‘Amor, tomei um tiro’: protesto em SP pede justiça por adolescente morta por GCM

Camilly Lima, de 17 anos, foi baleada por guarda municipal ao passar na garupa de uma moto no bairro do Capão Redondo, zona sul da cidade; familiares e amigos cobraram responsabilização, atearam fogo em pneus e fecharam avenida

Protesto Camilly - Daniel Arroio Ponte Jornalismo
Tia de Camilly, a dona de casa Verônica Santos participou da manifestação que fechou a Estrada de Itapecerica | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

“Mataram uma inocente!”, gritava a dona de casa Verônica Pereira Santos, de 38 anos, aos passageiros de um ônibus intermunicipal parado diante do protesto na noite desta quinta-feira (29/8). Familiares e amigos da estudante Camilly Pereira Lima, 17, atearam fogo em pneus e fecharam a Estrada de Itapecerica, na altura do número 7300, no bairro do Capão Redondo, na zona sul da capital paulista, pedindo justiça pela morte da adolescente.

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Camilly foi baleada pelas costas pela Guarda Civil Metropolitana (GCM) há uma semana. O guarda que efetuou o disparo foi preso em flagrante por homicídio culposo (quando não há intenção de matar), mas liberado no mesmo dia após pagamento de fiança no valor de R$ 1.412. “A vida de uma inocente não pode valer um salário mínimo”, revolta-se Verônica, tia da menina.

O namorado da jovem, o entregador Vinicius Caetano Santos, 20, conta que, naquela noite, ela foi até a hamburgueria onde ele trabalha para que ele a levasse para casa. Era volta por volta de meia-noite. “Ela estava sem o capacete e, quando vi a viatura da guarda, acelerei por medo”, diz.

Verônica Santos explica o motivo do protesto a passageiros de um ônibus | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Quando a moto passava pela viela da Rua Alberto Paulino, Vinicius ouviu um disparo. “Ela falou pra mim ‘amor, tomei um tiro'”, lembra. O namorado conta que pediu para Camilly se segurar enquanto tentava levá-la a um pronto-socorro próximo, ainda sem saber a gravidade do ferimento. “Até que ela não conseguiu mais se segurar e caiu. Parei a moto e tentei ligar para todo mundo para conseguir socorrer. A viatura da guarda passou e não parou mesmo eu pedindo socorro”, diz.

O entregador só conseguiu levar a namorada a uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) quando seu chefe apareceu em outra moto e os dois a socorreram. “Ele foi dirigindo, ela ficou no meio e eu atrás para segurar”, conta. “Passaram 15 minutos e já vieram com a notícia. Está sendo muito difícil, eu não desejo isso para ninguém.”

A cozinheira Vera Lucia Pereira, avó de Camilly, criou a neta desde pequena | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Em faixas e cartazes, manifestantes tentavam chamar a atenção das pessoas que passavam. Uma mulher chegou a chamá-los de “gente sem ter o que fazer”, já outra disse à reportagem que não se incomodou em demorar mais tempo para chegar em casa porque também já tinha perdido um filho. “Tem que fazer isso mesmo”, apoiou.

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A cozinheira Vera Lucia Pereira, 54, avó de Camilly, lembrou emocionada que a neta tinha mostrado as roupas novas que comprara para ir ao show do grupo Pixote, que aconteceria na noite daquela sexta-feira (23). “Quem criou essa menina fui eu”, disse, às lágrimas. “Ela era uma menina muito sonhadora, muito feliz, não reclamava de nada”.

Camilly ia terminar o ensino médio este ano. Ela planejava fazer um ensaio fotográfico para marcar o momento. “Eu ia levar ela na costureira para ajeitar o vestido sábado. Agora, nem sei o que eu faço com esse vestido. Eu olho as coisas dela e começo a chorar”, conta a avó. A menina faria 18 anos em dezembro e estava ansiosa para tirar a habilitação. Ela sonhava em ser advogada.

Manifestantes atearam fogo em pneus e em um sofá no protesto | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

O ato teve gritos por justiça e “bandidos vestem farda”. Além dos pneus, um sofá também foi queimado. Viaturas da Força Tática e das Rondas Ostensivas com Apoio de Motocicletas (Rocam), do 37º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M), apareceram e tomaram a avenida para que a via fosse liberada.

Uma das viaturas chegou em alta velocidade, quase atingindo a reportagem e os manifestantes.

A situação ficou tensa, já que parte dos manifestantes não queria finalizar o protesto. Liberaram primeiro uma faixa da avenida e depois deixaram o local, ainda em passeata.

“O que nós queremos é que todos os quatro guardas sejam responsabilizados porque não se pode tirar a vida de um inocente assim”, pede Verônica.

Vídeos desmentem versão de GCM

Os familiares da adolescente foram atrás de câmeras de segurança instaladas nas ruas em que o casal passou. Nas imagens, a viatura da GCM persegue a moto em que os jovens estavam — não aparecem outras motocicletas, como os guardas alegaram na delegacia.

No boletim de ocorrência, o guarda Marcelo Teles dos Santos, 35, declara que conduzia a viatura em que estava com outros três colegas durante um patrulhamento e, ao entrarem em uma rua, sem especificar qual, “passaram por alguns motoqueiros e ouviu barulhos e um clarão que pareciam ser disparos de arma de fogo”. O agente disse que pensou estar sendo alvo de disparos, então atirou e se abaixou para se proteger, assim como os outros guardas, até que os motociclistas fossem embora.

Em seguida, afirmou que o guarda Charles Eduardo da Silva Tosta pediu que eles fossem embora e chamassem por apoio. Só depois de algum tempo os guardas teriam sido informados de que uma pessoa vítima de disparo de arma de fogo tinha dado entrada em um hospital na cidade vizinha de Embu das Artes. Então, Marcelo teria dito aos colegas que tinha atirado, eles comunicaram o comando da GCM e foram até o 47º DP (Capão Redondo).

Marcelo disse não ter percebido que atingira a adolescente, pois “a ação foi muito rápida e o local estava escuro”. Também afirmou não ter conseguido ver as características dos supostos motociclistas que teriam vindo em sua direção. Ele alega que os motoqueiros estavam na direção contrária à da viatura, ou seja, vieram de frente.

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Os guardas Charles Tosta, Adriana Rodrigues e Lucas Ferreira Freires deram versões muito semelhantes e disseram que não perceberam que Marcelo havia dado um tiro. Afirmam que só souberam quando o colega falou para eles após ter ficado “nervoso” ao saber que uma vítima tinha sido levada ao hospital.

O delegado Leandro Caldeira da Silva, do 47º DP, entendeu que o guarda praticou crime de homicídio culposo (quando não há intenção de matar). Por ser um crime com pena menor, de quatro anos de prisão, e pelo agente não ter antecedentes criminais, arbitrou o pagamento de fiança no valor de um salário mínimo para não prendê-lo em flagrante. O valor foi pago e Marcelo, liberado.

A arma que ele usou foi apreendida para perícia. O delegado disse que, no local dos fatos, não localizou testemunhas presenciais, além de Vinicius, nem câmeras de segurança em residências, embora os familiares tenham conseguido imagens de outras ruas em que o casal passou. Ele encerrou a investigação do caso no mesmo dia e mandou o relatório para o Ministério Público e o Poder Judiciário.

O que dizem as autoridades

A reportagem questionou a Secretaria da Segurança Pública (SSP) sobre a apuração do caso e a Prefeitura de São Paulo sobre a conduta dos GCMs.

A Fator F, assessoria terceirizada da SSP, enviou a seguinte nota, repetindo as informações do boletim de ocorrência:

O guarda civil de 35 anos foi preso em flagrante por homicídio culposo no último dia 23 de agosto e, com base nos elementos analisados pela autoridade policial, foi arbitrada fiança e ele foi liberado, de acordo com o artigo 322 do Código de Processo Penal para casos em que a pena seja inferior a quatro anos. O inquérito policial foi relatado na mesma data e está sob apreciação do Poder Judiciário

Já a Secretaria Municipal de Segurança Urbana, vinculada à Prefeitura, respondeu:

A Secretaria Municipal de Segurança Urbana lamenta a morte da jovem e informa que solicitou o afastamento do agente ao tomar conhecimento da ocorrência. A Corregedoria Geral da corporação já iniciou a apuração dos fatos. A SMSU ressalta que a GCM atua de acordo com as previsões constitucionais da Lei nº 13.022/2014 e que suas ações são pautadas pelo respeito e a dignidade da pessoa humana e não compactua com quaisquer condutas que violem estes princípios.

A Ponte procurou o advogado Marco Antônio dos Santos, que representou o guarda Marcelo na delegacia, mas não teve retorno até a publicação.

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