Ela perdeu todos os escritos em uma enchente. Sete anos depois, publica seu primeiro livro de poesia

    Por ser mulher, a poeta Cris Rangel, 34 anos, chama sua arte de ‘marginal’. ‘A arte realizada pelas mulheres sempre ficou nas margens dos autores homens. O universo poético é muito masculino. E machista. As mulheres que escreviam foram por muito tempo marginalizadas. E ainda são’
    Trecho do livro "Desaguar", da poeta marginal Cris Rangel
    Trecho do livro “Desaguar”, da poeta marginal Cris Rangel

    “Nascem histórias/ Memórias transitam/ Uns duvidam/ Eu acredito.” Ela acreditou. A poeta Cris Rangel, de 34 anos, perdeu quase todos os seus textos, escritos desde a adolescência, em uma enchente que atingiu a cidade de Paraty, no Rio de Janeiro, no ano de 2009. “Nômade por natureza”, como se autointitula, ela estava, “como produtora, sonhando ser autora” na cidade, onde morou e participou da 5ª Flip (Festa Literária Internacional de Paraty).

    Cris afirmou à reportagem que o livro é “literalmente, um divisor de águas” e que representa a semente artística que sempre quis criar. “É um primeiro passo, sabe? Eu trabalho há 15 anos lidando com a arte das pessoas, como produtora artística”, conta. “Vim morar em São Paulo depois de perder tudo numa inundação. E esse tudo continha todos os poemas que escrevi desde minha adolescência. Então, hoje, após sete anos de viver a perda total, ter esse livro impresso é como um ritual de passagem, em que se pode acreditar que a arte supera tudo mesmo”, afirma.

    A obra “Desaguar”, uma compilação dos poucos poemas que restaram e criações vindas dos anos seguintes, é o primeiro livro de Cris Rangel. Depois de sair de Paraty, em 2010, foi viver em São Paulo “em busca de recuperar o entusiasmo e ampliar as vivências também como produtora cultural, mas a vontade de escrever ainda estava afogada nas águas do mangue, esgoto e do rio Perequê – que corta a cidade histórica carioca”, diz.

    Cris denomina sua arte como poesia marginal. “Minha poesia é marginal. A arte realizada pelas mulheres sempre ficou nas margens dos autores homens. É difícil conquistar espaço. O universo poético é muito masculino. E machista. As mulheres que escreviam foram por muito tempo marginalizadas. E ainda são. Somos muito subestimadas. Veja pela Academia Brasileira de Letras. Tem uma ou duas mulheres… e elas foram nomeadas há pouquíssimo tempo.”

    Até que, em 2012, logo após uma separação traumática, e três anos depois da enchente, Cris sentou para produzir e nunca mais parou. No ano seguinte ela conheceu a Editora Patuá, que deu oportunidade para a publicação. “E, o mais importante, é que não se cria obras assim sozinho. Precisou um editor, uma pessoa que sabe os procedimentos para publicar e divulgar o trabalho do jeito certo. Ter aliados certos: isso que São Paulo me ofereceu”, diz. A obra custa R$ 35.

    Cris Rangel

    Leia sete poemas contidos nas 96 páginas do livro:

    Homem rocha
    enfrenta as tempestades
    sente o peso do mar
    sofre a força das ondas
    intacto e indestrutível
    se auto destrói
    a cada 5 segundos
    renasce em sorrisos
    oferece-lhe o que beber
    descontrai a tensão
    de tudo
    menos dos músculos dos braços
    e do coração.

    *

    Os olhos dizem
    a palavra também
    cada um explica
    o que convém.

    *

    O que seu Buda diz enquanto no supermercado você afana copos de cristal?
    Esta sua imagem santa se cala enquanto desejas em décima potência a volta das coisas que te fazem mal.

    Não me faço do discurso. Não é o meu recurso.
    Faço meus carinhos no mundo. Vá cheirar seu rabo vagabundo.
    Ponho minha capa protetora de quem não sabe o que vestir.
    Piso um passo atrás do outro pra ter aonde ir.
    Não quero desistir. Caí aqui e ali. A cicatriz ainda dói e sei que posso me ferir.

    Tua caridade está estampada na parede. Dá comida a quem tem fome e água a quem tem sede. Suas inimizades gritam tudo em você. Pra que saiba e não deixarão esquecer.
    Disso não posso reclamar. Até meus inimigos sabem elogiar. Alguns até gostaram de ao meu lado estar. Poucos souberam aproveitar.
    Não se confunda na profunda vaidade. Nesta punheta de talentos que é só uma paisagem.
    Gozando uma genialidade que dorme ao relento. Os defeitos coçam a boca deste teu mundo pequeno.
    Este veneno que escorre na boca de canto. Este besta e escuro plano.

    *

    Falam de saudade
    eu tenho banzo
    um sentimento manso
    um passo manco
    caminho sem volta
    o que foi vira memória
    metade lembrança
    metade vontade.

    *

    Sendo doce sem açúcar
    O meu zelo e seu café
    Sorriso antes tão lumia
    Mas já se foi, se ia
    Fez da vida o que quiser

    Céu de capim-chuva
    Cinzas do meu medo
    Água me tornei
    Pedindo ajuda

    Calma pra viver
    Pedido tão eterno
    Pra poder-nos ser
    Valente convite de inverno.

    *

    Agora
    Afora vai meu coração
    Pra fora
    Estoura esta explosão
    Embora
    Nada no chão
    Socorra
    Meus pedaços então.

    *

    Sai dos meus ombros
    já me restam só escombros
    comprei cimento novo
    e um punhado de tijolos
    telhas da melhor qualidade
    já passei da idade
    meu momento mudou
    sinto que vou num lugar
    onde nunca estou
    deixar tanta falta de
    vontade, vaidade
    dizer que já passou.

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