Pesquisa do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF) mostra que locais dos crimes não foram preservados e perícias não seguiram protocolos básicos
As perícias feitas no local das mortes e agressões ocorridas na primeira fase da Operação Escudo, da Polícia Militar paulista, não seguiram protocolos básicos. A ação, deflagrada na Baixada Santista após a morte em serviço do soldado das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (ROTA), Patrick Bastos Reis, de 30 anos, durou 40 dias e teve tom de vingança, levando o terror ao Litoral paulista. No total, 28 pessoas foram mortas. Houve remoção de vítimas que já estavam mortas ao chegar aos hospitais, locais não foram preservados para a perícia e há indícios de que armas supostamente encontradas com as vítimas foram levadas diretamente para o Batalhão, o que rompe a cadeia de custódia de provas.
Leia a nota técnica na íntegra
As informações constam da nota técnica lançada nesta quinta-feira (19/9) pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF). O GENI firmou acordo de cooperação técnica com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo para apuração e construção de dados sobre as operações Escudo e Verão.
A parceria resultou na análise de uma amostra de 22 Procedimentos Investigatórios Criminais (PIC’s), instaurados por membros do Ministério Público, e de um inquérito policial estabelecido até o primeiro semestre deste ano.
‘Uso excessivo da força’
Os resultados sinalizam que houve uso excessivo da força pelos policiais, que o depoimento dos agentes se sobrepôs aos relatos de testemunhas e familiares, que as vítimas eram majoritariamente pretas e pobres e que as perícias de local foram marcadas pelo baixo respeito aos protocolos.
Para a pesquisadora Luciana Fernandes, do GENI, as perícias foram marcadas por uma baixa adesão aos protocolos de realização de provas. “São protocolos fundamentais para que essas provas possam atingir as suas finalidades”, alerta.
Em 11 casos dos 20 casos analisados, o local não foi totalmente preservado para a perícia. Em apenas um deles a arma supostamente usada pela vítima na “troca de tiros” com os policiais foi fotografada ainda no local. Só em três casos foram fotografados e descritos vestígios de disparos na parede da casa das vítimas.
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Nos 22 casos analisados estavam envolvidos 64 policiais. Nenhum deles foi morto e apenas um foi ferido em confronto. Do outro lado, foram 20 os civis mortos e dois feridos com gravidade — sendo que em 73% dos casos as vítimas estavam sozinhas no suposto confronto com os policiais. Todos os mortos foram feridos por disparos de arma. Em média, cada um foi atingido com três disparos, a maioria no tórax. Em quatro casos, as vítimas foram baleadas no rosto.
O relatório aponta que 65% das vítimas eram homens negros com idade média de 29 anos, a maioria (56,2%) moradora da comunidade onde foi realizada a Operação.
A nota também registra que em 67% das ocorrências não havia imagens registradas, sendo que 38% dos policiais que participaram da operação não usava câmeras corporais.
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Em nenhum dos casos analisados pelo GENI foi feito um croqui do local onde as vítimas foram mortas — ferramenta comumente usada para registrar a dinâmica de um crime. Ele fornece mais elementos que uma fotografia, já que pode informar distâncias.
As fotografias dos ambientes que constam nos laudos contém imagens externas (95%), mas o percentual é de 75% quanto a fotos que permitem a compreensão do tipo de local (casa abandonada, habitada, via pública etc.).
Segundo os pesquisadores, há imagens tiradas que descumprem os padrões de perícia. O retrato das áreas é essencial para apurar a relação da vítima com o ambiente e o conjunto de elementos que podem ser mobilizados para o controle da atividade policial.
A nota traz, como exemplo, a única foto incorporada em um laudo para a descrição interna de um ambiente onde foram encontrados cartuchos. O protocolo seria ter imagens tiradas com lente grande angular ou fotografias sequenciais, capazes de ampliar o campo de visão.
Mortos ‘socorridos’
Em relação às mortes, em 50% das ocorrências houve a remoção do corpo, sendo essa a principal causa de alteração do local de perícia. Os policiais justificaram que as vítimas foram removidas para prestar socorro a elas, mas em 90% dos casos analisados os supostos feridos já chegaram mortos ao hospital.
Em apenas um dos casos, a vítima recebeu algum atendimento médico, mas também morreu 33 minutos após sua entrada na emergência, registra o estudo.
A pesquisadora lembra que a letalidade policial é uma das mais graves violações de Direitos Humanos enfrentadas no Brasil. E que há um perfil nítido entre esses mortos: negros, jovens e periféricos.
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Para a pesquisadora do GENI, é necessário reforço nos protocolos de uso da força para reverter esse cenário. Ela cita como exemplo a elaboração de perícias que ajudem a de fato reconstituir os fatos, o uso de câmeras corporais pelos policiais e a verificação do depoimento de outras testemunhas, além dos policiais em casos como o da Operação Escudo.
“Quando nós falamos que esses territórios, esses corpos, enfrentam essa condição de violação dos direitos humanos, considerando este contexto, precisamos reforçar as estratégias de controle do uso da força policial”, defende.
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP-SP) questionando os pontos levantados na nota técnica. Em nota, a pasta disse que todas as mortes durante a operação “são rigorosamente investigadas”. E afirma que “todo o conjunto probatório apurado no curso das investigações, incluindo as imagens das câmeras corporais, foi compartilhado com esses órgãos e o trabalho policial segue em segredo de Justiça”.
Leia a íntegra da nota da SSP
Realizada para combater o tráfico de drogas e o crime organizado na região da Baixada Santista, a operação Escudo permitiu a prisão de importantes lideranças de facções criminosas, a captura de 388 foragidos da Justiça e de aproximadamente outros 600 criminosos. Além disso, 119 armas de fogo, incluindo fuzis de uso restrito, foram retiradas das ruas, e cerca de uma tonelada de drogas foi apreendida.
Todas as ocorrências de morte durante a operação são rigorosamente investigadas pelas polícias Civil (Deic de Santos) e Militar, com o acompanhamento das respectivas corregedorias, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Todo o conjunto probatório apurado no curso das investigações, incluindo as imagens das câmeras corporais, foi compartilhado com esses órgãos e o trabalho policial segue em segredo de Justiça.
A atual gestão investe continuamente na capacitação do efetivo, na aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo e em políticas públicas voltadas para a redução da letalidade. Além disso, os cursos ao efetivo são constantemente aprimorados e comissões direcionadas à análise dos procedimentos revisam e aperfeiçoam os treinamentos, bem como as estruturas investigativas.
Correções
O título da reportagem foi alterado, pois o estudo não registra se as remoções das vítimas foram feitas pela própria PM ou pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU).