Revista vexatória é ‘estupro inconstitucional’ e deve ser proibida, defendem especialistas

STF formou maioria para barrar procedimento em sessão virtual, mas destaque feito pelo ministro Alexandre de Moraes empurrou decisão para o plenário físico

Revista Vexatório
Ilustração: Junião

Ana Regina Gayer, de 53 anos, conta que teve que levantar a blusa, mostrar o top, abaixar a calça e mostrar a calcinha para poder visitar o filho que cumpre pena na Penitenciária Compacta de Pracinha, no interior de São Paulo. Cuidadora de idosos, ela é PCD (Pessoa Com Deficiência) e se equilibra em duas muletas para conseguir andar. A condição faz com que a revista, que considera “humilhante”, cause dor física. No último dia 5 de outubro, Ana conta que foi submetida à prática antes de passar pelo scanner corporal — que é o procedimento indicado em São Paulo. Colocada em uma salinha, porém, ela teve que mostrar o corpo a uma agente penal. “Eu estava nervosa, chorando”, lembra. 

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A situação não foi exceção. Ela conta que todas as visitas que fez ao filho nesta unidade foram precedidas por esse tipo de revista. “É sempre assim, sempre essa burocracia. Se a gente já tem um scanner e já foi falado que não é para ter revista, para que levantar a roupa?”, questiona. 

Mais do que pertinente, a pergunta de Ana vem sendo debatida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2020. Os ministros analisam se o procedimento em que visitantes ficam nus, são colocados diante de espelhos e chegam a ter seu corpo tocado deve ser proibido. 

‘Inadmissível’

O STF formou maioria na última sexta-feira (18/10) para proibir a revista vexatória, mas o julgamento ainda não foi encerrado — e os votos dados podem mudar. O entendimento majoritário até agora é de que provas obtidas por esse tipo de busca sejam consideradas ilícitas. A maioria entendeu ainda que a falta de equipamentos como scanner não pode ser usada como justificativa para esse tipo de revista.

O caso está sob a relatoria do ministro Edson Fachin. A corte analisa uma situação ocorrida em 2011 no Rio Grande do Sul. O Tribunal de Justiça do estado absolveu uma mulher da acusação de tráfico de drogas. Ela tentou entrar em um presídio de Porto Alegre com 96 gramas de maconha no corpo, durante uma visita. Para o TJ-RS, a prova produzida por meio da revista vexatória foi ilícita. O Ministério Público do Rio Grande do Sul recorreu da decisão, que chegou à corte máxima em 2016.

Em seu voto, Fachin chama a prática de “inadmissível”. O ministro defende que seja vedado o desnudamento dos visitantes e a inspeção de cavidades corporais.

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Contudo, o ministro entendeu que a revista pessoal ainda pode ser feita depois que o visitante passe pelo sistema eletrônico. Mas o procedimento só poderia ser aplicado diante de elementos concretos que justifiquem a suspeita. O voto foi acompanhado por Luís Roberto Barroso (atual presidente do STF), Rosa Weber (já aposentada), Carmen Lúcia, Gilmar Mendes e Cristiano Zanin. 

Na sessão virtual, ocorrida na última sexta-feira (18), Zanin acompanhou o voto do relator, mas propôs que as revistas sigam autorizadas até a compra de scanner pelos presídios.

Já Alexandre de Moraes apresentou voto divergente e pediu que o caso seja levado para sessão presencial, ainda sem data marcada. Moraes entende que a revista íntima deve ser possível como procedimento para obtenção de provas, embora feita em casos excepcionais e com o consentimento do visitante. 

Nunes Marques, Dias Toffoli e André Mendonça também se posicionaram contrários ao argumento de Fachin. O ministro Luiz Fux ainda não votou. 

Inconstitucional

Especialistas ouvidos pela Ponte defendem o fim das revistas vexatórias, classificadas por eles como ineficientes e uma forma de “estupro inconstitucional”. 

Essa é a expressão usada por Michele Ferreira, pesquisadora do Justiça sem Muros, programa do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITCC). “Elas [mulheres e familiares de presos] são violadas. Quando você passa pela revista vexatória sua genitália é inspecionada”, critica. 

A pesquisadora afirma também que a questão da revista vexatória tem um marcador de gênero e raça. Uma pesquisa lançada em 2021 pelo ITTC e por outras organizações ouviu 471 familiares de pessoas presas de todas as regiões do Brasil. Do total, 77,7% afirma que já enfrentou revista íntima. Entre essa porcentagem, 97,7% eram mulheres. Em relação à raça, 69,9% eram pessoas negras.

Leia o estudo na íntegra

Há outra dimensão problemática. O estudo aponta que crianças também foram submetidas a esse tipo de procedimento. 54,1% dos familiares ouvidos afirmaram que os filhos foram submetidos a revista. Deste total, 23,1% dos familiares não puderam acompanhar seus filhos no procedimento de revista. 

Para Michele, existem hoje tecnologias capazes de extinguir o procedimento, como os scanners corporais, sem prejuízo para a segurança. Mas é necessário não só adquirir esse tipo de equipamento como treinar os funcionários para um bom uso do dispositivo. É preciso, diz a pesquisadora, que os agentes saibam ler as imagens para que isso não justifique a continuação da prática da revista. 

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Para Antonio Pedro Melchior, diretor do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), a revista vexatória viola o princípio da personalidade da pena. No sentido de que o castigo ultrapassa a pessoa condenada e atinge seus familiares — que têm a intimidade violada por uma questão de controle do sistema carcerário. 

O IBCCRIM atua como amicus curiae no julgamento do STF. E, em parecer enviado aos ministros, considera que a revista vexatória deve ser declarada inconstitucional. 

“Os alvos, mulheres, mães, que não abandonam seus filhos, seus maridos, e ainda sofrem um castigo que não poderia lhe ser imposto, porque a pena não poderia passar da pessoa do condenado a elas, por estarem fazendo essa visita”, sustenta.

O diretor do IBCCRIM argumenta que as revistas também são ineficazes. Antonio fala que o número de objetos encontrados neste protocolo é baixo e aponta para um descompasso com a quantidade de celulares que estão com os presos. “A medida além de degradante, vexatória, é ineficiente para o objeto a qual ela se propunha”, fala. “O custo humano de uma revista vexatória de maneira nenhuma é proporcional ao resultado que ela pretenderia alcançar”, comenta. 

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Na opinião do diretor do IBCCRIM, a posição de Alexandre Moraes sobre a revista vexatória precisa ser contrastada com o posicionamento do próprio STF, que considerou a situação prisional no país um “estado de coisas inconstitucional”.

“O Supremo reconhece que o sistema carcerário brasileiro é deplorável e, sob vários aspectos, um celeiro de violação de direitos, chega a ser acintoso que se queira sustentar que a revista vexatória é uma prática excepcional no contexto desse ambiente”, afirma.

Proibida em São Paulo

A revista vexatória é proibida desde 2014 em São Paulo. A lei 15.552/2014 veda que visitantes tenham que tirar a roupa, fazer agachamentos ou dar saltos, além de passar por exames clínicos invasivos. Segundo o presidente do Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional do Estado de São Paulo (SIFUSPESP), Fábio Jabá, hoje todas as unidades no Estado já dispõem de scanners corporais.

Ele nega que ocorram revistas vexatórias como a relatada por Ana Gayer.

Além de São Paulo, Amazonas, Espírito Santos, Mato Grosso, Goiás, Rio de Janeiro e Santa Catarina já proibiram esse protocolo, segundo levantamento feito pelo jornal O Globo

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O que dizem as autoridades 

A Ponte procurou a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo (SAP-SP) questionando sobre a situação envolvendo a visita na unidade de Pracinha, no interior de São Paulo. Não houve retorno. Em nota a SAP-SP negou a existência de revista vexatória nos presídios da administração estadual. O texto diz que a Ana passou apenas por scanner e que visitou o filho sem problemas.

Vaja nota na íntegra

A Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) nega a existência de revista vexatória nos presídios geridos pela Pasta e informa que as Unidades Prisionais contam com escâneres corporais, aparelhos de Raio-X e detectores de metal de alta sensibilidade, que evitam contato físico para revista. Sobre a denunciante, ela passou por revista exclusivamente por meio do escâner e visitou normalmente o familiar. Por usar uma sandália fora do padrão de visitantes, servidoras ofereceram a ela um outro calçado, o que foi aceito na ocasião. A Pasta disponibiliza canais para recebimento de denúncias, caso identificado eventual desvio, que podem ser feitas, sob sigilo, à Ouvidoria e à Corregedoria da Pasta.

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