polícia Civil, provenientes de uma câmera de segurança do Mercado Municipal e outra da Prefeitura, localizadas próximo à Praça Manoel Antonio de Carvalho, que foram obtidas pela Ponte. Essas pessoas também não foram formalmente ouvidas em delegacia nem em juízo.
No vídeo do mercado, é possível ver Tiago, sem camisa, caminhando pela rua. Ele para e vira de costas, parecendo ter sido chamado pelos PMs que estão mais atrás e caminham na direção dele. A câmera do mercado, que é móvel, amplia o enquadramento da imagem até onde os três estão.
Os três aparecem conversando, momento em que Tiago chega a levantar os dois braços para cima, com a camisa em uma das mãos. Nesse momento, o soldado Felipe Nunes bate com a tonfa (um tipo de cassetete) na altura da barriga do jovem. Tiago levanta os braços mais uma vez e Nunes o agride de novo com a tonfa. O cabo Carlos Pedroso também passa a agredi-lo com a tonfa.
É possível ver que Tiago tenta revidar com um soco e a câmera se movimenta novamente em direção a um poste, tirando o campo de visão do que acontece entre os três. A câmera da prefeitura, que está mais diante, mostra que o jovem revida com socos para cima do soldado.
A câmera do mercado mostra Felipe Nunes sem tonfa e pegando sua arma enquanto Pedroso continua batendo em Tiago. Em determinado momento, depois de se afastar, Nunes se aproxima, aponta a arma e é possível ver um clarão do disparo. Tiago cai no chão, próximo ao poste, e ainda recebe mais um golpe de tonfa de Carlos no braço.
O ajudante-geral levou um tiro no peito. Ele foi socorrido pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), mas já chegou morto à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Paraibuna.
No dia, os PMs não se apresentaram na delegacia. Quem relatou a ocorrência foi o policial Ronaldo Alexandre Diniz, que não participou da abordagem. Ele disse, sucintamente, que a dupla foi acionada por populares por causa de uma briga, sendo que Tiago agrediu o soldado Nunes que, por sua vez, “para se defender teria efetuado um disparo com sua arma”.
A pistola que Nunes usou também não foi apreendida na delegacia. Diniz disse que o Comando da PM fez a apreensão. Com Tiago, segundo o policial, havia 2,85 gramas de maconha.
Em depoimento na Polícia Civil, Nunes relatou que um grupo de pessoas disse que um homem sem camisa estaria chamando os demais para uma briga, mas o orientou a não dar atenção porque teria reconhecido Tiago e, segundo ele, “sabia do histórico de agressividade dele”. O soldado afirmou que, mesmo assim, o grupo teria retornado e dito que Tiago continuava importunando e que assediou a namorada de um deles e, por isso, comunicou ao seu superior que ele e o cabo iriam intervir.
Quando foram em direção ao ajudante-geral, Nunes disse que Tiago passou a caminhar para se afastar gritando “vai tomar no cu, não quero falar com vocês não, nem de polícia eu gosto”. Ao realizarem a abordagem, Nunes disse que Tiago “se mostrou ainda mais agressivo” e continuou com xingamentos. Ele disse que, por isso, pediu para o jovem colocar as mãos na cabeça, mas ele não teria obedecido porque “apenas levantou a mão, mas não entrelaçou os dedos” e ainda teria dito que “quebraria quem chamou a polícia e que quebraria os policiais”. Nesse momento, Nunes afirma que, “percebendo uma desobediência, utilizando força moderada, desferiu dois golpes de tonfa”.
Com isso, prossegue o policial, Tiago passou a dar socos e o atingiu no rosto. O cabo Pedroso passou a dar golpes em Tiago para, segundo ele, “estancar as agressões”. Já próximo do muro do mercado, Nunes disse que Tiago conseguiu arrancar sua tonfa e jogar no chão, sendo que, enquanto Pedroso continuava a agredir o jovem, restou a ele “apenas sacar a sua arma, posto que estava sem o cassetete, e ordenar que o implicado parasse com a injusta agressão, pois seu objetivo era conduzir Tiago à delegacia por desobediência e desacato”.
O soldado disse, em sua primeira versão, que acabou dando um disparo acidental ao dar um golpe no ferrolho da pistola, que é a parte superior da arma, e que não tinha a intenção de puxar o gatilho. E argumentou que tanto não queria efetuar o disparo que o tiro quase se deu pelas costas do colega, o qual não percebendo que Tiago tinha sido baleado, ainda deu um golpe de cassetete. Nunes disse também ter acreditado que Tiago poderia ter pegado a arma do colega.
O cabo Carlos Pedroso disse, inicialmente no inquérito da PM, que Tiago tentou tirar sua arma, mas em depoimento à Polícia Civil explicou que fez essa declaração porque Nunes o perguntou se o jovem tinha feito isso e por isso acreditou que o colega tenha visto algum movimento da vítima que não percebeu, já que, no dia seguinte, Nunes disse ter disparado acidentalmente e que estava arrependido.
O cabo, que deu uma versão praticamente idêntica à do colega, disse que mandou Tiago parar de resistir e que, em determinado momento, o viu cair no chão. Pedroso alegou que não ouviu o disparo e não percebeu que o jovem tinha sido atingido, por isso deu o outro golpe de tonfa. Depois, percebeu que a vítima estava sangrando e acionaram o resgate.
Com base nas imagens, o delegado Rafael Pellizzola indiciou o soldado Felipe Nunes por homicídio qualificado com emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido. Para ele, quem agiu em legítima defesa foi Tiago ao tentar se desvencilhar das agressões.
Assine a Newsletter da Ponte! É de graça
A promotora Julisa Helena do Nascimento teve o mesmo entendimento e pediu a prisão de Felipe Nunes, citando o fato de que ele e o cabo Pedroso estão sendo investigados em outros três inquéritos por suspeita de prática de violência, incluindo tortura, agressão, provas forjadas e invasão de residência em 2023. Por isso, segundo ela, o soldado poderia ameaçar ou influenciar testemunhas como teria feito com o cabo Pedroso. A promotora também acusou o cabo de violência arbitrária, mas não pediu sua prisão.
A representante do MP-SP afirmou, ainda, que as denúncias anteriores foram levadas à Corregedoria da PM em Jacareí, cidade vizinha e onde os policiais trabalham, mas não houve qualquer providência cautelar para “salvaguardar a ordem pública”. Uma medida cautelar, por exemplo, seria o afastamento dos policiais enquanto a investigação acontece. Para ela, houve “omissão” da corporação, que resultou em mais um caso de violência, com a morte de Tiago.